As interações medicamentosas podem ser consideradas erros evitáveis? Sim e não! Sim, porque o farmacêutico e o médico deveriam ter conhecimento das reações causadas pela combinação de medicamentos, alimentos, fitoterápicos etc. Não, porque na era da polifarmácia é comum que pacientes com doenças crônicas e que estejam usando até uma dezena de medicamentos diferentes não relatem o fato ao profissional de saúde, já que recebem receitas de prescritores de diferentes especialidades.
Vale lembrar que esse problema pode ser causado por alterações nos efeitos de um medicamento por conta do consumo concomitante de outro medicamento ou sua utilização juntamente com determinado alimento ou bebida. Embora em alguns casos os efeitos de medicamentos combinados sejam benéficos, é comum que as interações medicamentosas tendam a ser prejudiciais.
Quase todas as interações do tipo medicamento-medicamento envolvem itens de prescrição obrigatória, mas algumas incluem medicamentos isentos de prescrição (MIPs), como o ácido acetilsalicílico, antiácidos e descongestionantes.
Reações secundárias
Segundo o farmacêutico e professor Fabricio Favero, a atuação de um fármaco pode ocorrer em diferentes tecidos, visto que esses ativos podem atingir diversos alvos moleculares. Por esse motivo, há reações secundárias ao efeito principal de interesse no tratamento com um princípio ativo.
“As interações podem ocorrer na fase farmacocinética (na movimentação do ativo, da absorção até excreção) e na farmacodinâmica (relacionado ao local de ação de um fármaco). As interações farmacocinéticas são as mais frequentes e influenciam de forma significativa a terapêutica medicamentosa”, explica ele.
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Favero lembra que o farmacêutico deve verificar inicialmente o número de fármacos que o paciente faz uso e ele deve pesquisar os outros medicamentos, incluindo os fitoterápicos, além de suplementos alimentares: “Há medicamentos com fármacos associados (mais de um princípio ativo) e assim as possíveis interações devem ser verificadas”.
Desafios dos farmacêuticos
Favero é incisivo em afirmar que há desafios que devem ser encarados pelos farmacêuticos para minimizar os problemas com medicamentos. Ele destaca os três principais:
1) Dedicação na pesquisa – Há a necessidade de o farmacêutico se dedicar durante o atendimento para a avaliação da interação. Existem softwares e aplicativos para aparelho celular que realizam isso de forma a otimizar o trabalho. A atualização desses recursos deve ocorrer com frequência, pois se trata de um banco de dados que é enriquecido conforme as reações são registradas e documentadas.
2) Interpretação cuidadosa – Nem todas as interações estão documentadas e são conhecidas. Isso quer dizer que há a possibilidade de ocorrer uma interação e ela ser interpretada erroneamente, como se fosse uma reação adversa dos fármacos envolvidos, e na realidade o que ocorreu foi uma manifestação da interação medicamentosa.
3) Orientação assertiva – Além de verificar as possíveis interações, deve-se afastar as administrações de diferentes fármacos durante do dia. Orientar o paciente que ele deve utilizar os medicamentos com certo intervalo de tempo, a fim de evitar possíveis interações desconhecidas, lembrando que muitos pacientes, principalmente idosos, utilizam vários medicamentos ao mesmo tempo, o que ocasiona grandes chances de interações.
Segundo o farmacêutico, Diego Medeiros Guedes, como as interações entre medicamentos podem ser de caráter físico, químico, farmacocinético ou farmacológico, cabe ao farmacêutico conhecer as possíveis causas de interação e intervir quando necessário: no local de absorção (alterações na flora intestinal, motilidade intestinal e interação química direta), fora do organismo (mistura de medicamentos), durante a distribuição (ligação às proteínas plasmáticas e ligação a tecidos - o adiposo principalmente), nos receptores (ação nos receptores e em órgãos e sistemas), durante o metabolismo (indução enzimática e inibição enzimática), na excreção (difusão passiva – reabsorção e transporte ativo).
20 interações medicamentosas gerais
Para Favero, não há uma escala para classificar quais são as interações mais perigosas, pois elas estão dentro de um contexto de uso. “A interação pode ser perigosa, mas pode não ser frequente. Mais importante é ressaltar as de maior frequência”, lembra ele, que cita alguns exemplos de interações.
- Ácido acetilsalicílico (AAS) e captopril – O ácido acetilsalicílico pode diminuir a ação anti-hipertensiva do captopril.
- Omeprazol, varfarina e clopidogrel – O omeprazol (inibidor da bomba de prótons) pode aumentar a ação da varfarina e diminuir a ação do clopidogrel (antitrombóticos).
