O Conselho Federal de Farmácia (CFF), juntamente com o Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (ITI), está lançando (23/04) um portal de prescrições eletrônicas. Esse Validador de Documentos Digitais em Saúde deverá ser um padrão a ser usado por médicos, pacientes, farmacêuticos e as empresas de prescrição eletrônica e dispensação do País – todos com o envio de documentos assinados digitalmente no padrão ICP-Brasil. Os players desse setor têm lançado críticas ácidas ao sistema, reclamando da falta de diálogo dessas instituições. Além disso, há os que denunciem um possível interesse comercial por trás da exigência da certificação digital para todos os farmacêuticos.
Essa plataforma teria sido planejada, inicialmente, no início de dezembro de 2019. Porém a justificativa pela celeridade com a qual o portal foi desenvolvido seria o agravamento da pandemia causada pelo coronavírus Covid-19, que só chegou ao Brasil em 26 de fevereiro de 2020.
Além disso, os termos da regulamentação da própria telemedicina e a prescrição eletrônica só foram estabelecidos em 23 de março, pela Portaria 467/20, do Ministério da Saúde (MS), em caráter excepcional e temporário, como medida para conter os avanços da pandemia. No entanto, a atividade já havia sido regulamentada pela Resolução 555/11, sobre o registro, a guarda e o manuseio de informações resultantes da prática da assistência farmacêutica nos serviços de saúde.
Quem estaria dando suporte a esse portal, que, supostamente, daria a exclusividade dessa operação ao CFF, seria a Sociedade Brasileira de Informática em Saúde (SBIS), que viabiliza softwares, promove cursos e realiza congressos e simpósios.
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Há 248 empresas ligadas ao segmento de prescrição e de dispensação eletrônica no Brasil. Se não houver uma integração adequada, de um momento para o outro, essas empresas estarão impossibilitadas de operar no mercado, ou seja, ficarão fora do negócio. As cerca de 20 maiores companhias do setor, que detêm a maior fatia desse segmento, foram reunidas em um grupo de WhatsApp para fornecer informações de sua operação, mas até o momento do fechamento desta reportagem elas ainda não haviam recebido informações precisas ou mesmo o manual de integração - ferramenta que viabilizaria a operação dessas empresas nesse mercado.
Esse grupo de whatsapp estaria sendo liderado pelo consultor independente e empresário o setor de TI, Eugênio Zimmer Neves, que atua como coordenador do Grupo Interinstitucional de Trabalho (GIT) – Farmácia Digital do CFF. Ele também é da diretoria da SBIS, da Comissão de Admissão.
A dúvida levantada pelos especialistas do setor é sobre a base legal em que estaria apoiada a contratação desse sistema pelo CFF, já que não houve um chamamento público ou uma licitação.
O CFF foi procurado para fornecer informações, mas não respondeu às solicitações da imprensa. Além disso, Eugênio Zimmer Neves concedeu uma entrevista à reportagem em 22/04, mas depois mudou de ideia e proibiu a veiculação de suas respostas e de seu posicionamento com relação às denúncias citadas nesta reportagem. Por conta disso, suas respostas não serão divulgadas.
A equipe de reportagem, responsável por esta matéria, procurou algumas empresas que se disseram prejudicadas pelo sistema. Uma delas já havia acionado um importante escritório de advocacia de Brasília (DF) e forneceu, ao jornalismo, um levantamento jurídico sobre o assunto, que tem partes descritas a seguir.
“ITI está claramente agindo como verdadeiro braço da iniciativa privada; O ITI escolheu uma única empresa como credenciada para ser a base da receita eletrônica, a norte-americana Adobe; O ITI está sendo oportunista e se locupletando em plena pandemia da Covid-19 para criar um novo filão bilionário para as empresas certificadoras, que, aliás, parece nunca haver escondido essa desvirtuada missão (neste link, confira no vídeo a fala em 1:47 https://cryptoid.com.br/banco-de-noticias/ancd-associacao-nacional-de-certificacao-digital-5-anos/)”
O documento do grupo de advogados continua: “Está, em suspeito conluio com o CFF, condicionando que cerca de 200 mil farmacêuticos no Brasil tenham que, de forma totalmente desnecessária e arbitrária, passar a comprar certificado digital para dispensar medicamento recebido por receita eletrônica por meio desse mal concebido portal;está imiscuindo-se nas competências do Ministério da Saúde para regular a matéria, se aproveitando justamente do momento da troca de ministro para fazer “fato consumado” com seu portal; e está ignorando solenemente as regras previstas no Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados da Anvisa”.
