À medida que o novo coronavírus segue espalhando doença, morte e catástrofe por todo mundo, praticamente nenhum setor econômico vem sendo poupado dos danos. Apesar disso, e em meio ao caos da pandemia global, uma certa indústria não apenas sobrevive, mas vem tendo lucros consideráveis.
“As empresas farmacêuticas enxergam no Covid-19 uma oportunidade de negócios sem precedentes”, declarou Gerald Posner, autor de “Pharma: Greed, Lies and the Poisoning of America” (“Indústria farmacêutica: ganância, mentiras e o envenenamento da América”, ainda sem tradução no Brasil). O mundo, é claro, precisa dos produtos farmacêuticos. Para a epidemia do novo coronavírus, em especial, precisamos de tratamentos, vacinas, e, nos EUA, testes. Dezenas de empresas estão agora competindo para produzi-los.
“Estão todas nessa disputa”, diz Posner, que descreve como enormes as recompensas esperadas pela vitória. A crise global “será potencialmente um imenso sucesso para a indústria em termos de vendas e lucros”, avaliou ele, e acrescentou que “quanto pior a pandemia, maior a expectativa de lucro”.
A possibilidade de ganhar dinheiro com produtos farmacêuticos já é excepcionalmente grande nos EUA, onde estão ausentes os controles básicos de preços que existem em outros países, o que dá às empresas mais liberdade para estabelecer seus preços do que em qualquer outro lugar do mundo. Durante a atual crise, os fabricantes de produtos farmacêuticos podem ter ainda mais flexibilidade que de costume, em razão das disposições que os lobistas do setor conseguiram inserir no pacote de recursos de US$ 8,3 bilhões para combate ao coronavírus, aprovado na semana passada, e que maximizam seus lucros decorrentes da pandemia.
Inicialmente, os legisladores tentaram garantir que o governo federal colocasse um limite aos lucros que as empresas farmacêuticas poderiam ter sobre vacinas e tratamentos para o novo coronavírus que fossem desenvolvidos com o uso de recursos públicos. Em fevereiro, o deputado Jan Schakowsky, do Partido Democrata de Illinois, juntamente com outros membros da Casa, escreveu para o presidente Trump, pleiteando que ele “assegurasse que quaisquer vacinas e tratamentos desenvolvidos com o uso de dinheiro dos contribuintes americanos permanecessem acessíveis, disponíveis e com preços razoáveis”. Esse objetivo não poderia ser atingido, explicaram, “se as empresas farmacêuticas tiverem autoridade para fixar preços e controlar a distribuição, colocando os interesses de lucratividade acima das prioridades de saúde”.
Quando os recursos para o coronavírus estavam em negociação, Schakowsky tentou de novo, e escreveu em 2 de março para o secretário de Saúde e Serviços Humanos, Alex Azar, dizendo que seria “inaceitável que os direitos de produção e comercialização daquela vacina sejam posteriormente transferidos para uma indústria farmacêutica por meio de uma licença exclusiva, sem estabelecer condições de preço e acesso, permitindo à empresa cobrar o que quiser e basicamente vender a vacina de volta para o mesmo público que financiou seu desenvolvimento”.
Muitos Republicanos, porém, se opuseram a incluir no projeto de lei disposições que restringissem a lucratividade do setor, sob o argumento de que isso sufocaria a pesquisa e a inovação. Embora Azar – que atuou como lobista principal e chefe das operações nos EUA da gigante farmacêutica Eli Lilly antes de fazer parte do governo Trump – tenha assegurado a Schakowsky que compartilhava de suas preocupações, o projeto tramitou sem interferir na possibilidade de que as empresas farmacêuticas estabeleçam preços exorbitantes para os medicamentos e vacinas que desenvolverem com dinheiro público.
O texto final do pacote de incentivos não apenas omitiu as disposições que teriam limitado os direitos de propriedade intelectual dos fabricantes de medicamentos, mas efetivamente proibiu o governo norte-americano de tomar qualquer medida caso entenda que os preços dos tratamentos e das vacinas desenvolvidos com recursos públicos estejam altos demais.
“Esses lobistas merecem uma medalha de seus clientes da indústria farmacêutica, porque eles aniquilaram o dispositivo de propriedade intelectual”, disse Posner, acrescentando que as disposições que proíbem o governo de responder ao aumento excessivo de preços são ainda piores. “É ultrajante permitir que eles tenham tanto poder durante uma pandemia.”
