Especialistas são unânimes ao afirmar que para se obter medicamentos eficazes e seguros é imprescindível o controle da qualidade dos insumos farmacêuticos ativos (IFAs), que são os farmoquímicos ou princípios ativos, a principal matéria-prima dos medicamentos. Tais fármacos são obtidos por processos extrativos dos reinos animal (por exemplo, a heparina), mineral (cloreto de sódio) e vegetal (rutina). Podem também ser obtidos por síntese química (omeprazol), por processos biotecnológicos clássicos, como fermentativos (penicilina) e enzimáticos (amoxicilina). Por fim, dá para se obtê-los por processos biotecnológicos (alfainterferona). Tendo em vista sua importância nas formulações, insumo de baixa qualidade influi negativamente no desempenho do medicamento (biodisponibilidade), na sua estabilidade (prazo de validade) e no próprio processo de fabricação do medicamento. “A qualidade do insumo implica diretamente em todo o processo de produção”, sustenta Luciana Cabrera Rodrigues, coordenadora de Controle de Qualidade e professora de pós-graduação do ICTQ.
Apesar de ser um dos maiores produtores mundiais de medicamentos, o Brasil importa a maior parte dos insumos que utiliza para fabricá-los. A produção nacional de farmoquímicos corresponde a aproximadamente 2% do utilizado pela indústria farmacêutica e a maior parte está restrita a excipientes, que são commodities, e algumas moléculas. Os excipientes, também conhecidos como adjuvantes farmacotécnicos, são produtos químicos, embora sem ação farmacológica, usados para a elaboração de formas farmacêuticas que levam os farmoquímicos para os organismos a que se destinam, seja humano ou veterinário. Entre eles, estão os espessantes, aglutinantes, lubrificantes e diluentes.
De todos os insumos farmacêuticos fornecidos para o Brasil, 31% provêm da China, 12% são fabricados na Alemanha, mesmo percentual comprado da Índia (que junto com a China são os dois maiores produtores mundiais), 7% dos EUA (em especial, insumos biotecnológicos e biológicos, que o país é um dos maiores fornecedores globais) e 6% da Suíça. As informações são da Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos (Abiquifi). De acordo com a entidade, o principal insumo farmacêutico comprado no exterior pelo Brasil é a insulina, utilizada no tratamento de diabetes – 87,2% do total consumido no País é importado. Em seguida vêm a amoxilina e seus sais, com 53,2% proveniente do exterior, e a prostaglandina, com 47,8%.
Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), para registro de um medicamento por uma indústria farmacêutica brasileira, é necessário peticionar paralelamente o registro do medicamento e do respectivo insumo farmacêutico ativo, seja ele nacional ou importado. O registro do IFA não está vinculado ao registro do medicamento. Cada produto tem seu tempo, petição, análise e publicação de registro independente. O registro de IFA pode também ser peticionado antes do medicamento. Caso haja cancelamento do registro do IFA, o laboratório deverá providenciar outro fornecedor qualificado e com IFA registrado para continuar a fabricação do medicamento. A Anvisa pondera que quando determinado IFA é registrado por uma importadora se outra
desejar importar o mesmo IFA será necessário registrá-lo também. Contudo, uma empresa poderá adquirir o produto da importadora que já possui registro sem a necessidade de um registro próprio.
Em que pese a expressiva quantidade de insumos farmacêuticos vinda do exterior, o controle de qualidade dos insumos importados é tratado da mesma forma que os nacionais, ou seja, ambos devem atender aos testes e especificações vigentes do método de análise e à fiscalização da Anvisa. “Os fabricantes de insumos importados devem enviar os estudos de estabilidade conduzidos na zona climática IV-b (onde o Brasil está situado e se caracteriza por ser uma região quente e muito úmida) e, assim, garantir que ele atende a qualidade na zona climática proposta”, afirma Luciana Rodrigues. Já o setor de garantia da qualidade do laboratório, lembra a professora, deve ter um plano de auditoria para os fabricantes internacionais, a fim de monitorar a qualificação realizada inicialmente.
