Num momento em que os micróbios estão ficando mais resistentes aos antibióticos comuns, muitas empresas que estão desenvolvendo versões novas dos medicamentos estão perdendo dinheiro e fechando suas portas. Isso compromete gravemente os esforços para conter o avanço de bactérias letais, resistentes a antibióticos.
Startups fabricantes de antibióticos, como a Achaogen e a Aradigm, faliram nos últimos meses; gigantes farmacêuticos como Novartis e Allergan abandonaram a área, e muitas das empresas americanas remanescentes de antibióticos estão perto da insolvência. Uma das maiores desenvolvedoras de antibióticos, a Melinta Therapeutics, avisou reguladores recentemente que suas reservas de dinheiro estão se esgotando.
Especialistas dizem que as perspectivas financeiras sombrias para as poucas companhias ainda engajadas com a pesquisa de antibióticos afastam os investidores e ameaçam estrangular o desenvolvimento de novos medicamentos que podem salvar vidas, justamente quando eles são urgentemente necessários.
“Esta é uma crise que deveria preocupar a todos”, disse Helen Boucher, especialista em doenças infectocontagiosas no Tufts Medical Center e membro do conselho de assessoria da Presidência sobre o combate a bactérias resistentes a antibióticos.
O problema é simples: as empresas que investiram bilhões de dólares para desenvolver os medicamentos não descobriram uma maneira de ganhar dinheiro com suas vendas. Diferentemente dos remédios para problemas crônicos como diabetes ou artrite reumatoide, que têm vendas enormes, a maioria dos antibióticos é prescrita por apenas alguns dias ou semanas, e muitos hospitais não se dispõem a pagar um preço alto pelos medicamentos novos. O impasse político no Congresso americano vem frustrando os esforços legislativos para encontrar uma solução.
Os desafios que se colocam para os fabricantes de antibióticos chegam em um momento em que muitas das drogas criadas para combater infecções estão ficando ineficazes contra bactérias e fungos, na medida em que o uso excessivo de medicamentos presentes há décadas levou esses fungos e bactérias a desenvolver defesas contra as drogas.
Hoje, segundo relatório do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) divulgado no mês passado, infecções resistentes a medicamentos matam 35 mil pessoas por ano nos Estados Unidos e levam 2,8 milhões a adoecer. Sem novos medicamentos, a ONU diz que os mortos em todo o mundo podem chegar a 10 milhões por ano até 2050.
Os antibióticos mais novos já se mostraram eficazes contra alguns dos micróbios mais letais e resistentes, incluindo o antraz, pneumonia bacteriana, E. coli e infecções de pele multirresistentes. A experiência da empresa de biotecnologia Achaogen é um exemplo. A companhia passou 15 anos e gastou US$1 bilhão (R$ 4 bilhões) para conseguir a aprovação pela Food and Drug Administration (FDA) do Zemdri, um produto para combater infeccões do trato urinário. Em julho a Organização Mundial de Saúde (OMS) acrescentou o Zemdri à sua lista de medicamentos novos essenciais.
Mas quando isso aconteceu, não restara ninguém na Achaogen para festejar.
No segundo bimestre de 2018, com o preço de suas ações em quase zero e seus executivos não tendo conseguido levantar as centenas de milhões de dólares necessários para levar o medicamento ao mercado e fazer estudos clínicos adicionais, a empresas vendeu seus equipamentos de laboratório e demitiu seus cientistas remanescentes. Ela declarou falência em abril.
Especialistas em saúde pública dizem que a crise só pode ser resolvida com intervenção governamental. Algumas ideias propostas e que têm respaldo amplo são o aumento dos reembolsos às empresas pela criação de antibióticos novos, verbas federais para formar e armazenar estoques grandes de medicamentos eficazes contra micróbios multirresistentes e incentivos financeiros para startups e para atrair de volta as gigantes do setor farmacêutico. Apesar de contar com apoio de republicanos e democratas, a legislação que visa enfrentar o problema está parada no Congresso.