A verdade é que lucrar em cima do investimento público também é o padrão da indústria farmacêutica. Desde os anos 1930, os Institutos Nacionais de Saúde, National Institutes of Health, ou NIH, dos EUA injetaram mais de US$ 900 bilhões em pesquisas que os laboratórios usaram para patentear medicamentos de marca, segundo os cálculos de Posner. Cada um dos medicamentos aprovados entre 2010 e 2016 pela Administração Federal de Alimentos e Medicamentos, a Food and Drug Administration, ou FDA, envolveu pesquisa científica financiada com recursos públicos por meio dos NIH, segundo o grupo de defesa de direitos Patients for Affordable Drugs [Pacientes pelos Medicamentos Acessíveis]. Os contribuintes investiram mais de US$ 100 bilhões nessas pesquisas.
Dentre os medicamentos desenvolvidos com alguma medida de financiamento público, e que se tornaram grande fonte de lucros para as empresas privadas, estão o AZT, contra o HIV, e o tratamento contra o câncer Kymriah, que a Novartis atualmente vende por US$ 475 mil.
Em seu livro sobre a indústria farmacêutica, Posner aponta um outro exemplo de empresas privadas que obtêm lucros exorbitantes de medicamentos produzidos com financiamento público. O medicamento antiviral sofosbuvir, usado para tratar a Hepatite C, derivou de pesquisa básica financiada pelos NIH. Esse medicamento é atualmente propriedade do laboratório Gilead Sciences, que cobra mil dólares por comprimido, mais do que muitas pessoas com Hepatite C conseguem pagar; o laboratório teve um lucro de US$44 bilhões com esse medicamento durante seus primeiros três anos no mercado.
“Não seria ótimo se parte dos lucros desses medicamentos retornasse para a pesquisa pública nos NIH?”, pergunta Posner.
Mas os lucros na verdade financiaram bônus gordos para os executivos dos laboratórios e agressivas campanhas de marketing desses medicamentos. Eles também foram usados para impulsionar ainda mais a lucratividade do setor farmacêutico. Segundo os cálculos da Axios, os laboratórios respondem por 63% do total dos lucros da assistência de saúde nos EUA, em parte devido ao sucesso de seu lobby. Em 2019, a indústria farmacêutica gastou US$ 295 milhões em lobby, mais do que qualquer outro setor dos EUA. É quase o dobro do segundo colocado, o setor de eletrônicos, produção e equipamentos, e bem mais que o dobro do que as empresas de óleo e gás gastaram com lobby. O setor também investiu pesadamente em contribuições de campanha para candidatos ao legislativo, tanto do partido Democrata quanto do Republicano. Ao longo do processo das primárias democratas, Joe Biden tem sido o principal destinatário de contribuições do setor farmacêutico e do setor de assistência de saúde.
Os recursos assim empregados pela indústria farmacêutica a deixaram em uma posição bastante favorável na atual pandemia. Enquanto as bolsas de valores despencaram diante da resposta confusa do governo Trump à crise, mais de 20 laboratórios que atualmente trabalham no desenvolvimento de uma vacina e de outros produtos relativos ao novo vírus SARS-CoV-2 foram poupados desse efeito. As ações da empresa de biotecnologia Moderna, que começou há duas semanas a recrutar participantes para um ensaio clínico de sua nova possível vacina contra o coronavírus, dispararam nesse período.
Na quinta-feira (12), um dia de carnificina generalizada nas bolsas de valores, as ações da Eli Lilly também tiveram considerável subida depois que a empresa anunciou que estava se juntando aos esforços para desenvolver uma terapia para o novo coronavírus. A Gilead Sciences, que está desenvolvendo um potencial tratamento, também está indo bem. As ações da Gilead já estavam em alta desde a notícia de que seu medicamento antiviral remdesivir, criado para o tratamento dos casos de Ebola, estava sendo usado em pacientes com Covid-19. No dia 14, depois que o Wall Street Journal noticiou que o medicamento teve um efeito positivo sobre um pequeno número de passageiros infectados em um navio de cruzeiro, as ações subiram ainda mais.
Diversas empresas, incluindo Johnson & Johnson, DiaSorin Molecular, e QIAGEN divulgaram que estão recebendo recursos do Departamento de Saúde e Serviços Humanos por seus esforços em relação à pandemia, mas não está claro se a Eli Lilly e a Gilead estão usando dinheiro público em seu trabalho referente ao vírus. Até esta data, o departamento não publicou uma lista de destinatários de financiamento. E, segundo a Reuters, o governo Trump instruiu as principais autoridades de saúde a tratar todas as discussões relativas ao coronavírus como confidenciais, e excluiu os funcionários sem credenciais de segurança das discussões sobre o assunto.
Ex-lobistas importantes da Eli Lilly e da Gilead agora fazem parte da Força-Tarefa do Coronavírus na Casa Branca. Azar atuou como diretor de operações nos EUA pela Eli Lilly e fez lobby para a empresa, e Joe Grogan, atualmente diretor do Conselho de Políticas Internas, foi o principal lobista da Gilead Sciences.
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