Médicos que trabalharam na linha de frente da Covid-19 na Prevent Senior relataram à Globonews que a operadora de saúde os obrigava a prescrever medicações que não funcionam e podem agravar o quadro dos pacientes com a doença, como o ‘kit covid’ e a flutamida, indicada apenas para câncer de próstata e que pode causar hepatite fulminante.
A flutamida era comercializada para o tratamento de acne até 2004, quando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) emitiu alerta para que o medicamento não fosse utilizado para nenhuma finalidade que não fosse o câncer de próstata depois que quatro mulheres morreram de hepatite fulminante. O medicamento é um inibidor de hormônios masculinos. Na bula, o fabricante diz que a flutamida não deve ser usada por mulheres e que a única indicação é para tratar câncer na próstata.
Os ex-médicos da Prevent Senior também relataram à emissora que eram obrigados a prescrever o ‘kit covid’ – composto por cloroquina, azitromicina e ivermectina, além da flutamida – sem autorização dos familiares dos pacientes. A reportagem da Globonews conversou com cinco médicos que trabalharam na operadora.
De acordo com o Conselho Federal de Medicina (CFM), os médicos têm autonomia para prescrever o medicamento que achar adequado ao paciente, mas, segundo os profissionais de saúde entrevistados pela TV, não é o que acontece na Prevent Senior. Um deles foi demitido depois de se recusar a dar essas medicações, outro teria o mesmo destino se não revisse sua decisão.
“Eu deixei de prescrever por um único dia acreditando nisso e acabei sendo chamado à diretoria com orientações bem claras de que eu deveria prescrever a medicação e o que ficava implícito era que se não prescrevesse a medicação você estaria fora do hospital. Voltei a prescrever a medicação por ter sido obrigado a prescrever. A autonomia, na verdade, é zero, você não tem escolha de deixar de prescrever. Se você não prescreve, você vai ser demitido”, afirmou à emissora um dos médicos, que preferiu não se identificar.
A Globonews afirma que teve acesso a conversas em aplicativos de mensagens de grupos da Prevent Senior que confirmam o relato dos profissionais. Em um dos diálogos, um diretor da empresa orienta os subordinados a medicar todos os pacientes com problemas respiratórios com hidroxicloroquina e azitromicina sem avisá-los disso, apesar de serem medicamentos sem indicação para Covid-19.
Em outra mensagem, de maio de 2020, outro diretor mostra um gráfico indicando queda na distribuição dos kits e cobra a equipe. “Não podemos perder o foco, voltamos a ter rendimentos ruins, não podemos perder o tônus”.
Práticas experimentais não autorizadas eram utilizadas
Prontuários médicos e outros documentos obtidos pela emissora mostram que práticas vetadas pelo Conselho Federal de Medicina, como a ozonioterapia, também eram aplicadas. A resolução do órgão diz que a ozonioterapia só pode ser feita “de acordo com as normas do sistema CEP/Conep”, que são os Comitês de Ética em Pesquisa que autorizam experimentações em humanos. A prática só é permitida em instituições credenciadas, o que não é o caso da Prevent Senior.
O coordenador da Conep, Jorge Venâncio, disse à Globonews que iniciar uma pesquisa sem ter autorização é uma “irregularidade grosseira”. “Nesses casos de pesquisa não autorizada a responsabilidade por qualquer dano que exista ao participante é exclusivamente dos pesquisadores da instituição que tiver fazendo a pesquisa”.
Em 24 de março, o Ministério Público de São Paulo abriu investigação para apurar a prescrição de medicamentos não-indicados na rede Prevent Senior. No mesmo dia a Promotoria recebeu uma denúncia anônima de que “os médicos da direção da empresa estão solicitando a prescrição obrigatória para todos os pacientes internados com Covid-19 de medicações não comprovadas cientificamente” e cita a flutamida e o etanercepte (medicamento indicado para artrite e psoríase).
Na denúncia, o informante diz que “a Prevent Senior está induzindo seus médicos a prescreverem as medicações citadas sem consentimento livre e esclarecido dos familiares dos pacientes, sem estar enquadrado em nenhum estudo científico e sem protocolo institucional”, conforme a Globonews.
A representação ao MP foi acompanhada de fotos de uma conversa em um grupo de médicos da Prevent Senior. Um diretor da operadora escreve: “Bom plantão a todos e enfatizo a importância da prescrição da flutamida 250 mg de 8 em 8 horas para todos os pacientes que internarem”.
