Com o mercado farmacêutico cada vez mais focado em especificidades clínicas, uma das carreiras que mais vêm se destacando neste segmento é a farmácia especializada em oncologia, que permite ao profissional atuação em hospitais filantrópicos, públicos e privados. Leia a matéria sobre a carreira do farmacêutico oncológico, publicada no Portal de Conteúdo do ICTQ – Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico (leia aqui).
A farmácia oncológica exige que o profissional possua perfil multidisciplinar, com conhecimentos básicos de administração e habilidade para coordenação e liderança. É imprescindível possuir competência para implantação da farmácia clínica e programas de atenção farmacêutica. Todo serviço de alta complexidade no tratamento do câncer, cadastrado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), deve contar com um farmacêutico para a realização de manipulação de quimioterápicos.
“O farmacêutico oncológico é um profissional muito dinâmico, e sua atuação é primordial na assistência, compondo a Equipe Multidisciplinar de Oncologia (EMTA). Ele exerce atividades de extrema importância que envolvem a qualidade e a segurança do paciente e vários processos de utilização do medicamento”, diz a farmacêutica, professora do ICTQ, especialista em assistência farmacêutica com ênfase em atenção farmacêutica e atuação na área de farmácia oncológica, dra. Ariely Vermelho da Silva.
Legislação
A professora explica que a Resolução 288/96, do Conselho Federal de Farmácia (CFF), dispõe sobre a competência legal para o exercício da manipulação de drogas antineoplásicas, sendo atividade privativa do farmacêutico - um marco para profissão.
Em setembro de 2004, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publicou a RDC 220/04, que aprova o Regulamento Técnico de funcionamento dos Serviços de Terapia Antineoplásica. “Nesse momento temos o estabelecimento das atividades dos serviços com a Criação da EMTA, em que o farmacêutico é o profissional indispensável para compor a equipe, bem como descrição de todos os processos farmacêuticos nos serviços de oncologia que envolvem as atividades de seleção, aquisição, dispensação e manipulação do medicamento”, detalha Ariely.
Com os avanços da profissão farmacêutica e a necessidade de estabelecer rotinas e procedimentos que pudessem assegurar condições adequadas para todo o processo de atividades do farmacêutico oncológico, em dezembro de 2012, por meio da Resolução 565, o CFF redigiu novamente os artigos 1º, 2º e 3º da Resolução 288/96. Em agosto de 2013, o CFF emitiu a Resolução 585/13, regulamentando as Atribuições Clínicas do Farmacêutico.
“Naquele momento do contexto histórico, percebemos a evolução do profissional e a expansão de suas atividades, principalmente a atividade clínica. O farmacêutico começou a sair de trás da Capela de Fluxo Laminar e controle de estoque de alto custo e ir de encontro às necessidades do paciente”, descreve Ariely.
Segundo ela, a expansão das atividades clínicas do farmacêutico foi uma resposta à sociedade. O paciente começou a procurar esse profissional, que passou a compor a equipe multidisciplinar e foi sendo inserido nas atividades clínicas do paciente oncológico, por meio da farmácia clínica - onde tem enfoque no seguimento farmacoterapêutico de pacientes internados, e na atenção farmacêutica em oncologia, que se destina ao seguimento farmacoterapêutico de pacientes em atendimento ambulatorial.
Em 2017, por meio da Resolução 640, do CFF, foi definido que para o exercício de atividades de preparo dos antineoplásicos e demais medicamentos na oncologia, a entrar em vigor de fiscalização a partir de maio de 2020, o farmacêutico deverá atender, pelo menos, a um dos seguintes critérios, validados pelo Conselho Regional de Farmácia (CRF) de sua jurisdição:
- ser portador de título de especialista emitido pela Sociedade Brasileira de Farmacêuticos em Oncologia (Sobrafo);
- ter feito residência na área de oncologia; ser egresso de programa de pós-graduação lato sensu reconhecido pelo Ministério da Educação (MEC) relacionado à farmácia oncológica; e
- ter atuado por três anos ou mais na área de oncologia, o que deve ser comprovado por meio de Carteira de trabalho e Previdência Social (CTPS) ou de contrato e declaração do serviço, com a devida descrição das atividades realizadas e do período de atuação.
Para Ariely, a titulação mínima trouxe segurança para os farmacêuticos que pretendem atuar na farmácia oncológica. Ela ressalta o curso de pós-graduação em Farmácia Hospitalar e Acompanhamento Oncológico do ICTQ, que possui uma estrutura curricular totalmente voltada para as necessidades de atuação desse profissional na farmácia oncológica, contando com uma equipe de docentes altamente qualificada. Segundo ela, isso proporciona aos profissionais farmacêuticos maior segurança para desenvolverem suas atividades.
Competências à manipulação
“Ao que compete ao farmacêutico, voltada à linha de produção - manipulação dos quimioterápicos antineoplásicos - antes do processo de manipulação, ele deverá, obrigatoriamente, validar a prescrição médica. É necessário avaliar os componentes da prescrição médica, quanto à dose, compatibilidade, estabilidade e interações com outros medicamentos ou alimentos, bem como a viabilidade do tratamento”, relata o farmacêutico, especialista em Farmacologia Clínica e Prescrição Farmacêutica e em Farmácia Clínica e Hospitalar em Oncologia, diretor técnico do Instituto de Oncologia San Giovanni e também da Associação dos Voluntários a Serviço da Oncologia em Sergipe (AVOSOS), Cláuber Emídio.