“Se este problema não for resolvido nos próximos seis a 12 meses, os últimos dos moicanos vão quebrar, e os investidores levarão uma ou duas décadas para voltar ao mercado”, observou Chen Yu, capitalista que já investiu no setor da criação de novos antibióticos.
A indústria enfrenta mais um desafio: tendo sido bombardeados há anos com avisos para evitar o uso exagerado de antibióticos, os médicos relutam em prescrever os medicamentos mais recentes. Isso limita a capacidade dos fabricantes de recuperar os investimentos que fizeram na descoberta dos compostos e para conseguir sua aprovação regulatória. E, como parte de esforços para poupar dinheiro, muitas farmácias hospitalares oferecem remédios genéricos mais baratos aos pacientes, mesmo quando existe um produto mais novo e de qualidade muito superior.
“Nunca diríamos a um paciente com câncer ‘por que você não experimenta primeiro usar um remédio da década de 1950, e se não der certo a gente tenta com um dos anos 1980’”, disse Kevin Outterson, diretor executivo da CARB-X, organização sem fins lucrativos financiada pelo governo que faz doações a empresas que trabalham com resistência antimicrobiana. “Mas fazemos isso com antibióticos, e está tendo um efeito realmente adverso sobre os pacientes e sobre o mercado.”
Muitos dos medicamentos novos não são baratos, pelo menos não em comparação com os genéricos mais antigos, que podem custar alguns dólares por comprimido. Um tratamento normal com Xerava, antibiótico recém-aprovado que combate infecções multirresistentes, pode sair por até US$ 2.000 (R$ 8.000).
“Diferentemente dos medicamentos caros usados contra o câncer, que estendem a sobrevida do paciente por três a seis meses, antibióticos como o nosso realmente salvam a vida da pessoa”, disse Larry Edwards, executivo-chefe da Tetraphase Pharmaceuticals, a fabricante do Xerava. “É frustrante.”
Sediada em Watertown, Massachussetts, a Tetraphase está tendo dificuldade em convencer hospitais a adotar o Xerava, que levou mais de uma década para ser descoberto e levado ao mercado, apesar de o medicamento ser capaz de derrotar micróbios multirresistentes como o MRSA (Staphylococcus aureus resistente à meticilina) e o CRE (enterobactéria resistente a carbapenem), que mata 13 mil pessoas por ano.
O preço das ações da Tetraphase estava em US$ 40 (R$ 161) um ano atrás e agora flutua em torno de US$ 2 (R$ 8). Para reduzir custos, Larry Edwards recentemente fechou os laboratórios da empresa, demitiu 40 cientistas e abandonou planos de desenvolver três outros antibióticos promissores.
O futuro da Melinta Therapeutics, de Morristown, Nova Jersey, é ainda mais
desanimador. O preço das ações da companhia caiu 45% no mês passado, quando executivos divulgaram um aviso sobre suas perspectivas de longo prazo. A Melinta produz quatro antibióticos, um dos quais é o Baxdela, aprovado recentemente pela FDA para tratar o tipo de pneumonia resistente a drogas que frequentemente mata pacientes hospitalizados. Jennifer Sanfilippo, a executiva-chefe interina da Melinta, disse que espera que uma venda ou fusão compre mais tempo para a empresa conscientizar farmacêuticos hospitalares do valor de seus anbióticos e aumentar as vendas deles.
“Estas drogas são meus bebês e são urgentemente necessárias”, ela comentou.
Não é fácil criar compostos novos. Apenas duas classes novas de antibióticos foram introduzidas nos últimos 20 anos (as drogas novas, em sua maioria, são variações de outras já existentes), e o retorno financeiro minguante levou a maioria das empresas a abandonar o mercado. Nos anos 1980 havia 18 grandes empresas farmacêuticas que desenvolviam antibióticos novos; hoje há apenas três.
“A pesquisa científica é realmente difícil”, disse David Shlaes, ex-vice-presidente da Wyeth Pharmaceuticals e membro do conselho da organização sem fins lucrativos Global Antibiotic Research and Development Partnership. “E reduzir o número de pessoas que trabalham com isso, abandonando as pesquisas e o desenvolvimento de antibióticos, não nos levará a lugar algum.”
