Momentos de tormenta têm passado alguns Conselhos Regionais de Farmácia (CRF) no Brasil. Condenações na justiça, denúncias de improbidade administrativa, corrupção, assédio moral, negativação no Serasa, movimento parlamentar pelo fim das autarquias e outros problemas têm impactado esses órgãos de maneira contundente, levando seus dirigentes a uma situação extremamente difícil, e os farmacêuticos a muita desconfiança e indignação. Assim, Estados como o Ceará, Pará, Goiás, Rio de Janeiro e Espírito Santo têm visto seus CRFs serem colocados à prova.
Uma das situações mais graves é a do CRF do Ceará, cujos problemas se agravaram tanto que, ainda no primeiro ano de gestão, em 2018, o vice-presidente, Egberto Feitosa, pediu licença para se retirar da diretoria do Conselho, permanecendo apenas como conselheiro do Plenário.
Já em 2019, os servidores do CRF-CE apresentaram em Plenário uma carta, datada de 7 de fevereiro, contendo suas reivindicações e explicando os motivos de suas insatisfações diante das condições de trabalho e de situações inaceitáveis vivenciadas pela equipe.
Uma dessas situações é a perseguição e pressão excessiva exercida pelo conselheiro federal, Luís Cláudio Mapurunga. Eles acusam, no documento: “posturas de arrogância e comentários negativos e piadas de mau gosto”. Além disso, os servidores reclamam que as ordens e cobranças de Mapurunga são realizadas com a anuência dos diretores, muitas vezes, sob ameaças. A carta diz: “Os funcionários já presenciaram discussões entre o Conselheiro Federal e a diretoria e assessores do CRF-CE, conturbando o ambiente com gritarias e demonstrações de falta de autocontrole”.
Além desses problemas apontados pelo grupo com relação ao Mapurunga, os servidores listaram outros problemas e reinvindicações, como contratação de assessores para cargos comissionados que deveriam ser destinados aos servidores efetivos. Esses assessores foram contratados, segundo o documento, sem os devidos critérios para funções que exigem complexidade e conhecimentos, além da contratação de “uma assessora que apenas ocupava o cargo de comissão sem produzir resultados para o órgão, apenas por motivações políticas”, descreve o apontamento.
Eles reclamam ainda de acúmulo de funções, jornada diferenciada para servidores e assessores, a questão da não realização do Plano de Cargos e Salários acordada pelo conselheiro Mapurunga, em 28 de fevereiro de 2018, e não cumprida. Eles citam um ambiente de trabalho insalubre, em desconformidade com a NR 15 e que não atende aos requisitos básicos de segurança e saúde ocupacional, entre outras reivindicações.
Contra fatos não há argumentos: em 1º de agosto de 2018, os conselheiros estaduais do Ceará se uniram para fazer uma Moção de Repúdio contra os atos praticados pelo conselheiro federal, Mapurunga, dentro do CRF-CE. O documento pretende “externar repúdio ao comportamento antiético do conselheiro federal do CRF-CE nas sessões plenárias, interferindo, sem a competência legal para sua atuação, tumultuando, utilizando-se de tempo indevido e não previsto no regimento interno e no regulamento das reuniões”.
Os autores da Moção de Repúdio afirmaram que o comportamento do conselheiro federal do Ceará fere frontalmente os princípios éticos da profissão e a Resolução 596, de 21 de fevereiro de 2014, que dispõe sobre o código de ética farmacêutica; o Código de Processo Ético; e estabelece as infrações e as regras de aplicação de sanções disciplinares, o que compromete as discussões e deliberações do colegiado estadual, composto por 12 membros efetivos e 3 suplentes, eleitos democraticamente, do qual Mapurunga não faz parte.
O grupo apontou, ainda, que Mapurunga vem infringindo o anexo III do código de ética e destacou os incisos XXXV (divulgação de informações sobre temas farmacêuticos de conteúdo inverídico, sensacionalista, promocionais ou que contrariem a legislação vigente) e XVII (fazer declarações injuriosas, caluniosas, difamatórias ou que depreciem o farmacêutico, a profissão ou instituições e entidades farmacêuticas, sob qualquer forma).
