Bolsonaristas criaram uma suposta ‘corrente do bem’ para justificar a automedicação com cloroquina, azitromicina e ivermectina (antipulgas) diante dos primeiros sintomas respiratórios que se assemelham aos da Covid-19, como revelou a Folha. Segundo os seguidores do presidente Jair Bolsonaro, a medida é uma forma de apoiá-lo em sua cruzada pelo tratamento, ainda não comprovado cientificamente, com coquetel de cloroquina.
Após demitir dois ministros da Saúde que não apoiavam o uso indiscriminado da substância, Bolsonaro conseguiu nesta semana fazer o Ministério da Saúde lançar um protocolo que libera no Sistema Único de Saúde (SUS) o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina até para casos leves de Covid-19. Até então, o protocolo previa os medicamentos apenas para casos graves.
Diante das críticas que vem recebendo por politizar a questão do uso da substância, Bolsonaro foi taxativo em uma live na terça-feira (19/5): “Quem é de direita usa cloroquina. Quem é de esquerda, tubaína”. Parafraseando o presidente, o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta ironizou: “Quem é de direita usa cloroquina. Quem é de esquerda, tubaína. E quem é de juízo, escuta a medicina”.
Diversos estudos têm mostrado que cloroquina e hidroxicloroquina não só não têm efeito contra a Covid-19 como podem aumentar o risco cardíaco. Entidades médicas brasileiras, como a Associação de Medicina Intensiva Brasileira, a Sociedade Brasileira de Infectologia e a Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia, contraindicaram o uso e a Organização Mundial de Saúde (OMS) afirma que não há provas de que qualquer medicamento possa curar ou prevenir a Covid-19 e que o uso inapropriado pode causar efeitos colaterais graves e até levar à morte.
Segundo o diretor de emergências da OMS, Michael Ryan, tanto a cloroquina quanto a hidroxicloroquina só devem ser usadas contra a Covid-19 em ensaios clínicos, sob a supervisão de médicos em hospitais. Quem recebe a dose e vai para casa, ao ter uma reação adversa, corre o risco de não ter tempo suficiente para obter atendimento médico. O próprio texto do Ministério da Saúde reconhece que não há evidências suficientes de eficácia e prevê um termo de consentimento do paciente, que cita risco de agravamento da condição clínica.
Os apoiadores do presidente não hesitaram em descartar a tubaína e as recomendações dos especialistas. Para eles, há uma guerra política em curso que envolve governadores e a oposição que quer criar o pânico na população para obter ganhos políticos com a pandemia.
É assim que pensa a designer gráfica Marley Oliver, entrevistada pela Folha. “Tem uma guerra política. Eles estão agravando o estado de saúde das pessoas para apavorar a população”. Marley faz parte do grupo de 60 bolsonaristas que integram um acampamento montado há dois meses na porta da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), que pede o impeachment do governador João Doria e o fim da quarentena e medidas de isolamento social.
Marley Oliver contou ao jornal ter sentido febre, forte dor de cabeça e no corpo, perda de paladar e olfato no fim abril. Sem fazer teste para confirmar a suspeita da Covid-19 ou procurar um hospital, ela recebeu um mix das três substâncias de colegas de acampamento.
Os medicamentos são receitados por um grupo de profissionais não identificados que se autodenominam “médicos do bem” e, de acordo com a reportagem, as substâncias são compradas em grandes quantidades e distribuídas aos apoiadores do presidente.
Marley afirmou que topou ser cobaia da cloroquina e que prefere isso a buscar ajuda médica. “Olha, se a gente vai no hospital, corre o risco de entrar com uma topada e sair com Covid-19. A partir do momento que a maioria toma e diz que surtiu o efeito... É a maioria que tem razão”.
Para o empresário Mauro Reinaldo, que defende a ‘corrente de médicos do bem’ (mesmo não sabendo quem são esses profissionais da saúde e nem quem distribui os comprimidos entre os apoiadores do presidente), “as pessoas estão se automedicando por conta da falta de credibilidade do governo estadual. É uma guerra política, suja. Se forem no hospital, não vão conseguir a cloroquina”, disse à Folha.
Reinaldo acredita que pacientes da capital estão sendo transferidos para o interior com objetivo de inflar os números em todo o Estado. E que os hospitais de campanha estão com menos da metade de ocupação – segundo a prefeitura de São Paulo, 90% das UTIs na capital estão ocupadas.
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A reportagem da Folha apurou que a advogada Eliane Maffei visita o acampamento e bate ponto nas manifestações pró-Bolsonaro. Ela contou que tem vários colegas bolsonaristas tomando cloroquina ‘na clandestinidade’. “Está um Deus nos acuda, cada um por si. Eu tive sintomas e ouvi de um amigo médico: 'não vá ao pronto socorro porque até seu caixão já foi comprado”, disse.
Segundo seu relato, em 10 de abril começou a tossir e deixou de sentir cheiros. No mesmo dia, tomou por conta própria ivermectina (antiparasitário, usado contra vermes e parasitas, como piolhos, pulgas, sarna e filariose em humanos e em animais), que ainda está sendo testado contra o novo coronavírus. “Em 48h, passou. Se os hospitais estivessem dando cloroquina e ivermectina, não estaríamos tendo tantas mortes”, afirmou Eliane ao jornal.
De acordo com levantamento da Folha, um estudo australiano mostrou que a substância diminui a quase zero o material viral do novo coronavírus em testes com células cultivadas em laboratório. No entanto, ainda não se sabe se o efeito seria o mesmo em animais vivos.
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