O medicamento é um fator primordial de soberania nacional. É um dos pontos mais sensíveis na saúde de qualquer nação, já que protagoniza o processo da cura. Apesar da disponibilização de qualquer tecnologia em hospitais, laboratórios e farmácias, sem o medicamento adequado não há, na maioria das vezes, um tratamento. Por conta disso, os laboratórios oficiais exercem uma função primordial no acesso da população à saúde, na medida em que fornecessem medicamentos que suprem necessidades específicas da população, tendo o farmacêutico como peça-chave nesse processo.
O professor, PhD, Marcos Antônio Salvo Coimbra, ilustra bem isso: "São condições básicas para um País ser independente no mundo de hoje: a autossuficiência em alimentos, energia, transporte e medicamentos". Considerando que, por mais moderna que seja qualquer tipo de estrutura hospitalar, após a conclusão de um diagnóstico médico, o medicamento prescrito se constituirá no vetor da cura, já que será o responsável pelas ações farmacológicas previstas e necessárias em qualquer tipo de substrato orgânico, seja humano ou animal.
O medicamento, portanto, se traduz como um dos elementos mais sensíveis nos programas de saúde pública de qualquer nação, já que protagoniza o processo da cura, ou seja, se o medicamento certo não for oportunamente ofertado para aquela doença ou ocorrência específica, o tratamento será inconsistente. É o que afirma, com exclusividade ao Portal do ICTQ - Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico, o coronel farmacêutico da Aeronáutica, Manoel Rodrigues Martins, com a propriedade de quem já dirigiu o Laboratório Químico-Farmacêutico da Aeronáutica (LAQFA), entre 2003 e 2007.
Para ele, a aquisição de medicamentos, sejam de referência ou genéricos, produzidos pelas multinacionais farmacêuticas, está amplamente comprometida em função do alto preço praticado nas farmácias no Brasil (principalmente no caso de doenças que exigem tratamento continuado, como as doenças cardiovasculares, metabólicas, inflamatórias e psiquiátricas). A demanda é rigidamente inelástica em relação ao preço.
“Por conta disso, e sem visar qualquer lucro, os laboratórios farmacêuticos oficiais federais (onde estão inseridos o Laboratório Farmacêutico da Marinha (LFM), o Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército (LQFEX) e o LAQFA, além dos laboratórios farmacêuticos oficiais estaduais), têm exercido uma função primordial, pois têm permitido o acesso da população a diversas classes de medicamentos, suprindo necessidades específicas nesse aspecto. Imperioso, aqui, destacar a participação do profissional farmacêutico como peça-chave no contexto desse processo”, ressalta Rodrigues.
Mesmo o Brasil tendo o maior número de farmácias e drogarias do mundo, e uma população de mais de 216 milhões de habitantes, o País não participa do ranking dos principais laboratórios produtores de marcas, ou seja, de princípios ativos farmacológicos, entre os quais: Abbot, Astra Zeneca, Bayer, Boehringer Ingelheim, Bristol-Meyers-Squib, Eli Lilly, Glaxo-Smithkline, Johnson & Johnson, Merck & Co, Merck Sharp & Dome, Pfizer, Roche, Sanofi-Aventis, Takeda e Teva.
“Convém lembrar que a indústria farmacêutica é de transformação e atua no processamento dos princípios ativos e de insumos farmacêuticos para a obtenção de uma fórmula e de uma forma farmacêutica específicas. Já a indústria de química fina, de tecnologia de ponta, trabalha na obtenção de princípios farmacêuticos ativos, os quais irão operacionalizar a ação farmacológica necessária em um substrato orgânico específico”, comenta Rodrigues.
O Brasil é, atualmente, um grande importador de princípios ativos farmacêuticos, uma vez que sua indústria de química fina é ainda incipiente. Isso remete a riscos de desabastecimento de alguns medicamentos, como já aconteceu no passado, incluindo os chamados ‘produtos órfãos’ (drugs negleted for diseases), correspondendo àqueles medicamentos para tratamento de doenças típicas de um país tropical, mas sem incidência em países europeus.