No geral, os laboratórios iniciam a checagem da qualidade dos insumos comprados de terceiros pela qualificação documental do fornecedor. Em alguns casos especiais os laboratórios também realizam a inspeção in loco de fornecedores estrangeiros. O professor do ICTQ Anderson Freire Carniel lembra que a qualificação do fornecedor de insumo farmacêutico passa também por análises dos registros feitas em órgãos reconhecidos internacionalmente. “Parâmetros como a certificação na Food and Drug Administration (FDA), dos EUA, são levados em conta. Mas visitas às unidades produtivas do fornecedor no exterior não estão descartadas. Muitos laboratórios fazem isso”, diz Carniel. No caso de produtores nacionais é realizada também uma qualificação de Boas Práticas de Fabricação (BPF) com inspeção na unidade produtora. Todos os fornecedores devem realizar o controle de qualidade da sua matéria-prima, incluindo os laboratórios que também fabricam insumos.
Controle rigoroso desde o início
Farmoquímicos representam o início da cadeia produtiva da indústria farmacêutica. Para assegurar a qualidade na produção de medicamentos, a Anvisa exerce controle burocrático junto aos laboratórios farmacêuticos, que são incumbidos de qualificar fornecedores, realizar inspeções e controlar a qualidade da documentação e do insumo. Não existe um controle específico da agência sobre a matéria-prima dos medicamentos. Seu enfoque está no produto final. Contudo, a agência tem cadastrado todos os insumos farmacêuticos ativos usados no Brasil e acompanha sua utilização, sobretudo as notificações de farmoquímicos com desvios de qualidade.
De forma geral, cumpre-se um severo controle de qualidade no âmbito da cadeia de produção de medicamentos no País, de forma a detectar qualquer irregularidade que possa impactar no produto final, sendo que a qualidade do insumo é fundamental nesse processo. “O insumo representa o início da cadeia produtiva, logo é importante que a qualidade seja controlada desde o recebimento até a sua liberação e armazenamento”, afirma Luciana Rodrigues. Os insumos farmacêuticos passam por testes em laboratório de controle de qualidade físico-químico e microbiológico. O fluxo de entrada do insumo na produção envolve:
- Conferência do laudo do fabricante e nota fiscal com a etiqueta do material recebido
- Identificação do insumo por meio do NanoRam – a espectroscopia Raman é uma técnica fotônica de alta resolução que pode proporcionar, em poucos segundos, informação química e estrutural de quase qualquer material, composto orgânico ou inorgânico permitindo, assim, sua identificação
- Entrada do insumo nos laboratórios de controle de qualidade físico-química e microbiológico para análise conforme metodologia e especificação vigente
- Liberação do insumo para produção apenas se atender todos os testes e especificações
A professora do ICTQ observa que se o insumo não for utilizado novos testes serão exigidos posteriormente. “Caso parte do insumo seja armazenada, é necessário reanalisar essa quantidade após seis meses ou um ano, dependendo do produto, e assim garantir que o insumo manteve a qualidade após esse período.” O professor Anderson Carniel acrescenta, ainda, a importância da atenção ao transporte dos insumos. “Todos os controles dentro da indústria são importantes, assim como a verificação na origem, mas é igualmente fundamental o controle no transporte. Por exemplo, um produto que vem da China ou da Índia leva cerca de 40 dias de navio para aportar no Brasil. Sem os devidos cuidados o insumo pode chegar oxidado. Neste caso, torna-se impróprio para uso, uma vez que perderá eficácia medicinal, podendo gerar efeitos colaterais no medicamento, liberando substâncias tóxicas ou radicais livres no organismo, que estão ligados a processos tumorais.”
No processo de qualificação do fornecedor é feita uma análise documental do Drug Master File (DMF) do produto em si, com avaliação da rota de síntese e várias outras características do produto antes, durante e após sua fabricação. Por fim, é feito o envio de amostras para desenvolvimento de testes farmacotécnicos – se para uma formulação nova – ou de testes de adequação a formulações já existentes. O setor de garantia da qualidade responde pela qualificação do fabricante e fornecedor do insumo por meio da análises e auditorias periódicas, com o intuito de garantir que as BPF estejam sendo seguidas conforme legislação vigente. “Os colaboradores envolvidos na análise e liberação dos insumos (amostradores, técnicos, analistas, surpervisores) são devidamente treinados nos procedimentos que envolvem o processo e métodos de análise, garantindo que os resultados obtidos estejam em sintonia com os parâmetros exigidos”, destaca Luciana Rodrigues.
