País pode ficar para trás no recebimento de uma possível vacina, na avaliação dos especialistas. Isso porque será necessário produzir bilhões de doses, o que necessariamente demandará tempo e recursos. O temor de muitos sanitaristas é que a lei do mais forte e do mais rico prevaleça também nessa fila, segundo apurou O Globo.
Além da força das grandes potências e os gargalos na produção, há outros obstáculos a superar, como os preços elevados dos medicamentos, a questão das patentes, a falta de governança global e, no caso brasileiro, o descompasso do Governo Federal em relação à maioria dos países no combate à Covid-19. O presidente brasileiro Jair Bolsonaro é considerado um pária internacional por sua atuação desastrosa no combate à pandemia. Na Organização Mundial de Saúde (OMS), ele passou a ser visto por uma parcela dos técnicos como um ‘perigo’, já que sinalizou à população seu desprezo pela ciência, por divulgar falsas informações e ainda ignorar as recomendações dos especialistas, conforme revelou o Uol.
Fundada há 20 anos em Genebra, na Suíça, a Aliança Global para Vacinas e Imunização (Gavi) lançará no próximo dia 4/6 um compromisso antecipado de mercado (AMC), contrato vinculativo que garante mercado para quem desenvolver o produto, voltado a 73 países em desenvolvimento, que não incluem o Brasil. A inédita política isolacionista praticada pela atual chancelaria brasileira acaba afastando o País das abordagens multilaterais, o que poderá colocá-lo algumas posições atrás na fila global.
O País também não foi chamado para participar de um projeto da OMS e dos países europeus que conta com mais de US$ 7 bilhões em busca de uma vacina. Segundo o Uol, a decisão de não chamar o Brasil surpreendeu diplomatas em Brasília, que desconheciam o projeto até dias antes de seu anúncio formal.
Os desafios brasileiros, portanto, são enormes, mas o País tem alguns trunfos, oriundos de uma tradição secular de combate a surtos e endemias. Segundo os especialistas entrevistados pelo Globo, o Brasil leva vantagem em relação ao mundo em desenvolvimento, por contar com as fábricas de Bio-Manguinhos, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e com o Instituto Butantã, dois dos maiores centros produtores de vacinas da América Latina.
Segundo Katherine Bliss, do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, de Washington, “os países e as indústrias precisam pensar e agir agora, entender quais são as suas necessidades e se preparar”. Mas, segundo o pesquisador emérito da Fiocruz, Akira Homma, um dos desafios para essa preparação é que ainda não se conhece a plataforma tecnológica que será usada, o que dificulta a adaptação.
O pesquisador afirma que a fundação “está em contato com grandes laboratórios” do mundo, para parcerias. “Se houver uma plataforma tecnológica de que não dispomos, muito distante da nossa, demorará mais para produzirmos” afirmou ao jornal.
De acordo com José Gomes Temporão, que foi ministro da Saúde durante a epidemia de H1N1, em 2009, as instalações do Instituto Butantã permitiram, na época, a imunização de 100 milhões de pessoas. Ele diz que “é muito improvável” que o mesmo instituto possa ser usado para o novo coronavírus, e que ainda é incerto se a adaptação de Bio-Manguinhos poderá ser simples ou complexa.
“Isso vai depender da tecnologia utilizada, que não sabemos se será mais ou menos complexa, o se demandará uma produção mais lenta, ou mais breve. Porém, o Brasil é o único país em desenvolvimento que tem duas grandes fábricas, o que nos dá uma vantagem”, afirmou ao Globo.
Quando a vacina vai chegar?
Para os otimistas, é possível que a vacina esteja disponível entre 12 e 18 meses. Analisando-se o retrospecto de outras vacinas, é um prazo promissor. Mais de 70 meses se passaram entre o começo do desenvolvimento de uma vacina contra a Mers (síndrome respiratória do Oriente Médio), no início da década, e os seus primeiros testes clínicos. No caso da Covid-19, foram 79 dias. Há mais de 100 pesquisas em andamento para alcançar um imunizante, e oito delas já começaram ou estão prestes a começar testes clínicos, o que mostra a urgência e o vigor da ciência para enfrentar a pandemia.
Nesta semana, a assembleia geral da Organização Mundial da Saúde (OMS) deixou clara a ansiedade global pela disponibilidade de uma vacina contra a Covid-19, com uma resolução que destaca o “acesso equitativo” a todas as nações. A preocupação se explica porque, em que pese existir bons motivos para acreditar no desenvolvimento de uma vacina em tempo recorde, é incerto quem terá acesso a ela inicialmente. Produzir bilhões de doses necessariamente demandará tempo e terá custo elevado, e certas populações, entre diferentes países e também dentro deles, terão de ser priorizadas. Os mais pobres podem ir para o fim da fila.