Produtores de Insumos dominam mercado mundial
De acordo com Rodrigues, a pesquisa de um único farmoquímico exige tecnologia de ponta, profissionais multidisciplinares e robôs de alta complexidade até a finalização do produto. Destaca que, em cada cinco mil linhas de pesquisa, em torno de apenas duas chegam ao consumidor como produto pronto. Essa tecnologia poderá consumir entre oito a dez anos de pesquisa para ser sintetizada, com um custo médio estimado em torno de US$ 2 bilhões (R$ 8,9 bilhões).
Ainda segundo ele, para que o Brasil se torne, em algum momento, referência como indústria de química fina - indústria farmacêutica para a fabricação de princípios farmacologicamente ativos -, serão necessárias a implantação de gestões políticas governamentais, a criação de uma massa crítica para profissionais multidisciplinares nessa área específica, o redirecionamento de verbas e a definição de prioridades, principalmente, com foco em doenças típicas de um país tropical.
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Mercado farmacêutico
Além da dependência crônica de farmoquímicos, um fato que atua negativamente no mercado farmacêutico brasileiro é o excessivo número de farmácias e drogarias no Brasil, que não obedece a qualquer tipo de critério para sua abertura, de acordo com Rodrigues. “Qualquer pessoa, em qualquer lugar, independentemente da existência de outras drogarias e farmácias, pode abrir um novo estabelecimento dessa categoria, ou seja, existe total facilidade para se abrir uma nova drogaria ou farmácia. Além disso, não é avaliado pelos órgãos municipais e até sanitários o impacto que isso irá gerar em estabelecimentos já em funcionamento”, lamenta ele.
O militar reforça que o profissional farmacêutico possui uma formação acadêmica que o qualifica para o trato com o medicamento, além das orientações pertinentes sobre o seu uso, defendendo a criação dos ambulatórios de farmácias para a orientação ao paciente sobre o uso correto do medicamento no momento do aviamento da receita.
Esse procedimento, certamente, será um fator decisivo para evitar riscos no uso inadequado dos medicamentos. Com isso, certamente, o risco do uso inadequado da medicação será minimizado.
Protagonismo farmacêutico
Reiterando ao que fala o coronel Rodrigues, da importância seja da produção de medicamentos para a soberania nacional, quanto do protagonismo farmacêutico nos tratamentos de saúde, oferecendo, principalmente, orientação técnica para melhor efetividade de determinado tratamento, o diretor do Departamento de Gestão Hospitalar (DGH), do Ministério da Saúde, Marcelo Lambert, responsável por coordenar os seis hospitais federais do Rio de Janeiro, aproveitou para abordar as oportunidades recentes que os farmacêuticos vêm tendo ao se colocar como peça importante e indispensável nas equipes de saúde.
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Segundo Lambert, o Ministério tem muitas oportunidades para este profissional, passando inclusive por um processo de aposentadorias e recomposição de equipes de Recursos Humanos, o que é fundamental e também uma estratégia de recomposição do farmacêutico.
“Ele é peça fundamental no serviço de saúde, porque a ele temos a confiança de todo o preparo e da farmacologia clínica interagindo, interdisciplinarmente, com toda a equipe para que possamos entregar medicamentos de qualidade, fracionado, individualizado e com a discussão clínica associada. Isso engrandece, não só o aprendizado da equipe, como oferece o melhor tratamento para o paciente. Isso é fundamental na estratégia do tratamento”, ressalta.
A interação multidisciplinar tem sido bastante estimulada, tanto em redes públicas como nas privadas no mundo inteiro, e ela designa que todos os atores que participam do processo de cuidado do paciente estejam integrados e compartilhando as informações a fim de que se possa entregar o melhor produto e serviço.
