Pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP) e colaboradores dinamarqueses demonstraram que uma proteína pode ser explorada como alvo para o tratamento de doenças neurodegenerativas. Os resultados do estudo foram divulgados na revista Scientific Reports, revelou a Agência Fapesp.
Os cientistas demonstraram no estudo, apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que a proteína chamada Na+/K+ ATPase (proteína sódio-potássio ATPase) pode ser explorada como alvo no tratamento de moléstias neurodegenerativas.
“A Na+/K+-ATPase é uma proteína presente em todas as nossas células e possui três subunidades: alfa, beta e gama. A subunidade alfa é a que tem propriedade catalítica, ou seja, a responsável pelo transporte ativo dos íons sódio e potássio, sendo importante para o controle eletroquímico das células”, explicou à Agência Fapesp o professor Cristoforo Scavone, que coordenou a investigação. Segundo ele, a Na+/K+ ATPase é responsável pelo equilíbrio iônico de todas as células, transportando íons de potássio e de sódio para seu interior e exterior.
De acordo com Scavone, a subunidade alfa apresenta quatros versões alternativas, ou isoformas, que se encontram distribuídas de forma diferente no organismo humano. A isoforma alfa-1 está presente em todas as células. A alfa-2 é encontrada em astrócitos (células do sistema nervoso central) e em células dos tecidos cardíaco, adiposo e muscular. Já a isoforma alfa-3 costuma estar presente em neurônios, enquanto a alfa-4, em espermatozoides.
“Nos astrócitos, a isoforma alfa-2 participa da retirada do neurotransmissor glutamato da fenda sináptica (onde ocorre a comunicação entre neurônios). E o excesso dessa substância na fenda sináptica pode ser tóxico para o neurônio. Já a alfa-3 é muito importante para a manutenção do gradiente eletroquímico do neurônio e, portanto, influencia a propagação dos impulsos nervosos”, revelou Scavone.
Por meio de experimentos in vitro e com animais, o grupo do ICB-USP mostrou que a subunidade alfa-2 está envolvida no processo neuroinflamatório. O trabalho em células do sistema nervoso central foi desenvolvido durante o mestrado de Paula Fernanda Kinoshita e, em animais, durante o doutorado de Jacqueline Alves Leite, professora do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Goiás (UFG), em parceria com a Universidade de Aarhus (Dinamarca).
Foram usados nos experimentos camundongos geneticamente modificados em laboratório pelo grupo coordenado pela professora Karin Lykke-Hartmann, na Universidade de Aarhus. A mutação introduzida nos animais está associada a um tipo de enxaqueca de causa genética (enxaqueca familiar hemiplégica) e já foi descrita em duas famílias na Itália.
“Esses camundongos exibem vários fenótipos comportamentais que imitam o comportamento compulsivo (como o de portadores do transtorno obsessivo compulsivo, diminuição da sociabilidade e fenótipos semelhantes à depressão induzida por estresse)”, explicou Scavone.
Para induzir a inflamação no sistema nervoso central dos camundongos e em um grupo de animais controle (sem a mutação), os pesquisadores injetaram fragmentos de bactéria gram-negativa contendo uma endotoxina chamada lipopolissacarídeo (LPS). Quatro horas após a administração de LPS, os animais com mutação na alfa-2 apresentaram uma redução do processo neuroinflamatório agudo, decorrente de uma menor sinalização de LPS.
“Houve redução de citocinas inflamatórias tanto no sistema nervoso central quanto no periférico dos animais com a mutação. Já aqueles sem a mutação tiveram uma maior perda de memória e sintomas como febre ou hipotermia, cansaço e menor locomoção, o que chamamos de sickness behavior [comportamento doentio]”, esclareceu Jacqueline à Agência Fapesp.
Isso significa que os animais com mutação em alfa-2 apresentam uma situação inflamatória menor. “A resposta inflamatória é algo positivo, envolve uma resposta adaptativa. Não ter essa resposta é ruim; é a perda de uma forma de ativação e comunicação entre células da glia e neurônios, que gera adaptações positivas. Por outro lado, como a neuroinflamação é importante em doenças neurodegenerativas, esse conhecimento pode ajudar a estudar compostos que tenham como alvo a alfa-2 ou outra subunidade da proteína”, salientou o professor.
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Além de doenças neurodegenerativas, a proteína sódio-potássio ATPase pode ser estudada no âmbito do envelhecimento, quando a neuroinflamação também é recorrente. Jacqueline Leite comenta sobre isso. “A inflamação é um processo fisiológico importante para a manutenção do equilíbrio do nosso organismo. E alterações na resposta inflamatória, seja para menos ou para mais, logo no início de uma infecção, podem levar uma má adaptação desse processo”.
O professor Scavone e sua equipe pretendem dar continuidade ao trabalho e avaliar os efeitos da deficiência da alfa-2 na inflamação no longo prazo, após 24 horas da administração do LPS. Os parceiros da Universidade de Aarhus pesquisam terapias gênicas para melhorar o quadro desses pacientes.
“A ideia para o futuro é avaliar a influência dessa proteína em modelos de inflamação crônica, visando comprovar sua relevância para o tratamento de doenças neurodegenerativas. Como a subunidade alfa-2 participa do controle de glutamato na fenda sináptica, e sendo o glutamato um neurotransmissor relevante na morte neuronal observada nas doenças neurodegenerativas, vamos poder compreender melhor a gênese dessas enfermidades e, assim, desenhar moléculas com ação terapêutica mais direcionada”, frisou Scavone.
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