Líquidos estéreis e não estéreis: controle do processo é fundamental para um medicamento seguro e eficaz

Líquidos estéreis e não estéreis: controle do processo é fundamental para um medicamento seguro e eficaz

Desde a facilidade de administração ao paciente até a eficiência de absorção no organismo, são muitas as vantagens da utilização de medicamentos líquidos estéreis e não estéreis. “O uso desse tipo de formulação, em comparação ao fármaco em comprimido ou cápsula, apresenta benefícios significativos”, assinala Erika Fonseca, professora de pós-graduação do ICTQ e diretora da EF Consultoria. “Entre eles – continua ela – está a facilidade de administração, sobretudo para idosos e crianças, flexibilidade de dosagem, pois permite ajuste da dose pelo volume a ser administrado (relação dose versus peso corporal) e absorção mais rápida e eficiente”. Além dessas utilidades, a especialista aponta como vantagens adicionais a homogeneidade na dosificação e a possibilidade de adição de cosolventes para princípios ativos pouco solúveis no veículo principal. “Vale ressaltar também o uso na forma de injeções intramusculares para liberação lenta e ação prolongada e a alternativa de adição de edulcorantes, flavorizantes e corantes que melhoram a palatabilidade do medicamento”, completa.

Entre os tipos de medicamentos que demandam líquidos estéreis estão as formulações de via de administração parenteral (IV, IM, SC, entre outras). “São as que apresentam maior rigor na sua produção, preparações para irrigação (utilizadas em meio hospitalar, destinadas a serem usadas em cirurgias), as preparações citotóxicas, formas farmacêuticas de aplicação auricular e oftálmica, medicamentos acondicionados e esterilizados”, afirma Erika Fonseca. Já os medicamentos que serão esterilizados posteriormente – formas líquidas de administração via oral (soluções, emulsões e suspensões) e as de administração percutânia e mucosa (soluções) – não têm mesma exigência de demanda dos líquidos estéreis.

Mas os medicamentos na forma líquida não apresentam apenas pontos positivos. De acordo com Erika Fonseca, o paciente não tem acesso a um sistema de medida de volume preciso e uniforme, o que pode levar à variação de uma dose para outra. “Além disso, devido à presença de açúcar na composição de alguns medicamentos, pessoas com diabetes precisam evitar seu consumo. Sem contar que a solubilização do produto costuma realçar o sabor do fármaco, principalmente no caso dos princípios ativos com paladar desagradável”, adverte a professora. “Dependendo da quantidade ou da oxidação do edulcorante, o medicamento pode ficar com sabor ‘metálico’ ou ‘rançoso’”, acrescenta Anderson Carniel, professor de pós-graduação do ICTQ. O acondicionamento também é outro ponto sensível nos medicamentos líquidos. De acordo com a professora Erika, eles são mais difíceis de serem transportados pelo paciente do que as formas sólidas. “Não por acaso, a embalagem desses medicamentos são caras, pois precisam estar hermeticamente fechadas, garantindo não apenas que o produto não vaze, mas sobretudo que ele não seja contaminado durante seu ciclo de vida”, diz Carniel.

Há problemas também quanto ao sabor, aparência e viscosidade do medicamento em alguns casos. Para isso, a indústria lança mão de algumas estratégias. Os excipientes têm a função de aumentar o volume do medicamento, melhorar sua aparência (corantes, revestimentos), aprimorar seu sabor (edulcorantes) e conservar os medicamentos (conservantes). Uma das formas mais empregadas para mascarar sabores desagradáveis do medicamento líquido é o xarope, que possui como característica principal ser constituído por uma concentração elevada de sacarose, o que proporciona à formulação viscosidade e dulçor. Quando é desejável ou necessário que a formulação líquida seja isenta de açúcar, a sacarose pode ser substituída por substâncias não glicogênicas doadoras de viscosidade (gomas, derivados celulósicos) ou sintéticos (derivados carboxivinílicos). Para melhorar as propriedades organolépticas, pode-se adicionar edulcorantes artificiais e agentes flavorizantes e aromatizantes, como o aspartame, o ciclamato de sódio, ou naturais como steviosídeos, que podem substituir a sacarina, entretanto, o poder edulcorante é menor. “Normalmente é aconselhável uma combinação de aromatizantes para mascarar sensações do sabor. Alguns são utilizados como dessensibilizadores, como é o caso do mentol, que emana um aroma e cheiro próprio”, observa Erika.

Tecnologia de produção

Se para o paciente o uso do medicamento na forma líquida apresenta vantagens importantes e algumas desvantagens, no que tange à tecnologia de produção, as formulações de líquidos estéreis e não estéreis exigem desafios significativos para serem produzidos. Determinados fármacos são instáveis e alguns são pouco solúveis, sendo necessárias técnicas especiais para solubilização. “O sistema é instável, as partículas sofrem sedimentação exigindo agitação para a uniformização das partículas antes do uso”, observa Erika Fonseca. A professora acrescenta que os medicamentos líquidos apresentam menor estabilidade físico-química e microbiológica do que as formas sólidas. “Há, ainda, maior possibilidade de alterações físico-químicas e de contaminação desses compostos”, frisa.