Relevância dos laboratórios públicos
Segundo Lambert, os laboratórios farmacêuticos públicos, como o próprio LAQFA, que têm plantas desenvolvidas, com certeza contribuíram à repactuação no fornecimento de medicamentos para a rede federal. “A ideia é que esses medicamentos sejam produzidos fazendo a contratualização pelo Ministério da Saúde e autorização dos demais entes ministeriais, para que nós possamos produzir medicamentos nesses laboratórios, provendo os nossos hospitais com medicamentos de qualidade e uma planta de alta tecnologia”, diz.
O foco atual para a produção nos laboratórios oficiais são medicamentos oncológicos - por apresentarem alto custo, e aqueles que constam na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename) - que apresentam patente quebrada e podem ser produzidos pelas unidades do Ministério da Saúde.
Só no Rio de Janeiro, há seis laboratórios da Associação dos Laboratórios Oficiais do Brasil (Alfob), e a força aérea tem uma planta nova extremamente capaz de produzir os oncológicos, inclusive, com o fracionamento. “Nós aproveitaríamos muito essa oportunidade de reduzir custos e oferecer qualidade aos nossos pacientes”, ressalta Lambert.
Recorde de produção do LAQFA
Com especializações em Análises Clínicas, Indústria Farmacêutica e mestrado em Recursos Humanos, o coronel farmacêutico Rodrigues foi responsável, enquanto diretor do LAQFA, pelo primeiro planejamento estratégico daquela instituição militar fabril, culminando com a inauguração, à época, de novas instalações atendendo ao preconizado pela Anvisa, com destaque para a conquista do recorde em sua produção, no ano de 2006.
O LAQFA foi criado em 1971, como uma indústria farmacêutica militar e, desde então, tem atuado como um dos laboratórios farmacêuticos oficiais produtores de medicamentos no Brasil, atendendo às demandas do Comando da Aeronáutica (COMAER) e dos programas de assistência farmacêutica do Ministério da Saúde.
“A história do LAQFA está ligada à inovação, tendo se destacado ao longo de sua trajetória, por projetos inovadores em sua área de atuação. Exemplos disso foram a fabricação de insulina de 40 e 60 UI, a partir de 1976, por ocasião do desabastecimento nacional daquele medicamento, pegando de surpresa o País e os usuários do produto”, lembra Rodrigues.
Para suprir a demanda, a Central de Medicamentos (CEME) importou, em caráter de urgência, a insulina bovina dos Estados Unidos. A partir daquele momento, o corpo técnico do LAQFA trabalhou diuturnamente durante dez meses, quando conseguiu sintetizar o primeiro lote de insulina de 40 e 60 UI, suprindo a demanda nacional. Em 1983, surge novo problema de desabastecimento, dessa vez em relação às soluções de hemodiálise, quando o LAQFA, mais uma vez, cumpriu sua missão estratégica e institucional, produzindo milhares de litros daquele produto.
No primeiro semestre de 2002 o medicamento iodeto de potássio 130 mg, utilizado pela Fundação Eletro Nuclear em Angra dos Reis, para a proteção da glândula tireóide no caso de acidentes envolvendo o vazamento de radiações ionizantes, teve seu fornecimento interrompido pela França. O diretor e o corpo técnico do LAQFA foram convocados pelo Ministério da Saúde para a fabricação do produto, em caráter de urgência, até o vencimento dos prazos de validade dos comprimidos ainda em estoque, oriundos da França.
“Vale destacar que, naquele mesmo ano, o LAQFA conseguiu produzir o primeiro lote do produto, suprindo oportunamente a Fundação Eletro Nuclear. O reconhecimento foi imediato. Uma prova disso foi o agraciamento do LAQFA pela United State Pharmacopeia (USP) pela produção do produto”, diz o coronel.
Ao jornalismo do Portal do ICTQ, o militar exemplificou suas considerações citando Israel que, sem nenhuma biodiversidade, tem se destacado em tecnologia de ponta, incluindo os farmoquímicos - molécula farmacêutica farmacologicamente ativa. Ele entende que faltou ao Brasil ações políticas com foco na produção de farmoquímicos, apesar da magnífica biodiversidade existente.
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