Depois de elencar as críticas ao ITI e ao CFF citadas anteriormente, o documento destaca ainda: “Naturalmente, é razoável imaginar que as empresas certificadoras estão “quase comemorando” o grande filão de mercado que o ITI, de forma inapropriada e ilegal, está criando com este "Portal de validação de prescrições eletrônicas". Neste mesmo vídeo do link acima, a fala do CEO da VALID (aos 0:59) é bastante reveladora da relação antiética, e até mesmo ilegal, em que uma autarquia da Casa Civil da Presidência da República literalmente busca abrir negócios privados bilionários por meio de canetadas como a que se pretende agora fazer”
Em críticas aos conselhos, o levantamento jurídico afirma: Há falta de competência legal e infralegal para o CFF e CFM regulamentarem o "Portal de validação de prescrições eletrônicas. Os Conselhos Federais de Medicina e Farmácia são autarquias especiais federais, criadas por lei, especificamente para fiscalizar os princípios da ética e da disciplina das respectivas atividades profissionais”.
Na sequência, ele diz que, quando esses Conselhos Federais determinam/orientam aos seus profissionais um único portal de validação de prescrições médicas, sem, diga-se de passagem, qualquer estudo prévio ou processo impessoal de credenciamento de uma prestadora de serviço, eles usurpam a competência normativa dos entes federativos.
Opinião das plataformas de prescrição e dispensação
O CEO da Memed, Ricardo Moraes, confirmou que os modelos que forem desenhados e sugeridos pela Anvisa, CFF, CFM, ITI e demais órgãos competentes será sempre seguido pela empresa.
“Eles são os responsáveis para que exista o desenho mais seguro e sensato desse processo, seja com o uso das certificadoras ou outras alternativas que eles entendam que sejam relevantes, e não caberá à Memed definir nada, apenas seguiremos as propostas finais”, disse ele, que completou: “Todas as plataformas de prescrição digital do mercado estão participando de um processo aberto e transparente conduzido não só pelo CFF mas também pelo CFM, ITI e com colaboração da SBIS”.
Já o CEO do Grupo Nextcorp (que detém a Sibrafar, Sibrare), Marcelo de Ferraz, vê com um pouco de preocupação, porque o objetivo do grupo era discutir algumas alternativas em conjunto para que uma visão de padrão fosse apresentada, resolvendo alguns aspectos básicos. Um dos mais preocupantes era como evitar a dupla dispensação, por exemplo, e também a segurança do meio digital.
“O que percebi é que a resposta do CFF/ITI foi a criação de uma plataforma paralela, em uma versão que ainda precisa ser avaliada na prática. Está muito preliminar. Também nos preocupa o fato do ITI não ter disponibilizado manuais de integração. Outra questão é que a plataforma exige que o farmacêutico tenha o certificado digital, o que, ao nosso ver, talvez seria um custo desnecessário no momento. Mas, em linhas gerais é mais uma plataforma, ou seja, não é uma regulamentação e tão pouco obrigatório o uso da mesma. Acredito ser necessária uma discussão mais ampla. E mais: até o momento não tem o procedimento para a dispensação”, pondera Ferraz.
Ele ressalta que o Sibrafar é um sistema confiável, tem convênios com alguns CRFs, como o de SP, Pará, MS e outros Estados, e que já disponibilizam a solução ao farmacêutico gratuitamente.
A Nexodata apoia o projeto conduzido pelo Instituto Nacional de Tecnologia da Informação - ITI, juntamente com o Conselho Federal de Farmácia - CFF e a Sociedade Brasileira de Informática em Saúde (SBIS), para a criação de uma plataforma de validação de prescrições eletrônicas no Brasil. A iniciativa, se bem desenvolvida e executada, deverá conferir segurança e confiabilidade ao processo de ponta a ponta, democratizando o acesso à validação e beneficiando paciente, farmácias, médicos e o segmento de saúde como um todo.
Em nota, a Nexodata disse estar acompanhando de perto o tema e se colocou à disposição para contribuir. A companhia entende que se trata de um processo complexo de operacionalizar, e, por isso, acredita que todas as partes envolvidas, como as empresas de prescrição eletrônica e as redes de farmácia e conselhos, sejam ouvidas.
“A respeito do certificado digital para farmacêuticos, a companhia concorda que é um modelo de transação que oferece segurança e rastreabilidade no processo de dispensação de medicamentos via prescrição eletrônica, principalmente de medicamentos de uso controlado. A prática de uso de Certificado Digital já é usada em diversos setores no País, incluindo a área da saúde. Por fim, a partir da isenção dos órgãos reguladores, a Nexodata acredita na democratização da prescrição eletrônica para um mercado com livre concorrência”, afirmou a nota.
O que dizem os conselhos regionais
A equipe de reportagem procurou alguns conselhos regionais para entender o envolvimento e a participação deles nesse processo. O presidente do Conselho Regional de São Paulo, Marcos Machado, disse que não recebeu muitas informações sobre o tema, e que seria difícil opinar, mas acredita que será necessário fazer, pelo menos, um chamamento público, já que, atualmente, há várias empresas no mercado.
