O tabagismo é a maior causa de morte evitável em todo o mundo. Dados do Ministério da Saúde apontam que a frequência do consumo do tabaco entre os fumantes nas capitais brasileiras reduziu em 36%, no período de 2006 a 2018. Nos últimos anos, a prevalência de fumantes caiu de 15,7%, em 2006, para 10,1% em 2018.
Contudo, dados da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia revelam que de 30% a 50% das pessoas que começaram a fumar se tornaram dependentes; 80% dos fumantes desejam parar, mas apenas 3% conseguem fazê-lo sem assistência específica. As taxas de abstinência variam de 30% a 41%, o que dificulta muito o sucesso da cessação tabágica.
“São muitos os fatores que predispõem ao uso do primeiro cigarro. São considerados relevantes para a deflagração disso, a imitação do comportamento de pais ou colegas fumantes, a enorme quantia de dinheiro que a indústria de tabaco emprega para induzir as pessoas a fumar e fatores hereditários relacionados à modulação dos efeitos da nicotina e do humor. Estima-se que um terço das pessoas que experimentam o primeiro cigarro venham a se tornar dependentes”, afirma o médico psiquiatra, diretor do Instituto Verea e da Unicap, Leonard Verea.
A atuação bem-sucedida do farmacêutico pode melhorar, e muito, esses números. Um bom exemplo é o do farmacêutico clínico, Diego Medeiros Guedes, que se empenhou para livrar um paciente do tabagismo e, assim, melhorar sua qualidade de vida.
Para detalhar o ocorrido, ele conta que, em 30 de agosto de 2016, o paciente A.M.M.G., de 74 anos, compareceu ao seu consultório, que fica em Recife (PE), para uma avaliação. Inicialmente ele aplicou o Teste de Dependência à Nicotina de Fagerstrom, questionário validado pela Organização Mundial de Saúde para mensuração do grau de dependência. O questionário permite uma escala de 0 a 10 pontos. O escore obtido pelo paciente foi 6, o que denotou um grau de dependência elevado.
Em seguida, foi realizada a anamnese para coletar informações adicionais. O paciente relatou que era fumante desde os 15 anos, e se mostrou convencido quanto à necessidade de parar de fumar. “Em 2010, ele havia tido um aneurisma e, por isso, tentou parar de fumar por conta própria, porém sem sucesso, já que não usou nenhuma estratégia farmacológica”, acrescenta Guedes.
A.M.M.G. contou que sua esposa era ex-fumante e que se encontrava com problemas respiratórios crônicos, inclusive necessitando de suporte ventilatório domiciliar.
Ele fazia uso de medicamentos continuamente, como metformina 850mg (1-1-1); enalapril 10mg (1-0-0) e 5mg (0-0-1); sinvastatina 20mg (0-0-1); AAS 100mg (0-1-0), tansulosina (1-0-0) e travoprosta colírio (AO) (1-0-0).
Guedes verificou a pressão arterial em três medidas, cuja média obtida foi 110mmHg x 60mmHg. O paciente demonstrava cansaço excessivo ao falar, além de pigarro constante. Durante a consulta apresentou tosse seca por algumas vezes.
Após avaliação inicial do paciente, o farmacêutico agendou encontro posterior para que pudesse proceder com a sua preparação.
Passo a passo
“O processo de cessação tabágica não ocorre da noite para o dia, de forma repentina e súbita. Para que a condução do processo seja bem estabelecida é preciso que haja uma extensa preparação do paciente”, afirma Guedes. O ato de fumar envolve, além da dependência química à nicotina, uma dependência física, em que o cigarro, para muitos pacientes, é um amigo próximo que, nos melhores momentos da vida está lá para celebrar, bem como nos mais difíceis está lá para prover todo o suporte emocional necessário.