- Ácido acetilsalicílico e insulina – O AAS pode aumentar a ação hipoglicemiante da insulina.
- Amoxicilina e ácido clavulânico – A amoxicilina associada ao ácido clavulânico aumenta o tempo de sangramento e de protrombina (elemento proteico da coagulação sanguínea) quando usada com AAS.
- Inibidores da monoamina oxidase (MAO) e tiramina (monoamina derivada da tirosina) – O inibidores da monoamina oxidase (tratamento da depressão) associada à tiramina (tyros = queijo) pode promover crises hipertensivas e hemorragia intracraniana.
- Omeprazol e fenobarbital – O omeprazol usado com fenobarbital (anticonvulsivante) pode potencializar a ação do barbitúrico.
- Levodopa e dieta proteica – Levodopa (L-dopa) - usada no tratamento da doença de Parkinson - tem ação terapêutica inibida por dieta hiperproteica.
- Leite e tetraciclina – Os íons divalentes e trivalentes (Ca2+, Mg2+, Fe2+ e Fe3+) - presentes no leite e em outros alimentos - são capazes de formar quelatos não absorvíveis com as tetraciclinas, ocasionando a excreção fecal dos minerais, bem como a do fármaco.
- Óleo mineral e vitaminas – Grandes doses de óleo mineral interferem na absorção de vitaminas lipossolúveis (A, D, E, K), β-caroteno, cálcio e fosfatos, devido à barreira física e à diminuição do tempo de trânsito intestinal.
- Diurético e minerais – Altas doses de diuréticos (ou seu uso prolongado) promove aumento na excreção de minerais. Exemplo: furosemida, diurético de alça, acarreta perda de potássio, magnésio, zinco e cálcio.
- Alimentos e penicilina e eritromicina – Após a ingestão de alimentos ou líquidos, o pH do estômago dobra. Essa modificação pode afetar a desintegração das cápsulas, drágeas ou comprimidos e, consequentemente, a absorção do princípio ativo. O aumento do pH gástrico em função dos alimentos ou líquidos pode reduzir a dissolução de comprimidos de eritromicina ou de tetraciclina.
- Alimentos e fenitoína ou dicumarol – Medicamentos como a fenitoína ou o dicumarol desintegram-se mais facilmente com a alcalinização do pH gástrico. O pH também interfere na estabilidade, assim como na ionização dos fármacos, promovendo uma alteração na velocidade e extensão de absorção.
- Antibióticos e vitamina C – Os antibióticos não devem ser misturados com vitamina C ou qualquer substância que a contenha (sucos cítricos), pois ela inibe a ação dos antibióticos.
- Anticoncepcionais orais e anti-hipertensivos – Os anticoncepcionais (em geral) podem elevar a pressão arterial, anulando a ação dos hipotensores.
- Benzodiazepínicos (em geral) e cimetidina – A administração de cimetidina e alguns benzodiazepínicos (alprazolam, clordiazepóxido, clorazepato, diazepam e triazolam) resulta em diminuição do clearence plasmático e aumento da meia vida plasmática e concentração destes benzodiazepínicos. Além disso, pode ocorrer aumento do efeito sedativo com o uso de cimetidina e benzodiazepínicos.
- Digoxina e diazepam – O diazepam pode reduzir a excreção renal da digoxina, com aumento da meia vida plasmática e risco de toxicidade. Esse efeito é também relatado com o alprazolam.
- Antidiabéticos orais e pirazolônicos – A administração de fenilbutazona e outros derivados pirazolônicos, concomitantemente aos antidiabéticos orais, pode potencializar a atividade hipoglicêmica.
- Anticoncepcionais orais e indutores de enzimas microssônicas – Os anticoncepcionais orais (em geral), quando usados com indutores de enzimas microssônicas (rifampicina, barbitúricos, carbamazepina, fenitoína, primidona, griseofulvina) podem ter seu efeito anticoncepcional diminuído.
- Anticoagulantes orais e anticoncepcionais orais – Pode ocorrer a diminuição dos efeitos dos anticoagulantes (em geral) quando usados com os anticoncepcionais.
- Bebidas alcoólicas e ansiolíticos, hipnóticos e sedativos – Uma interação muito relevante é a potencialização do efeito depressor do sistema nervoso central (SNC) do álcool por ansiolíticos, hipnóticos e sedativos. A depressão resultante dessa interação pode causar até a morte por falência cardiovascular, depressão respiratória ou grave hipotermia.