Erros mais comuns que podem ocorrer na avaliação dos insumos:
- Certificado de análise do fabricante não condizente com o vigente na empresa
- Ausência de DMF para os insumos ativos
- Condições de armazenamento não claras no certificado ou na etiqueta do insumo
- Descrição do insumo não condizente com o teste físico descrito no método de análise
- Denominação Comum Brasileira (DCB) não condizente com a cadastrada na empresa compradora do insumo
- Alteração do endereço do site de fabricação do insumo sem aviso prévio à empresa compradora
- Falta de referências no certificado de análise do insumo do fabricante
- Ausência da informação referente ao grau do insumo
- Certificado de análise do fabricante com resultados em texto, sendo que a especificação está em numeral
- Interpretação do material analisado – por exemplo, cor ou odor, que podem ter apreciação com alguma subjetividade
Riscos envolvidos
O controle de insumos é parte integrante das BPF, pois deve atender aos critérios de qualidade propostos na legislação vigente desde a sua fabricação, distribuição, análise e liberação para produção. “O insumo deve estar adequado para a produção, pois caso esteja com algum desvio de qualidade com certeza ele impactará na validação de processo, como, por exemplo, na fase de mistura (separação de fases), compressão e envase”, diz Luciana Rodrigues. Na validação de processo são avaliadas todas as fases do sistema produtivo, sendo que cada uma é analisada pelo laboratório de controle de qualidade em quantidade representativa em nível estatístico. Considera-se que os insumos liberados para a fabricação do produto estão adequados aos métodos e especificações vigentes. Já os órgãos de controle avaliam se o fabricante do insumo está qualificado e se recebe inspeções periódicas para garantir sua qualidade. Verificam-se também in loco os laudos de análise do fabricante e interno, pois ambos devem garantir que as análises foram executadas em sua totalidade e os resultados atendem as especificações vigentes. Inspecionam-se, ainda, as condições de armazenagem, amostragem e pesagem do insumo, verificando se estão sendo realizadas de maneira adequada e conforme orientação da documentação do fabricante.
Um medicamento que utilize insumo cujas características físico-químicas e microbiológicas estejam em desconformidade com o registro pode apresentar alterações que comprometem o desempenho do produto e consequentemente podem alterar a segurança, eficácia e qualidade do medicamento. A utilização de um insumo de má qualidade pode acarretar em prejuízo do tratamento de um paciente, que pode ser intoxicado ou não ter o efeito desejável do tratamento. Um produto nessas condições é impróprio para o uso porque é impossível determinar sua condição de qualidade após uma formulação. Além disso, é impossível precisar o que pode suceder com a estabilidade da formulação e os efeitos colaterais do medicamento a ser utilizado pelos pacientes. O risco de um produto nestas condições é muito grande e constitui uma infração grave do ponto de vista sanitário, civil e criminal. Luciana Rodrigues lembra que o farmacêutico ou o responsável técnico são os profissionais que respondem pela qualificação do insumo na indústria.
Consequências de um insumo inadequado:
- Problemas no processo produtivo como solubilidade do insumo, compressão em caso de sólidos, precipitação do insumo em caso de líquidos, alteração da aparência do produto
- Resultados dos testes realizados no produto acabado fora da especificação
- Resultados dos testes realizados no produto acabado fora da especificação no estudo de estabilidade de acompanhamento
- Reprovação do lote
- Denúncia à Anvisa
- Reclamação de mercado devido ao aspecto do produto e eficácia
- Reação adversa no paciente
“Somente com a qualificação dos fabricantes, auditorias periódicas e desenvolvimentos de novos fabricantes podemos prevenir e reduzir os potenciais de risco”, salienta a professora Luciana Rodrigues. “O desenvolvimento de um segundo fabricante para o mesmo insumo é uma saída para desvios da qualidade e de fornecimento, e um plano de auditoria nacional e internacional assegura a qualificação do material recebido.”