Casos fatais e graves do novo coronavírus (Covid-19) em crianças são raros, entretanto, a morte de uma menina de onze anos que teve complicações no coração após ser diagnosticada com a doença levantou um alerta na comunidade científica. O episódio foi analisado por pesquisadores do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).
O fato é que, de maneira inédita, um estudo identificou partículas do novo coronavírus em células musculares cardíacas, revelando uma potencial relação entre a doença e a síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica (SIM-P).
“A síndrome [SIM-P] é um quadro inflamatório sistêmico grave, identificado em crianças e adolescentes, que pode atingir vários órgãos, como o trato gastrointestinal, pulmões, pele e sistema nervoso central, e provocar disfunção cardíaca em casos mais graves”, explica a professora da FMUSP e primeira autora do trabalho, Marisa Dolhnikoff, em matéria divulgada no portal UOL.
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As conclusões do estudo foram publicadas por meio de um artigo na renomada revista científica The Lancet Child & Adolescent Health. “Ainda não havia confirmação de que a SIM-P fosse causada pelo vírus da Covid-19. O estudo descreveu as alterações associadas à síndrome e buscou também determinar se existe de fato uma relação direta entre a infecção pelo vírus e o quadro grave de disfunção e falência cardíaca”, completa Marisa.
O Caso
Segundo os pesquisadores, a criança não apresentava doenças pré-existentes, anteriormente, mas chegou ao pronto-socorro do Instituto da Criança do HC em estado grave. Entre os sintomas, a menina tinha dificuldade para respirar, gripe, febre alta persistente e dor abdominal.
“Após a entrada na UTI, o quadro evoluiu para disfunção cardíaca e choque cardiogênico em 28 horas, com necessidade de ventilação mecânica pulmonar e suporte de medicações para o sistema cardiovascular”, explica outra cientista do estudo, Juliana Ferranti. “Foi uma evolução grave da Covid-19, muito rara dentro da pediatria”, completou.
Em meio ao atendimento, a equipe médica submeteu a paciente a exames de sangue, radiografia e tomografia de tórax. “Devido à evolução clínica, que já sugeria um quadro de miocardite e choque cardiogênico, também foram feitos eletrocardiograma [ECG] e ecocardiograma [ECO] para avaliar a função cardíaca”, conta Juliana. “Os exames indicaram um processo inflamatório importante, com aumento de marcadores inflamatórios, e a evolução clínica, associada aos resultados do ECG e ECO, mostrava comprometimento severo do funcionamento do coração”, enfatiza a cientista.
Após a confirmação de óbito da paciente, com a intenção de analisar possíveis alterações teciduais e mecanismos fisiopatológicos associados à SIM-P, foi realizado um procedimento microscópico de tecido coletado de vários órgãos, por meio da autópsia que foi realizada por ultrassom, para ser pouco invasiva.
“Nesse método, as amostras de tecido são coletadas por agulhas direcionadas aos diferentes órgãos, usando a imagem do ultrassom como guia. Também foi feita a pesquisa de RNA viral em pulmões e coração através de exames moleculares (PCR)”, ressalta a professora Marisa.
“Além disso, o tecido cardíaco foi analisado por microscopia eletrônica, método que permite a observação do tecido com aumento da ordem de centenas a milhares de vezes, possibilitando a avaliação de detalhes celulares e a identificação da partícula viral”, complementa.
Situação do coração
O procedimento microscópico realizado nos pulmões revelou um quadro de pneumonia leve, ocasionado pelo novo vírus, além de a presença de microtrombose pulmonar. “Essa obstrução dos vasos sanguíneos do pulmão é encontrada em um grande número de pacientes com quadro grave de Covid-19”, destaca Marisa.
Ela também explica: “Neste caso, entretanto, o órgão mais comprometido pela doença foi o coração, que mostrava uma importante inflamação [miocardite], com necrose e perda de fibras cardíacas, o que levou à insuficiência cardíaca e à morte da paciente.”
Os pesquisadores constataram que exame de PCR foi positivo tanto nos pulmões como no coração, fato que identificou a presença do vírus nesses órgãos.
“A microscopia eletrônica evidenciou partículas virais em células do coração, determinando uma relação direta entre a lesão cardíaca causada pelo vírus e o quadro de miocardite e disfunção cardíaca”, conta a professora. “Pela primeira vez, o estudo revelou a presença do vírus em células musculares cardíacas (cardiomiócitos) de um paciente com Covid-19. Além disso, o vírus foi identificado em outras partes do coração, como células endoteliais, fibroblastos e células inflamatórias”, revela.
Doença rara
Por fim, Marisa ressalta que, apesar de a SIM-P ser uma doença considerada muito rara, a comunidade científica deve ficar atenta e os médicos em alerta para diagnosticar e tratar a doença nos primeiros sintomas, sobretudo, em meio à pandemia.
“Neste estudo, a evidência de lesão cardíaca causada diretamente pelo vírus no miocárdio, levando à inflamação, necrose e falência do coração, confirma que a SIM-P é uma das formas possíveis de apresentação da Covid-19 em crianças, e que o coração pode ser o órgão-alvo nesses casos”, finaliza.
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