20 interações com medicamentos testados para a Covid-19
O professor Thiago de Melo Costa Pereira acrescenta as principais interações medicamentosas que podem ocorrer com medicamentos ‘candidatos a anti-Covid-19’. Alguns deles já estão sendo descartados pela comunidade científica internacional, como a cloroquina e a hidroxicloroquina, mas foram incluídos na lista abaixo porque ainda constam como indicação pelo Ministério da Saúde.
- Cloroquina/hidroxicloroquina e azitromicina – Risco de arritmia cardíaca (desconhecido). Aumento da chance de prolongamento do intervalo QT (arritmia cardíaca). Considerar potencialização de riscos quando a tríade for utilizada em hospitais: hidroxicloroquina, azitromicina e propofol.
- Cloroquina/hidroxicloroquina e clorpromazina – Podem aumentar a biodisponibilidade em até quatro vezes. Aumenta o risco de síndrome extrapiramidal.
- Cloroquina/hidroxicloroquina e fluoxetina – A fluoxetina pode aumentar os níveis de cloroquina e hidroxicloroquina, com possível toxicidade destas duas substâncias.
- Cloroquina/hidroxicloroquina e dipirona – A dipirona pode diminuir os níveis séricos de cloroquina e hidroxicloroquina. Isso pode resultar em possível falha terapêutica de cloroquina e hidroxicloroquina. Atenção para possíveis distúrbios hematológicos (plaquetopenia, agranulocitose).
- Cloroquina/hidroxicloroquina e antiácidos – Os antiácidos podem atrapalhar a absorção de cloroquina e hidroxicloroquina. Para evitar essa redução de biodisponibilidade, deve-se utilizar os antiácidos duas horas antes ou duas horas depois da administração dessas drogas.
- Cloroquina/hidroxicloroquina e ciclosporina – Cloroquina e hidroxicloroquina podem aumentar a biodisponibilidade em até 4,3 vezes. A cioclosporina precisa ter sua dose reduzida caso haja necessidade do uso concomitante, para evitar imonussupressão intensa.
- Cloroquina/hidroxicloroquina e codeína – Cloroquina e hidroxicloroquina podem comprometer a conversão de codeína em morfina. A ação da analgésica dos opioides pode ser diminuída.
- Lopinavir/ritonavir e cloroquina/hidroxicloroquina – Lopinavir e ritonavir podem aumentar os níveis de cloroquina e hidroxicloroquina. Risco de arritmia cardíaca, com atenção principalmente quando é orientada a troca de terapia (não importando a ordem). Cloroquina e hidroxicloroquina têm elevada meia-vida (portanto, lento woshout).
- Lopinavir/ritonavir e sildenafil e tadalafil – Lopinavir e ritonavir podem aumentar as concentrações de sildenafil e tadalafil. Risco de hipotensão acompanhada de taquicardia reflexa. Atenção para coronariopatas.
- Lopinavir/ritonavir e codeína, oxicodona e tramadol – Lopinavir e ritonavir podem aumentar a oferta de codeína, oxicodona e tramadol (pró-fármacos), por inibição da CYP3A e 2D6. A ação analgésica da codeína, tramadol e oxicodona pode ser diminuída (porque não gera os metabólitos ativos morfina, o-desmetiltramadol e oximorfona, respectivamente) devido à inibição da CYP2D6.
- Lopinavir/ritonavir e eritromicina e claritromicina – Lopinavir e ritonavir podem aumentar a oferta desses macrolídeos. Risco de prolongamento do intervalo QT (arritmia cardíaca).
- Lopinavir/ritonavir e amiodarona – Lopinavir e ritonavir podem aumentar a oferta de amiodarona. Aumento da chance de prolongamento do intervalo QT (arritmia cardíaca).
- Lopinavir/ritonavir e betabloqueadores – Lopinavir e ritonavir podem aumentar os níveis dos betabloqueadores, com risco de bradicardia e/ou parada cardíaca.
- Lopinavir/ritonavir e clorpromazina, pimozida, quetiapina, risperidona e ziprasidona – Lopinavir e ritonavir podem aumentar a biodisponibilidade desses antipsicóticos. Aumento do risco de síndrome extrapiramidal e risco de arritmia.
- Lopinavir/ritonavir e sinvastatina, rosuvastatina e atorvastatina – Lopinavir e ritonavir podem aumentar o níveis séricos das estatinas (atorvastatina em até 490%). Risco de miopatias, rabdomiólise, insuficiência renal. Atenção para os pacientes internados – neste caso é fundamental a conciliação medicamentosa.
- Favipiravir e paracetamol – Favipiravir pode aumentar em até 20% os níveis de paracetamol. Recomenda-se não exceder 3g de exposição por dia. Entretanto, convém lembrar que como o favipiravir inibe a CYP2E1 talvez esse aumento dos níveis séricos não evidencie aumento de hepatotoxicidade.