Ademais, o hábito de fumar envolve uma série de condicionamentos em torno do cigarro (a parada no meio do trabalho para tomar um cafezinho, por exemplo). Ciente disso, Guedes diz que é necessário entender os hábitos cotidianos do paciente e o quão sua vida é guiada pelo cigarro para que se possa traçar estratégias de substituição. “Não raros são os momentos em que o paciente apresenta fortes crises de abstinência (as chamadas fissuras) e é fundamental prepará-lo para contorná-las”, alerta o farmacêutico.
Modelo em etapas
Guedes considera que, inicialmente é importante conhecer o Modelo de Mudança Comportamental proposto por Prochaska e Diclemente, em 1982. O modelo está baseado em etapas, sugerindo que a mudança não ocorre de forma repentina.
- Inicialmente existe o estágio de pré-contemplação no qual o paciente não está motivado à mudança.
- Em seguida o paciente vai para ao estágio de contemplação, ou seja, está motivado à mudança, e é nesse estágio que se inicia o atendimento.
- III. O terceiro passo é a preparação do paciente para a mudança. Ele precisa saber o que irá encontrar pela frente, tanto de forma positiva (melhoria da qualidade de vida, saúde financeira, maior convívio social), como de forma negativa (fissuras, mudanças de hábito etc.).
- Superada a fase da preparação, inicia-se a ação que, neste caso, é o parar de fumar em si.
- Guedes afirma que a etapa subsequente é a manutenção, e é a mais difícil para os fumantes, pois muitos, em alguns momentos, acabam tendo recaídas.
- Neste ponto, é importante que se possa reiniciar todo o ciclo e levá-lo novamente à fase de contemplação, se for o caso.
Estratégia adotada
Guedes conta que, quase um mês depois, o paciente retornou para a consulta de preparação. Na ocasião, foi explicado sobre importância de ser escolhida uma data, a que se chamaria de ‘Dia D’, para que a partir de então não se fumasse mais.
O farmacêutico recomendou que aquela data fosse em, aproximadamente, 15 dias e que até lá o paciente fizesse uso de griffonia simplicifolia 150mg (1-0-0), um fitoterápico que é uma fonte natural de 5-HTP, precursor imediato da serotonina.
Tal estratégia se deu visando à adaptação corporal para a produção de serotonina durante os 15 dias que precederam o ‘Dia D’. Foi verificado se o paciente estava em uso de alguma droga antidepressiva, o que foi negado por ele. Tal cuidado é de suma importância para que se evite a síndrome serotoninérgica em decorrência do efeito sinérgico de fármacos com o mesmo mecanismo de ação.
Além disso, Guedes prescreveu a Terapia de Reposição de Nicotina por meio de adesivo transdérmico na dosagem de 21mg durante 42 dias, a partir do ‘Dia D’ escolhido. “O paciente estava ciente de que, durante o uso de TRN, não poderia fumar, pois o corpo já estava recebendo quantidade suficiente de nicotina e a sua adição, além da já utilizada, poderia ocasionar estimulação excessiva nos receptores de nicotina”, lembra ele.
“Sem dúvidas que o tabagismo é um problema de saúde pública. A decisão do paciente em parar de fumar foi o mais importante. Chamo a atenção para a importância do envolvimento de todos os profissionais da área da saúde no combate ao tabagismo. O conhecimento do farmacêutico é suma importância para a adesão do paciente ao tratamento, propondo soluções acessíveis, como a prescrição dos adesivos transdérmicos e outros medicamentos para auxiliar nessa terapia”, menciona o farmacêutico clínico e professor do ICTQ – Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico, Clezio Rodrigues de Abreu.
Guedes relembra que A.M.M.G. escolheu uma data para a cessação tabágica. Antes disso, porém, preparou toda a sua rotina, reviu hábitos e informou a parentes e amigos sobre a sua decisão. Iniciou o uso da griffonia simplicifolia 150mg, conforme solicitado, fumou seu último cigarro na manhã daquele dia e colocou o adesivo de nicotina.