Trabalhar mesmo com Covid-19
Os profissionais de saúde também afirmaram à TV que foram obrigados a fazer plantões nos hospitais da Prevent Senior quando estavam infectados com o novo coronavírus. Um deles enviou o resultado do teste e a escala de plantões nos dias seguintes à emissora, comprovando que ele trabalhou mesmo infectado. O médico atuou ao menos cinco dias infectado com a doença e atendendo pacientes.
“Aconteceu algumas vezes, inclusive comigo. Eu estava com Covid-19, tive o diagnóstico, enviei a mensagem para o meu coordenador, avisando que estava com Covid, mandei o exame pra ele, ele pediu que eu fosse para o plantão mesmo assim para repetir esse exame lá (na Prevent Senior). O exame foi feito lá também, confirmou novamente que estava com Covid, mas ele pediu para eu continuar trabalhando mesmo assim. Não tinha escolha de poder ir para casa e continuei realmente trabalhando com um Covid”, revelou o médico à TV.
Em nota enviada à Globonews, a Prevent Senior se defende e diz que não obrigou médicos a trabalhar com Covid-19 ou a receitar determinados medicamentos. “A Prevent Senior jamais coagiu médicos a trabalhar doentes, o que foi atestado recentemente por vistorias de conselhos de classe. Todos os profissionais prestadores de serviço afastados, aliás, continuaram a receber salários”.
“Sobre os tratamentos, a empresa dá aos médicos a prerrogativa de adotar os procedimentos que julgarem necessários, com toda a segurança e eficiência e sempre de acordo com os marcos legais, notadamente seguindo as diretrizes do Conselho Federal de Medicina. Entretanto, como a Prevent Senior não teve acesso aos supostos documentos obtidos pela Globonews, não pode esclarecer detalhadamente os questionamentos”, conclui a nota.
Kit-covid pode ter gerado mortes por hepatite e fila para transplante
Ao menos três pacientes morreram por hepatite e cinco estão na fila de transplante de fígado em São Paulo, conforme apurou o Estadão. A relação entre essas pessoas se dá por algo em comum: todas fizeram uso do ‘kit-covid’. Os fármacos do kit não têm eficácia comprovada para combater o vírus – a Organização Mundial de Saúde (OMS) já rejeitou seu uso para tratar a doença e alertou que eles podem ocasionar efeitos colaterais.
De acordo com a coordenadora acadêmica do ICTQ – Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico, e especialista em farmácia clínica e prescrição farmacêutica, Juliana Cardoso, o uso indiscriminado de medicamentos, na falha tentativa de prevenção à Covid-19 ou até na esperança de aliviar os sintomas, em casos de contaminações, tem contribuído para a automedicação e o uso abusivo dessas drogas que falsamente interferem na infecção ao coronavírus.
Ela reforça que, como consequência desse uso, os medicamentos promovem uma série de reações à saúde, como efeitos colaterais – que são diferentes daqueles considerados como principal por um fármaco. Além disso, Juliana informa que o indivíduo se expõe a uma chance de reação adversa, caracterizada como qualquer resposta prejudicial ou indesejável, não intencional, a um medicamento.
A coordenadora do ICTQ explica que, além dessas ações indesejáveis, os pacientes ficam expostos ao risco de intoxicações, insuficiências hepáticas e até mesmo hepatite medicamentosa – causada pelo uso prolongado de medicamentos. Não bastando, ela cita outras sérias complicações que podem ocorrer, inclusive, na superlotação da rede de saúde.
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“Todas essas situações precisam de um cuidado da equipe de saúde, incluindo nós, farmacêuticos, e outros profissionais, como nutricionistas, além de médicos e enfermeiros. O que se resume em um aumento na procura de cuidados hospitalares, contribuindo, assim, para a superlotação do sistema de saúde. Infelizmente em uma tentativa em vão de não se contaminarem, indivíduos sem nenhum acompanhamento acabam interferindo e piorando uma situação já crítica do cenário atual”, explicou a coordenadora.
Juliana reforça que o papel do o papel do farmacêutico clínico vai além do acompanhamento farmacoterapêutico a pacientes que fazem uso da polifarmácia, ou seja, aqueles que fazem uso de 5 ou mais medicamentos. Ela endossa que compete aos profissionais, também, dar orientações sobre as medidas corretas e necessárias para a prevenção contra o coronavírus, assim como educar os pacientes sobre conhecimentos, até então, ilustrados e comprovados pela ciência.
“Não podemos nos mover por achismos, como profissionais sérios e éticos, nós farmacêuticos nos movemos por certezas, certezas estas já comprovadas pela ciência, e sem sombra de dúvidas matemos a esperança de dias melhores confiando no trabalho árduo de cientistas e seus respectivos projetos de pesquisas que visam beneficiar sempre o paciente”, defendeu.
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