Ele explicou que um novo antibiótico pode custar US$ 2,6 bilhões (R$ 10,5 bilhões) para ser desenvolvido. Boa parte desse custo se deve aos fracassos sofridos ao longo do caminho.
Alguns dos maiores atores do setor se uniram para propor uma série de intervenções e incentivos que encarariam os antibióticos como um bem global. As medidas incluem a estender o prazo de exclusividade de antibióticos novos, para dar às empresas mais tempo para recuperar seus investimentos, e a criação de um programa para a formação de um estoque de antibióticos críticos, do mesmo modo como o governo federal americano armazena um estoque de medicamentos de emergência para enfrentar possíveis pandemias ou ameaças de bioterrorismo, como varíola ou antraz.
O DISARM Act, um projeto de lei apresentado ao Congresso este ano, instruiria o Medicare a reembolsar hospitais pela aquisição de antibióticos novos e criticamente importantes. A lei tem apoio bipartidário, mas ainda assim está parada.
Um de seus proponentes, o senador democrata Bob Casey, da Pensilvânia, disse que parte da relutância em fazê-la avançar vem do fato de que os preços crescentes de medicamentos vendidos com receita médica é uma questão politicamente delicada. “Há certa resistência institucional contra qualquer legislação que ofereça incentivos financeiros a empresas farmacêuticas”, ele disse.
Mas nem tudo está parado em Washington. Nos últimos dez anos a Autoridade Biomédica Avançada de Pesquisas e Desenvolvimento, ou Barda, um esforço federal para combater ameaças à saúde pública químicas, nucleares e de outros tipos, investiu US$ 1 bilhão (R$ 4 bilhões) em empresas que desenvolvem diagnósticos e drogas antimicrobiais promissoras que possam combater a resistência a antibióticos.
“Se não temos medicamentos para combater esses organismos multirresistentes, não estamos fazendo nosso trabalho de garantir a segurança dos americanos”, disse o diretor da agência, Rick A. Bright.
Ele próprio tem experiência em primeira mão com o problema. Dois anos ele sofreu um corte no polegar quando cuidava de seu jardim. O corte ficou infeccionado. O antibiótico que lhe foi receitado não teve efeito, nem qualquer dos seis outros que lhe deram no hospital. Ele tinha MRSA.
A infecção se espalhou, e os médicos programaram uma cirurgia para amputar o polegar. O médico receitou um último antibiótico, mas apenas depois de reclamar do custo e avisar que o convênio médico de Bright talvez não cobrisse o medicamento. Em questão de horas a infecção começou a ceder. A amputação foi cancelada.
“Se tivessem me dado o medicamento certo desde o começo, eu não teria tido que ir para a sala de emergência”, disse Bright.
A Achaogen e seus 300 funcionários tinham esperanças de uma intervenção do governo, especialmente porque a companhia recebera US$ 124 milhões (R$ 499 milhões) da Barda para desenvolver o Zemdri.
Dois anos apenas atrás, a empresa tinha capitalização de mercado de mais de US$ 1 bilhão (R$ 4 bilhões) e o Zemdri era tão promissor que foi o primeiro antibiótico que a FDA designou como terapia nova altamente promissora, acelerando seu processo de aprovação.
Ryan Cirz, um dos fundadores da Achaogen e seu vice-presidente de pesquisas, lembrou da época em que capitalistas de investimentos se interessaram pela companhia e investidores compravam suas ações assim que elas apareciam no mercado. “Não era hype”, disse Cirz, que é microbiólogo. “Era uma questão de salvar vidas.”
Em junho, investidores no leilão de falência arremataram os equipamentos de laboratório da empresa e os direitos ao Zemdri por uma ninharia: US$16 milhões (a compradora, a fabricante de genéricos Cipla USA, continua a fabricar o medicamento). Desde então, muitos dos cientistas da Achaogen encontraram emprego como pesquisadores em campos mais rentáveis como a oncologia.
Ryan Cirz perdeu todas suas economias, mas disse que está preocupado com algo maior. Sem antibióticos eficazes, muitos procedimentos médicos comuns podem passar a encerrar risco de vida um dia.