“Há muitas coisas que não se sabe, e temos visto vários exemplos de comportamento monopolista, em que países fazem compras bilaterais junto a empresas”, afirmou ao Globo professor de Saúde Global na Universidade Duke, Gavin Yamey. “Precisaremos de um nível de cooperação nunca antes visto, entre países, o setor privado, a filantropia e outros”.
Mais do que a propriedade intelectual, a capacidade de produção será o principal gargalo para uma estratégia de vacinação global, e países que financiam grandes farmacêuticas levam vantagem, afirmou ao jornal o diretor de políticas e desenvolvimento global do Instituto de Saúde Global, de Barcelona, Rafael Vilasanjuan. “Como produzir 5 bilhões de vacinas, ou 10 bilhões, caso a dose tenha que ser dupla? A verdade é que nenhum dos países está isento de tensões muito unilaterais neste momento, pensando no que pode obter para si”.
Ao se levar em conta o exemplo do que ocorreu com a gripe H1N1, a situação não é auspiciosa. Na ocasião, os países pobres, entre os mais atingidos pela doença, foram para o final da fila da vacina, enquanto as companhias farmacêuticas assinaram contratos com as grandes potências. Houve disputas entre elas próprias, e o governo da Austrália chegou a deter remessas até imunizar a sua população. Nos Estados Unidos, o governo tinha contratos que lhe garantiam 600 milhões de doses, fatia enorme dos estoques globais.
Cada um puxa uma ponta do cobertor para o seu lado
Seiscentos milhões de doses são, também, a capacidade anual que a Sanofi, uma das maiores companhias que pesquisam a vacina da Covid-19, afirmou deter, caso venha a obter êxito na sua investigação. Na semana passada, o presidente da empresa, Paul Hudson, afirmou que, caso venha a ter êxito na pesquisa, a prioridade das remessas serão dos Estados Unidos, porque o país “investiu em assumir o risco” em fevereiro, quando firmou um pacto com a empresa.
O executivo foi muito criticado na França por esse comentário. O governo francês disse que seria ‘inaceitável’ que o grupo farmacêutico Sanofi desse prioridade aos americanos no caso de encontrarem uma vacina. “Para nós, seria inaceitável que haja um acesso privilegiado para este, ou aquele país, sob um pretexto que seria monetário”, disse a secretária de Estado da Economia da França, Agnès Pannier-Runacher, a uma emissora de rádio francesa.
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que já errou muito nessa pandemia, não quer aprofundar o seu desastre, sobretudo em um ano eleitoral. Trump tem feito esforços bilionários para acelerar as pesquisas, incluindo a Operação Warp Speed, que reúne companhias farmacêuticas, agências governamentais e militares, e busca puxar o prazo de conclusão da vacina para oito meses.
Já na China, há também um ritmo acelerado e quatro das oito candidatas na etapa dos testes clínicos são de lá. O país afirmou que, caso desenvolva a vacina primeiro, a colocará em domínio público, o que permitiria a Pequim obter um forte trunfo em sua rivalidade com Washington.
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Em relação à propriedade intelectual, outro sensível ponto de discórdia, a declaração de acesso equitativo feita na OMS, sem caráter vinculante, é um bom agouro, por afirmar que todos terão em princípio o mesmo direito. Restam muitas dúvidas, contudo, sobre como isso será operacionalizado, disse Francisco Viegas, consultor no Rio de Janeiro da Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi).
“Há muitas dúvidas sobre como uma possível cooperação funcionaria no mundo real, o que envolve transferência de tecnologias, capacidade de produção, abertura de patentes e a adaptação de políticas regulatórias” salientou ao Globo.
Um dos problemas, segundo David Salisbury, que foi diretor do programa nacional de imunização britânico e hoje está na Chatam House, é que será muito difícil produzir as instalações industriais. Também não há leis que obriguem as companhias a obedecer. “Não estou otimista, porque será muito difícil produzir, manufaturar vacinas é altamente complexo. A OMS diz que queremos equidade, mas são empresas privadas. Não há jeito de evitar, é um beco sem saída”, concluiu.
Em um cenário no qual a vacina sequer apareceu, as disputas já se mostram acirradas, com alguns querendo furar a fila que ainda nem se formou. A prevalecer o unilateralismo ou o mau e velho egoísmo, todos vão perder a luta para a pandemia, que não escolhe palco para colocar seus atores em ação.
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