- Favipiravir e oseltamivir – Favipiravir pode aumentar em aproximadamente 15% de oseltamivir. Pode potencializar a ação de um fármaco eficaz contra H1N1.
- Favipiravir e contraceptivos hormonais – Favipiravir pode aumentar as concentrações dos contraceptivos. Atenção para ganho de peso e alteração do ciclo menstrual.
- Remdesivir e dipirona – Dipirona pode diminuir os níveis séricos do remdesivir. Possível falha terapêutica do remdesivir. Acompanhar a evolução clínica e atenção para possíveis distúrbios hematológicos (plaquetopenia e agranulocitose).
- Remdesivir e rifampicina, fenobarbital, carbamazepina e fenitoína – Esses anticonvulsivantes podem diminuir a biodisponibilidade do remdesivir. Sugere-se investigar a evolução clínica. A rifampicina também pode diminuir os níveis séricos do remdesivir. Neste caso, atenção para os pacientes tuberculosos com complicação pulmonar pela Covid-19.
Interações do bem
Há também as interações de efeito que ocorrem quando dois ou mais fármacos em uso concomitante têm ações farmacológicas similares ou opostas, atuando em sítios e por mecanismos diferentes. Podem produzir sinergismos ou antagonismos, sem modificar a farmacocinética ou o mecanismo de ação, como a potencialização do efeito sedativo dos hipnóticos e anti-histamínicos pelo uso do etanol.
“Deve-se considerar que há interações benéficas que são utilizadas como ferramentas da terapêutica, como o sulfametoxazol associado com trimetroprima, que produzem uma reação sinérgica para aumento do espectro antibacteriano”, comenta Favero.
Outro exemplo é a naloxona (antagonista opioide) usada no tratamento de intoxicações de fármacos opioides. Eles são utilizados intencionalmente para bloqueio da toxicidade dos opioides, em caso de superdosagem de opioides, e depressão respiratória por essa substância.
O papel do farmacêutico
A análise das prescrições feita pelo farmacêutico, seja na farmácia ou em consultórios e clínicas, contribui, de forma decisiva, para a redução de erros de medicação, da piora do quadro do paciente e dos gastos desnecessários.
A eficiência de farmacêuticos nessa abordagem pode ser aumentada, de maneira significativa, com a utilização de programas informatizados, que auxiliam no agrupamento dos dados e na detecção de interações medicamentosas com o cruzamento de diferentes prescrições.
Já o uso do Prontuário Eletrônico permite a detecção mais fácil da interação medicamentosa (e de sua gravidade). A partir dessa ferramenta, é possível tomar uma decisão quanto ao uso do tratamento no paciente, sempre com o apoio da farmácia clínica, que é uma ótima forma de reduzir a incidência com problemas causados por interações medicamentosas.
Farmacologia em 1 minuto
A série de vídeos “Farmacologia em 1 minuto”, com o professor Thiago de Melo, apresenta, de forma didática, informações relevantes sobre interações medicamentosas e entre algumas outras substâncias que interferem na absorção de medicamentos. Confira abaixo os vídeos da primeira temporada.
- O Popeye nos enganou. Entenda o porquê de associar Ferro com Vitamina C é benéfico.
- Cetoconazol com refrigerantes?
- Por que a família do omeprazol é inimiga da vitamina B12?
- Ginkgo biloba e AAS: quais os riscos dessa associação?
- Paracetamol ou Acetaminofeno? O risco de utilizar a mesma substância ativa com nomes diferentes.
- Quanto mais folhas verdes, melhor? O cuidado no uso de anticoagulante e folhosos verdes.
Segunda temporada
Em nova temporada, a série de vídeos “Farmacologia em 1 minuto”, o professor Thiago de Melo amplia o tema e mostra outras formas de interações. Confira a seguir os vídeos da segunda temporada.
- Clopidogrel e Omeprazol: Por que evitar?
- Corticoides e resposta vacinal: mito ou verdade?
- Tramadol, codeína e antidepressivos: Um alerta.
- Hiperplasia gengival por anlodipino e fenotoína.
- É verdade que alguns medicamentos interferem na tireoide?
- Varfarina e uso de antibióticos – cuidado!
- Formulações “D” e hipertrofia da próstata/hipertensão.
- Ginkgo Biloba e AAS: Associação perigosa.
- Orlistat pode diminuir a Vitamina D?
- Os benefícios do Kefir no Alzheimer.
- Os anti-inflamatórios podem diminuir a ação dos anti-hipertensivos.
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