Será que após a pandemia do novo coronavírus o mundo será o mesmo? E nós, farmacêuticos, seremos os mesmos?
Ao longo da trajetória da humanidade, muitas doenças mudaram o curso da história, propiciando alterações que vão desde hábitos culturais, expansão de poder, modificações na economia e, também, avanços tecnológicos.
Como exemplo, eu posso citar a peste bubônica, causada pela bactéria Yersinia pestis, que, no século XIV, matou cerca de um terço da população da Europa.
A enorme mortalidade daquela epidemia causou escassez de mão de obra para os proprietários de terras, fazendo com que o velho sistema feudal, que forçava pessoas a trabalhar nas terras de um senhor para pagar seu aluguel, começasse a desmoronar.
Isso levou a Europa Ocidental a desenvolver uma economia mais moderna, comercial e baseada em dinheiro.
Outra epidemia viral, com a qual estamos convivendo nos dias atuais, é a Aids, causada pelo vírus HIV. Aprendemos em todos os sentidos com essa doença. Quebramos tabus e passamos a lidar, de forma mais honesta, com as diferentes opções sexuais.
As pesquisas científicas em busca de medicamentos para tratamento do vírus da Aids nos deram drogas para o tratamento da Hepatite C.
As pesquisas sobre o vírus HIV também trouxeram contribuição significativa para os métodos utilizados, atualmente, em biologia molecular.
Pois bem, e o novo coronavírus? De que forma poderá mudar as nossas vidas?
A infecção pelo vírus SARS-CoV2, causador da Covid-19, surgiu como um verdadeiro furacão, mudando o cenário das grandes cidades mundiais; trazendo vazio, onde milhares de turistas faziam seus passeios; esvaziando locais de encontro de fiéis, cuja presença era importante para a confraternização; calando estádios por todo o mundo, onde, outrora, se ouviam gritos de gols; silenciando fábricas e outros locais de trabalho, cujo barulho feito pela presença de trabalhadores fazia parte do ambiente; e fazendo metrópoles adormecerem e silenciarem.
Com toda essa situação, é inevitável que mudanças surjam na sociedade, afetando o comportamento humano, as relações pessoais e de trabalho, e até mesmo mexendo em estruturas cujas fundações pareciam sólidas.
Estamos vivenciando, no Brasil, mudanças de comportamento que, certamente, se incorporarão à cultura popular. O álcool em gel, por exemplo, que já era utilizado, agora dificilmente deixará de estar presente na vida das pessoas.
A máscara de procedimento que, em alguns países, é usada normalmente para evitar a poluição e também em pessoas que apresentam síndromes gripais, passou a ser normal e, com certeza, será usada em outras ocasiões.
As leis trabalhistas que, no Brasil, são quase um dogma, começam a ser flexibilizadas devido à necessidade de se encontrar soluções frente a uma infeção viral. Quem diria...um vírus fazendo papel de um legislador!
O trabalho em home office (trabalho em casa) que, embora possível, era pouco utilizado, agora se tornou essencial e é totalmente possível para diversas áreas.
As reuniões realizadas por algumas empresas por meio de plataformas digitais, agora, se tornaram obrigatórias para a manutenção e sobrevivência das empresas e instituições.
A medicina, profissão cuja prática se deu sempre no contato presencial entre médico e paciente, aceitou o uso de tecnologia para poder atender à necessidade de uma população que não pode se aglomerar e esperar em salas de atendimentos, muitas vezes lotadas.
Médicos que faziam suas prescrições assinadas por canetas sobrepostas a carimbos, agora procuram meios eletrônicos de validar suas condutas. Agora, os médicos podem usar a telemedicina, respaldados por legislações.
Isso mudará a relação de médicos e também de outros profissionais de saúde, não só com pacientes, mas, com certeza, trará reflexos na prestação de seus serviços para com as operadoras de planos de saúde.
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Na área de educação, ferramentas estão sendo usadas para que as aulas não parem. E não podem parar.
Essas ferramentas permanecerão após o controle da Covid-19? Com certeza, a discussão sobre esse tema irá aumentar e nós não fugiremos desse debate.
E na área de farmácia, quais mudanças ocorrerão?
Será que as legislações das décadas de 1970, 1980,1990 conseguirão se manter ou, finalmente, vamos ter a possibilidade de modernizá-las?
Conseguiremos implantar tecnologias nas áreas de dispensação?
E o uso de máscaras e luvas nas farmácias, tão discutido nos dias atuais, será incorporado ao trabalho do farmacêutico como profissional de saúde que lida com pacientes? Ou será que esses Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) servem só quando há pandemias?
Pois bem, se os médicos vão atender aos seus pacientes por meio do uso de tecnologias e farão prescrições também dessa forma, então, as farmácias terão que usar ferramentas que possam dar segurança da autenticidade, privacidade e rastreabilidade desses atendimentos.
Essas ferramentas já existem.
O Conselho Regional de Farmácia de São Paulo (CRF-SP) foi pioneiro em propiciar acesso a uma dessas ferramentas aos colegas e às farmácias, mas a adesão foi pequena.
Agora, devido a essa situação, os colegas começam a procurá-la.
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A pandemia causada pelo novo coronavírus trouxe a farmácia para uma realidade que parecia distante. A prescrição em papel, cada vez mais, será coisa do século passado.
Mas, se a prescrição será eletrônica, se a autenticidade se dará por confirmação em plataformas digitais, então, as legislações que hoje exigem papéis também terão que mudar.
Que bom!
E o uso de telemedicina também abre oportunidades para os farmacêuticos. Será possível maior interação entre farmacêuticos e médicos. Isso pode ajudar ainda mais na consolidação da farmácia como estabelecimento de saúde.
Muitas são as oportunidades de mudanças e consolidação das mesmas para a profissão e para o setor farmacêutico.
Mas, não posso terminar este artigo sem tocar em uma mudança que espero ver consolidada: a farmácia sendo, de fato, considerada como Estabelecimento de Saúde, como definido na Lei 13.021/14.
E, se a farmácia é um estabelecimento de saúde, então, os profissionais farmacêuticos têm direito ao uso de EPIs, não em épocas de pandemia, mas no desenvolvimento de seu trabalho diário, ou sempre que julgarem necessário. Essa pandemia, finalmente, deixou muito claro, para os farmacêuticos e para os empresários do setor, que a farmácia é um ambiente de risco para a contaminação da equipe de profissionais.
E sabe por quê?
Porque a farmácia não recebe apenas “clientes”, recebe “pacientes”, e local que recebe paciente é estabelecimento de saúde!
Durante anos, as lideranças da profissão farmacêutica repetiram insistentemente que o farmacêutico é profissional de saúde. Tenho, pra mim, que, finalmente, os colegas entenderam isso, e não haverá volta nem retrocesso.
A profissão farmacêutica será diferente quando a pandemia acabar. E será melhor. Eu e a Diretoria do CRF-SP estaremos aqui para ajudar nessa consolidação.
* Marcos Machado Ferreira é farmacêutico-bioquímico e presidente do Conselho Federal de Farmácia de São Paulo (CRF-SP).
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