Cinco dias mais tarde - após contato telefônico - A.M.M.G. relatou dificuldade extrema em se manter abstinente e que, por inúmeras vezes, pensou em voltar a fumar. As fissuras se apresentavam durante todo o dia, mas era durante a manhã, ao acordar, que a maior vontade de fumar se expressava.
Sintomas
Segundo Verea, os fumantes com dependência fisiológica à nicotina começam a perceber os primeiros sintomas da síndrome de abstinência em pouco tempo, quando o uso do cigarro é interrompido, o fumante pode apresentar dificuldade de manter o alerta, a concentração, sonolência diurna, distúrbios do sono à noite, irritabilidade, ansiedade, sintomas depressivos, aumento do apetite e peso.
Esses sintomas atingem o auge em dois ou três dias de abstinência. A nicotina promove um efeito recompensador no cérebro, que pode ser responsável pela manutenção do tabagismo. A nicotina age nos centros de prazer cerebrais, aumentando o desempenho cognitivo, o alerta, o bem-estar, o controle sobre emoções negativas diminuindo a ansiedade e o apetite. Entretanto, essa substância também age em outros sistemas além do sistema nervoso central, como no sistema endócrino e no sistema cardiovascular, provocando efeitos adversos. Além da dependência, há uma forte associação do tabagismo com diversos tipos de câncer, enfarte, morte precoce e com outras doenças graves.
“O tabagismo conta com dois tipos de dependências que geralmente aparecem associadas. Uma é a dependência física de natureza bioquímica, responsável pelos sintomas de abstinência quando se deixa de fumar, a outra é a dependência psicossocial, que repousa no hábito e no sentimento de ter no cigarro um apoio para lidar com sentimentos negativos, como frustração, ansiedade, solidão ou ainda em resposta a pressões sociais, com condicionamentos oriundos de associações de comportamentos com o fumar, como fumar e consumir bebidas alcoólicas, fumar e beber café, fumar após as relações sexuais, entre outras”, lembra o médico.
Ganhar algum peso após parar de fumar é normal. A maioria das pessoas ganha menos que cinco quilos, e muito deste peso é perdido depois, naturalmente. Para Verea, o mais importante é procurar ajuda, orientação e acompanhamento de profissionais especializados. Noventa por cento das pessoas começam a fumar antes dos 19 anos, fase de construção da personalidade, principalmente entusiasmados pela publicidade, que é uma das maiores aliciadoras ao uso do cigarro, atendendo às demandas sociais e às fantasias dos diferentes grupos de pessoas mais facilmente influenciáveis.
As reações
Frente a tudo isso, Guedes relembra que seu paciente retornou para a consulta de acompanhamento e mencionou dificuldades nos primeiros dias, mas que o organismo estava aos poucos se acostumando. Assim, ele prescreveu o complemento da TRN com 14mg durante 14 dias e, posteriormente, 7mg por mais 14 dias. “Embora seu semblante estivesse melhor, ainda era perceptível que a tosse seca estava presente. Quando questionado se estava em acompanhamento com pneumologista, ele informou que não. Assim, fiz o encaminhamento ao pneumologista relatando as intervenções na cessação tabágica e a tosse seca constante”, comentou.
Assim, o paciente se livrou do tabagismo. “O último contato com A.M.M.G. ocorreu em 7 de janeiro de 2017, por telefone, quando ele relatou se manter abstinente e estar bem. Sucesso total”, comemora o farmacêutico.
“O acompanhamento foi de suma importância para a continuação desse tratamento. Os principais motivos da falha no tratamento é a falta de informação do paciente a respeito dos sintomas da síndrome de abstinência. Essa síndrome pode causar várias alterações fisiológicas, fazendo com que ele desista do tratamento. O que precisamos para ganhar essa luta contra o tabagismo é de profissionais imbuídos de conhecimentos e amor ao próximo”, conclui Abreu.