Para o formulador, a estabilidade do fármaco no produto final é de importância fundamental. Em geral, os fármacos são menos estáveis em meio aquoso do que em formas farmacêuticas sólidas. “A estabilidade de produtos farmacêuticos é afetada por fatores extrínsecos ou ambientais, como temperatura, umidade e luz, e intrínsecos ou relacionados ao produto, como propriedades físico-químicas dos constituintes, concentração dos reagentes, pH, radiação, presença de catalizadores, forma farmacêutica, processo de fabricação e materiais de embalagem”, revela a professora Erika. Antes de comercializar um novo fármaco a indústria deve realizar uma série de ensaios para avaliar sua conformidade com as especificações físico-químicas e microbiológicas sob condições compatíveis com a zona climática da região geográfica onde o produto será distribuído. “Por isso são realizados estudos em câmaras climáticas qualificadas de acordo com normas internacionais, que proporcionam o controle da luz, temperatura e umidade em seu interior”, destaca a especialista. São estudos de estabilidade acelerada, de estabilidade de longa duração e de estabilidade de acompanhamento. O procedimento inclui também a realização de testes sob condições de estresse especificadas pela Anvisa, “cujo objetivo não é degradar totalmente o composto, mas promover uma degradação de pequena extensão (10-30%), evitando a formação de compostos secundários”, acrescenta Erika.

Outros desafios estão relacionados à conservação dos líquidos. Há algumas reações químicas que podem envolver interação entre seus componentes gerando uma formulação inadequada ou uma interação entre o produto e o recipiente, alterando o pH da formulação. Assim, os componentes sensíveis ao pH formam precipitados ou uma reação direta com a água – a hidrólise. Para contornar potenciais interferentes, podem ser adotadas estratégias, como formulações extemporâneas, uso de excipientes funcionais e condições de armazenamento e acondicionamento diferenciadas. “O pH que satisfaz o requisito de solubilidade não deve se sobrepor aos requisitos do produto, como a estabilidade e a compatibilidade fisiológica. Se o pH é um fator crítico para manter a solubilidade do fármaco, o sistema deve ser devidamente tamponado. O tampão precisa ter uma capacidade adequada na gama de pH necessária, ser biologicamente seguro para o uso pretendido, permitir um sabor e uma coloração aceitáveis do produto e não deve ter um efeito nefasto sobre a estabilidade do produto final”, afirma Erika Fonseca.

Preparações farmacêuticas sujeitas à hidrólise devem ter a água reduzida ou eliminada do sistema, sugere a professora. “Em formulações líquidas a água pode ser substituída por outros solventes, o fármaco hidrolisável poderá ser suspenso em veículo não-aquoso ou utilizado extemporaneamente.” A refrigeração e a manutenção do pH dentro de uma faixa ótima geralmente garantem uma melhor estabilidade do produto. Por fim, o processo oxidativo pode ser evitado por meio do uso de antioxidantes, os quais fornecerão elétrons ou prótons lábeis captados por radicais livres promotores de instabilidade. Para tanto, é preciso que o adjuvante seja mais prontamente oxidado que o fármaco.

Também o ambiente onde são produzidos líquidos tem que ser controlado dentro dos limites especificados, que preveem controle de particulados, da temperatura e da umidade. “Uma das estratégias para proporcionar a estabilização de fármacos contra oxidação pode envolver desde o acondicionamento em ambientes anaeróbios até o uso de antioxidantes, quelantes e procedimentos como remoção de metais e estocagem em ambientes escuros”, diz Érika, lembrando que a umidade influencia bastante na estabilidade de um fármaco. De acordo com as Boas Práticas de Fabricação, a disposição das instalações exige pavimentos com cimento de densidade elevada, parede de tijolo com acabamento em epóxi, mezanino com revestimento em epóxi e drenos; paredes lisas, revestidas em epóxi, laváveis e mosaico vidrado; tetos suspensos e acústicos; iluminação com lâmpadas de 75 e embutidas; e opcionalmente ar condicionado para controle de conforto.

Qualidade é fundamental

Embora a responsabilidade por assegurar a qualidade do produto na indústria farmacêutica pertença ao departamento de garantia de qualidade, a tarefa envolve muitos outros setores. “O departamento industrial é o maior responsável por manter a qualidade do produto durante a sua fabricação. Mas a fabricação de um produto de qualidade é resultado de um esforço contínuo e dedicado do pessoal da garantia de qualidade, da produção e do controle de qualidade, que dentro da fábrica desenvolvem, executam e confirmam a eficácia dos procedimentos operacionais, controlam a qualidade do produto durante todo o processo produtivo e também após a produção”, afirma Erika Fonseca. “Tudo tem que funcionar em conformidade, inclusive os equipamentos. Qualquer alteração na velocidade do tanque reator, no sistema de armazenamento, de aquecimento ou de bombeamento do líquido, que leva de uma máquina a outra, pode prejudicar o produto final”, previne Anderson Carniel. 