A entidade também passa por problema de gestão financeira, já que foi incluída no cadastro da Serasa, em 17 de setembro de 2018, por conta de falta de pagamento à Empresa Jornalística O Povo S/A, conforme documento a que teve acesso a equipe de reportagem do ICTQ – Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico. Essa empresa teria sido contratada sem licitação e, portanto, não haveria dotação orçamentária para tal.
Vice-presidente do CRF-CE deixou o cargo
Feitosa afirmou que sua principal atividade, como vice-presidente, seria a coordenação do setor de fiscalização do CRF-CE. No entanto, ele percebeu que não estava sendo acionado para essa função e que a atividade estava sendo coordenada por Mapurunga, que não exercia cargo legal no CRF-CE.
“No início do meu mandato, o conselheiro federal fez uma reunião e estabeleceu regras de fiscalização, sem o meu conhecimento. Entretanto, havia a conivência do restante da diretoria”, revela Feitosa.
O vice-presidente (em acordo com o chefe da fiscalização, Elson Braga Ferreira) informou que Mapurunga estabelecia rotas para a fiscalização e passava por cima da atuação deles. “Eu, sequer, tive acesso à senha do sistema! Também não tinha acesso à senha do GPS das viaturas de fiscalização para avaliar rotas e possíveis desvios”, conta Feitosa, indignado.
Ele adoeceu e precisou se afastar por um período, por questões médicas. Em seu retorno, decidiu não aceitar mais aquela situação e passou a exigir que sua autonomia fosse respeitada. Como isso não ocorreu, Feitosa decidiu deixar a função na diretoria do CRF-CE, em maio de 2018.
Para se ter uma ideia da gravidade do problema, nem mesmo o chefe da fiscalização, Ferreira, tinha acesso aos fiscais e às senhas do sistema e das viaturas. Segundo os envolvidos, essa era uma atividade que se restringia ao conselheiro federal, Mapurunga, e demais diretores.
Por conta disso, Ferreira entrou com uma ação de Indenização por Danos Morais, devidamente documentada, em setembro de 2018, em desfavor dos três membros restantes da diretoria do CRF-CE e de Luís Claudio Mapurunga.
Na ação, é discriminado: “Dada a retidão e lisura com que desempenha seu mister, há tempos o autor (Ferreira) vem sendo alvo de uma série de perseguições por não coadunar com determinadas situações no mínimo questionáveis. Os posicionamentos do autor durante o exercício de seu mister sempre foram voltados para o que se considera justo e probo, fato que incomoda e incomodou inúmeras pessoas que atuam de forma duvidosa, mediante acordos e conchavos, os quais maculam o fim social do Conselho Regional de Farmácia do Estado do Ceará”.
Em sua ação, Ferreira diz que vislumbrou a influência de elementos externos, no caso o conselheiro federal, Mapurunga, com a conivência da Diretoria, que interfere constantemente nas funções exercidas pelos fiscais farmacêuticos, bem como direciona, de forma tendenciosa, os atos da equipe de fiscalização, sempre se valendo da sua influência e posição que ocupa.
Ferreira descreve na ação que passava a maior parte do tempo tenso e preocupado, com sensação de impotência frente aos inúmeros constrangimentos que vinha sofrendo em razão das ingerências de Mapurunga, devidamente respaldadas pelo alto escalão da autarquia.
Assim, ante a impossibilidade de exercer o cargo de chefia, em razão da desmoralização sofrida, que era constante, ele constatou que poderia ser responsabilizado por atos indevidos de terceiros, pois a Diretoria se mantinha inerte e atuava de forma omissa. Assim, solicitou a sua exoneração do cargo, em abril de 2018.
Além de tudo isso, parece que a crise no CRF-CE está longe de ver seu fim. A secretária geral, Francisca Miranda Lustosa, manifestou em plenário sua disposição de deixar o cargo que exerce na entidade. Como o vice-presidente já havia saído, a diretoria seria inviabilizada com a participação de apenas dois membros. Pelo regimento interno, a diretoria é considerada apta com a atuação de três membros, mas isso não ocorre com a possibilidade de apenas dois membros! Neste caso, o Conselho Federal de Farmácia (CFF) teria de promover uma intervenção no CRF-CE, e novas eleições seriam realizadas.
Não se sabe ao certo o motivo, mas em fevereiro de 2019, em plenário, a secretária manifestou interesse em continuar na função, evitando, assim, a intervenção do CFF.