No entanto, um membro de outro conselho regional, que não quis se identificar por medo de represálias, indagou: “Colocado da forma como está, pergunto, quem vai pagar a conta para o farmacêutico fazer o certificado digital? Será o Conselho Federal ou o Governo? Esse é o grande X da questão. O problema é a obrigatoriedade imposta pelo Conselho Federal e pelo ITI, que é um órgão público governamental”.
Ele acha que esse projeto deveria ter sido dialogado com todo o sistema para que os conselhos regionais pudessem avaliar as ações e a suas peculiaridades regionais. Isso é uma crítica pela falta de transparência acerca do assunto. Ele acha que isso mostra que o CFF não é transparente.
Para essa fonte, até mesmo as ações emergenciais precisam ser tratadas com transparência. “Não foi realizado um chamamento público! No meu entendimento, o Conselho Federal de Farmácia não está preparado para nenhuma ação 4.0 porque nem as plenárias o CFF conseguiu estabelecer de forma on-line. Para se tornar um hub de prescrição eletrônica, o órgão não tem maturidade tecnológica”.
O receio dele é que esta plataforma tenha sido feita de uma forma que não foi testada e que não foi validada. “Isso foi empurrado, mais uma vez, goela abaixo da categoria. Na minha visão, o CFF não tem competência jurídica para isso e, portanto, também não mostra competência técnica”, afirma.
Outro ponto a ser levantado é que o coordenador desse processo não é do CFF, referindo-se a Eugênio Zimmer Neves. É um assessor. Ele é um empreendedor, um empresário do setor de tecnologia. Como um profissional nessas condições pode estar à frente de um processo de implantação de um sistema de prescrição do País. É provável que ele tenha algum interesse. O que ele está ganhando com isso? Quem está pagando esta conta?”, questiona a fonte.
Como dito anteriormente, Eugênio Zimmer Neves foi indagado a responder a essas críticas, mas preferiu não ter suas respostas publicadas.
O farmacêutico, professor e ex-presidente da Anvisa, Dirceu Raposo, afirma: “O que mais me preocupa nessa relação é se o Conselho Federal de Farmácia está tentando resolver o problema para os médicos ou se está tentando resolver o problema da dispensação para a população. Isso fragiliza a atividade profissional farmacêutica”.
Ele acha que a Anvisa deve se aproximar muito mais desse processo. Outro ponto que ele aborda é o fato de o certificado digital ser exigido do farmacêutico neste momento. “Será muito difícil que isso se realize em tempo hábil para que a população não seja privada da dispensação adequada. Irá faltar certificação digital para 220 mil farmacêuticos”.
Opinião das Redes sobre o sistema
O presidente da Associação Brasileira Redes Farmácias Drogaria (Abrafarma), Sergio Mena Barreto, diz que, apesar de reconhecer o esforço de entidades em resolver os problemas advindos da epidemia de Covid-19, a plataforma não atende às necessidades das farmácias instaladas no Brasil e está totalmente desconectada da realidade. Empresas operam sistemas que têm diferentes formas de distribuição e operacionalidade, e os processos são diferentes entre si. “Além disso, o portal também não leva em conta a complexidade de operação numa farmácia de rede, nem tampouco a forma como se dá o atendimento ao cliente no dia a dia”, afirma.
Ao ser indagado sobre a participação da Abrafarma nesse processo, ele dispara: “Nenhuma. Que eu saiba, os órgãos que propõe essa ‘solução’ não se deram ao trabalho de consultar ou propor um projeto que fosse desenvolvido em conjunto com os diversos entes que operam na área de prescrição ou dispensação de medicamentos. A falta de diálogo é lamentável, pois pretende impor um modelo ‘de cima para baixo’, em nada condizente com a forma como se deveria conduzir temas relevantes que impactem clientes e profissionais em suas atividades”.
Barreto defende que parece óbvio que a sociedade brasileira precisa ser envolvida em um projeto de tamanha magnitude. Isso envolve ser construído a muitas mãos, de modo a preservar os interesses da população acima de tudo. “Nesse sentido, representantes de diversas áreas devem ser chamados, e me parece óbvio que o congresso nacional deve ser envolvido. Muitas das soluções apontadas durante a pandemia da Covid-19 podem ser interessantes para este momento de crise, mas não necessariamente para o futuro”, destaca ele.
No site Validador de Documentos Digitais, lançado em 23 de abril, estão explícitas as normas para a certificação digital dofarmacêuticoa: "... a aquisição precisará ser realizada de forma individual. O farmacêutico escolhe uma das 17 Autoridades Certificadoras (AC) credenciadas à ICP-Brasil, como o Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro), Caixa Econômica Federal ou Receita Federal, por exemplo (confira a lista completa em https://www.iti.gov.br/icp-brasil/estrutura). As políticas de comercialização são próprias de cada empresa. A AC informará o valor do certificado, as formas de pagamento, os equipamentos necessários e a documentação obrigatória para emissão".
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