Na produção das formas farmacêuticas estéreis, há controle não só do processo de fabricação e do produto final, como também de todo o ambiente e intervenientes que envolvem a produção. “Começa na investigação e desenvolvimento do produto, incluindo a pré-formulação e os aspectos físicos, químicos, terapêuticos e toxicológicos. Levam-se em consideração os materiais, o controle do processo e o produto final, incluindo as especificações e os testes para a substância ativa, para os excipientes e para o próprio produto, bem como os testes de estabilidade especifica, a isenção de contaminação microbiológica e a armazenagem adequada do medicamento. Também os recipientes, a embalagem e a rotulagem são considerados, para se assegurar que os sistemas de fechamento do recipiente proporcionem uma proteção do produto contra fatores como a umidade, oxigênio, luz, volatilidade e interação medicamento e embalagem.

Além disso, é necessário todo lote do produto seja identificado, desde as matérias-primas usadas na sua produção até o destino final. “Os sólidos que serão adicionados à formação líquida devem ser preparados antecipadamente, com análises precisas quanto à sua diluição. A formulação precisa é o que vai atestar a eficácia do produto final”, acentua Anderson Carniel. Uma vez finalizado o processo de produção, realiza-se a comprovação da qualidade do produto por meio de diversificados testes, de acordo com cada tipo de formulação. “A fabricação de líquidos estéreis deve ser feita em áreas limpas, com entradas de pessoal e material realizada por meio de antecâmaras (antessalas) e as operações para o preparo de materiais – recipientes e tampa, envase e esterilização – devem ser realizadas em áreas separadas dentro da área limpa”, sublinha Erika Fonseca. O manuseio e o envase de produtos devem ser preparados assepticamente, com equipamentos previamente esterilizados em ambiente grau A, circundado por um ambiente grau B. A transferência de recipientes deve ser feita com eles parcialmente fechados, como os utilizados em liofilização em ambiente grau A circundado por ambiente grau B antes de completamente fechados. Ou transferir em bandejas fechadas e em ambiente grau B. Devem-se redigir especificações adequadas também sobre as matérias-primas, de forma precisa e completa, bem como detalhes específicos dos métodos de ensaio, tipo de instrumentos a utilizar e dos métodos de amostragem.

Apesar do rigoroso controle do processo que é exigido, alguns equívocos podem ocorrer na produção. Entre eles, erros de formulação, separação de emulsão, sedimento compactado em suspensão, fusão de supositórios fora da faixa ideal, sistema conservante ineficaz, dissolução insuficiente do fármaco, aparecimento de cristais em soluções, formação de sedimento compactado, alteração do tamanho de partícula, polimorfismo do fármaco, alterações de aspecto (cor), oxidação e hidrólise. Incorreções como essas podem comprometer o medicamento e levar riscos ao paciente. “Formas farmacêuticas liquidas exigem muita atenção quanto à sua estabilidade. Dados clínicos revelam contaminação microbiana de produtos de administração oral e tópico”, adverte Erika Fonseca. “Além de apresentar problemas de saúde para o paciente, o medicamento pode provocar agravamento do seu quadro de saúde para o qual o medicamento foi prescrito.”

De acordo com a professora do ICTQ, algumas medidas adotadas durante o processo de produção de medicamentos líquidos reduzem potenciais riscos. “As matérias-primas devem estar de acordo com as especificações, assegurando sua identidade, pureza, uniformidade e carga microbiológica. A água utilizada deve ser purificada por destilação ou por tratamento com resinas troca iônicas e todo equipamento utilizado deve ser limpo e higienizado (esterilizado se possível). Solutos devem ser usados em pequenas concentrações, bem dissolvidos previamente a fim de assegurar a completa dissolução da substância. Deve-se realizar uma contagem microbiológica em todos os materiais de embalagem que ficam em contato com o produto”, afirma a professora do ICTQ.

No caso das farmácias magistrais, o controle de qualidade de líquidos também exige atenção ao processo de produção. Desde 2006, essas empresas devem obedecer às regras para garantir maior segurança, qualidade e eficácia das fórmulas manipuladas. A RDC 214 da Anvisa traz exigências para armazenamento, avaliação farmacêutica da prescrição, fracionamento, conservação, transporte, dispensação das formulações e atenção farmacêutica aos usuários. As farmácias de manipulação, segundo a RDC no 67/2007, devem dispor de laboratório de controle de qualidade capacitado para realizar os testes de controle do processo e da preparação manipulada, verificando as características organolépticas, o pH, peso médio, friabilidade, grau ou teor alcoólico, densidade, volume, viscosidade, teor de princípio ativo e pureza microbiológica, sendo que os últimos podem ser terceirizados.  A RDC 67 prevê ainda que a farmácia deve possuir procedimentos operacionais escritos e estar devidamente equipada para realizar análise de lote a lote dos produtos de estoque mínimo, mantendo os registros dos resultados – caracteres organolépticos, pH, peso médio, viscosidade, grau ou teor alcoólico, densidade, volume, teor do princípio ativo, dissolução e pureza microbiológica.

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