Denúncia de assédio moral no CRF-PA
Em fevereiro de 2019 a imprensa paraense divulgou uma ação civil pública feita pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) contra o CRF-PA e seu presidente, Daniel Jackson Pinheiro Costa. Entre outras motivações da ação, há denúncia de assédio moral na autarquia. Um dos autores da denúncia seria Armando Sérgio Pimentel, cunhado do presidente do Conselho Federal de Farmácia (CFF), Walter Jorge João, supostamente um desafeto político da atual gestão do CRF do Pará.
De acordo com a ação, os funcionários do CRF-PA estariam sendo ridicularizados constantemente com palavrões e gritos, segundo as denúncias recebidas pelo MPT. O processo tramita na 3ª Vara do Trabalho de Belém, sob o n° ACP-0000132-40.2019.5.08.0003 e tem anexado vários depoimentos e denúncias de vítimas e laudos periciais.
O presidente do CRF-PA, relatou em vídeo divulgado nas redes sociais, que ele recebeu diversas manifestações de apoio de colegas de trabalho e pelas mídias sociais. “Só quero dizer uma coisa: sou 100% presidente. Eu não tomei nenhum conhecimento formal de nenhum tipo de ação, só pela imprensa, por meio de uma ação muito bem organizada, tentando descaracterizar o conselho como órgão fiscalizador - um órgão sério, que tem gestão aprovada e consolidada, e que zela pelos princípios da administração pública”, ressalta Costa.
Ele afirma que não será uma ação dessas - orquestrada e movida por interesses políticos de algumas pessoas que vivem para difamar, diminuir o trabalho que vem sendo construído de mãos dadas pela profissão farmacêutica - que vai prosperar. “Tenho certeza absoluta de que o CRF-PA é uma instituição sólida, e com a solidez que temos a verdade irá prosperar”, reitera o presidente.
Indústria das multas nos CRFs do Rio de Janeiro e Espírito Santo
Artilharia pesada também foi usada contra os conselhos do Rio de Janeiro e do Espírito Santo. O deputado Federal pelo PSL - RJ, Felício Laterça, usou a plenária para relatar o que ele considera abusos das multas aplicadas nas farmácias brasileiras. Em transmissão do congresso pela televisão, ele disse: “Hoje nós vamos falar sobre a indústria da multa, mas para surpresa de vocês não estou falando sobre as multas de trânsito. Refiro-me às multas aplicadas pelos Conselhos Regionais, endossadas pelo Conselho Federal de Farmácia. Eu falo especificamente do Conselho Federal de Farmácia e do Conselho Regional de Farmácia do Rio de Janeiro e do Conselho Regional de Farmácia do Espírito Santo”.
Ele afirma ter recebido denúncias de abusos praticados pelos conselheiros. Ele comentou sobre a lei que obriga a presença de um profissional farmacêutico em todas as farmácias. “Praticou-se, com base em uma lei do início da década de 1970, fiscalizar as farmácias. Para tanto, é preciso ter um farmacêutico ininterruptamente dentro de cada unidade, sob pena de multa, no valor de R$ 5 mil. Esse valor é exorbitante e essa prática é absurda”, defende o deputado.
Ele diz que durante a sua campanha realizou diversas reuniões com esses grupos e percebeu a dificuldade que esses empreendedores vêm sofrendo. “Parece que ficam de atalaia, esperando o farmacêutico sair da farmácia para ir lá pedir a presença dele, verificar sua ausência e aplicar uma multa. E não aceitam justificativa se o profissional foi ao dentista, ao médico ou se apenas foi fazer um lanche do outro lado da rua”, destaca o deputado.
Laterça defende que os recursos são apresentados pelos farmacêuticos, na tentativa de justificar o absurdo cometido, mas não há tolerância por parte dos Conselhos: “Por essa razão, como parlamentar, saio em defesa do empreendedorismo, em defesa do pequeno empreendedor, inclusive daquele farmacêutico que realizou seu sonho e montou a sua farmácia, e não pode sequer sair do seu negócio para ir ao banco, ou para uma reunião ou qualquer coisa similar, sob pena de ter que pagar uma multa exorbitante por não se encontrar no estabelecimento no momento de uma fiscalização e, com isso, aumentar sua folha de pagamento”.
Para o parlamentar, essa lei está inviabilizando a atuação desses empreendedores e está tornando muito caro tocar o ramo de farmácia para pequenos empreendedores. Ele ameaça tomar todas as medidas para proteger os farmacêuticos donos de estabelecimentos e coibir esses abusos. “Como disse, R$ 5 mil por multa. Se em um dia forem aplicadas dez multas, são quase R$ 50 mil ao dia. Então, chamo a atenção de todo o parlamento para essa questão. Nós vamos agir com todo o rigor que a lei proporciona com relação aos abusos praticados”, finaliza o deputado, o seu discurso.
Ex-presidente do CRF-GO condenada à prisão
No caso do Conselho de Goiás, a questão nada tem a ver com a atual gestão, diferentemente dos demais episódios citados. Em fevereiro deste ano, a 4ª Turma do Tribunal Regional Federal, da 1ª Região, manteve a condenação da ex-presidente do CRF-GO, Nara Luiza Barbosa de Oliveira, a três anos de detenção.
A justiça no Brasil é mesmo morosa. O fato ocorreu 16 anos atrás. Nara fechou um contrato sem licitação de R$ 260 mil, em 2003, com uma empresa de propriedade de sua mãe, Luiza Barbosa de Oliveira (também condenada na mesma ação). Além da condenação, a 4ª Turma manteve a multa aplicada pela Justiça Federal em Goiás, no valor de 2% do total do contrato.
O Relatório da condenação apontou que Nara, atuando como presidente do CRF-GO, contratou a empresa Solução Planejamento e Organizações de Eventos Ltda. para a intermediação de prestação de serviços pela Universidade Católica de Goiás, sem que fosse realizado procedimento licitatório, dispensando licitação fora das hipóteses previstas no artigo 24 da Lei 8.666/93.
A apelação do MPF pugna pelo aumento da pena-base, ao argumento de que a sentença deixou de considerar o fato de que a acusada Nara Luiza de Oliveira exercia o cargo de presidente do Conselho Regional de Farmácia e, nessa condição, tinha um dever maior de zelar pelo cumprimento da lei, devendo ser aplicado o mesmo raciocínio à sua mãe, a acusada Luiza Barbosa de Oliveira, uma vez que já ostentou a condição de presidente do CRF-GO em caráter especial.
Há uma solução para tudo isso?
Claro que uma das possíveis (e viáveis) soluções seria a moralização dos Conselhos e sua fiscalização para que essas entidades tenham uma atuação transparente e eficiente, e que trabalhem em benefício dos profissionais.
Entretanto, há os que defendam a total extinção desses Conselhos, como é o caso da deputada federal (PSL), Joice Hasselmann, que acredita que este é o momento para se falar das entidades de classe. Ela publicou sua opinião em 6 de março, nas redes sociais, e recebeu mais de 4.400 comentários (a maioria esmagadora apoiando a extinção dos Conselhos), com o post sendo compartilhado mais de 17.400 vezes.
Ela diz que circulam muitos pedidos para o fim da anuidade/mensalidade dos diversos Conselhos de classe nacionais e seus profissionais estão sendo impedidos de atuar em suas áreas por não conseguirem pagar altas taxas. “Chegou a hora de discutirmos a extinção da obrigatoriedade?”, indaga Joice.
Os comentários apontam a insatisfação geral de quem desempenha profissões regulamentadas com os seus respectivos Conselhos de fiscalização profissional e a falta de valor social que suas anuidades têm, sendo abusivamente caras, porém honradas com muito sacrifício por parte dos profissionais. “Vamos limpar do Brasil toda a forma de ganhar dinheiro sem o esforço individual”, mencionou um dos participantes do debate.
Em meio ao turbilhão de crises dos conselhos regionais de farmácia, em 20 e 21 de março, os presidentes dessas autarquias se encontram em um dos melhores pontos turísticos do nordeste brasileiro – Natal, capital do Rio Grande do Norte. Com vista para o mar, no Barreira Roxa Hotel, o encontro ainda mantém uma pauta desconhecida. As viagens dos conselheiros regionais (principalmente diretoria) e conselheiros federais para pontos turísticos como Natal, Foz do Iguaçu, Gramados, Rio de Janeiro, dentre outros destinos, é habitual. Isso pode ser comprovado no portal da transparência do CFF: entre outubro de 2016 e setembro de 2018 os conselheiros gastaram R$ 10.148.371,60 com agência de turismo (baixe o relatório completo aqui).