Após a validação da prescrição e confirmação de doses e concordância de indicação terapêutica, o farmacêutico deverá proceder o preparo dos medicamentos de acordo com a prescrição médica validada, atendendo aos aspectos galênicos de cada produto, em concordância com o que é preconizado na literatura científica e pelo fabricante do produto.
Conforme Emídio, a manipulação dos antineoplásicos deverá ocorrer em condições assépticas, obedecendo aos critérios de biossegurança dispostos na legislação sanitária em vigor. Após manipulação, deve assegurar-se o adequado preenchimento do rótulo de cada dose manipulada, verificando a exatidão das informações contidas na prescrição médica, a saber: nome completo do paciente, número do leito e registro hospitalar, identificação do médico prescritor e do farmacêutico responsável pela manipulação, volume total e dose de cada componente adicionado, data e hora da manipulação, bem como as recomendações de uso e relativas à validade, condições de armazenamento, transporte e administração.
No momento que a bolsa da quimioterapia antineoplásica encontra-se pronta, o farmacêutico, no setor de controle de qualidade, deverá realizar análises que garantam ausência de partículas e confirmação da dose manipulada, oferecendo segurança ao tratamento.
Ainda sobre as atividades que o farmacêutico pode desenvolver na central de manipulação de quimioterápicos, Ariely destaca também a elaboração e acompanhamento do plano de gerenciamento de resíduos; o desenvolvimento e participação de pesquisas clínicas; a atuação junto à equipe a multidisciplinar em oncologia, e a atenção farmacêutica ao paciente oncológico e farmácia clínica.
“Aqui quero ressaltar a importância da atividade clínica. O farmacêutico, além de preparar o medicamento dentro dos padrões estabelecidos de segurança e qualidade, acompanha o resultado do tratamento do paciente”, conta a professora.
Formas farmacêuticas
Emídio fala que a forma farmacêutica mais utilizada na terapia antineoplásica é a líquida, sob a forma de soluções, em que o farmacêutico, por meio de técnicas assépticas e em ambiente controlado, é o responsável pelo processo de reconstituição - quando disponíveis na forma de pós liofilizados, e diluição em soluções compatíveis.
A forma farmacêutica sólida para administração oral (cápsulas e comprimidos) também é bastante utilizada no âmbito do tratamento oncológico. Alguns citotóxicos disponíveis para administração endovenosa também são encontrados para administração oral.
“O bloqueio hormonal, utilizado no tratamento de pacientes com câncer de mama RH+ e em pacientes com câncer de próstata, está disponível na forma de comprimidos, além das pequenas moléculas inibidoras de tirosa-quinase, bastante utilizadas para tratamento de neoplasias específicas, também estão disponíveis na forma oral”, elucida Emídio.
Porém, é importante ressaltar, que a comodidade terapêutica da utilização de antineoplásicos orais, em alguns casos, pode vir acompanhado da não adesão correta ao tratamento. Dessa forma, segundo Emídio, é imprescindível a presença e acompanhamento do farmacêutico para cumprimento posológico e obtenção do resultado esperado da terapia prescrita.
Estrutura
A estrutura mínima para uma central de manipulação de antineoplásicos é descrita na RDC/Anvisa 50/02, na RDC 220/04 e na RDC 67/07, e deve possuir:
- área ou sala para as atividades administrativas;
- área ou local para lavagem de utensílios e materiais de embalagem;
- área de quarentena e rotulagem (conferências, dupla checagem do produto manipulado e inspeção do produto);
- área de dispensação;
- área de armazenamento exclusiva para estocagem de medicamentos específicos da TA;
- área destinada à paramentação (antecâmara), provida de lavatório para higienização das mãos;
- vestuários;
- área de armazenamento temporário de resíduos;
- sala exclusiva para preparação de medicamentos para TA, com área mínima de cinco m² por cabine de segurança biológica; e
- cabine de Segurança Biológica (CSB) Classe II B2, que deve ser instalada seguindo as orientações contidas na RDC/Anvisa 50/02.
Técnicas e cuidados de preparo
Segundo Ariely, os farmacêuticos têm papel importante no preparo das soluções antineoplásicas, visando preservar as características físico-químicas e microbiológicas do produto manipulado. É fundamental ter o cuidado para não agregar a ele nenhuma carga microbiana e assim comprometer a saúde e segurança do paciente.
A esterilidade do produto deverá ser garantida pelo farmacêutico, para isso é necessário que a farmácia estabeleça um Sistema de Garantia de Qualidade que incorpore as Boas Práticas de Manipulação de Medicamentos Estéreis.
De acordo com a Food and Drug Administration (FDA), a validação visa estabelecer evidências documentadas que prove um alto grau de garantia a um processo específico, garantindo consistentemente que o produto esteja de acordo com as normas de qualidade.
“Trazendo isso para nossa prática, a validação permite que o processo seja controlado e a dose correta do princípio ativo administrada ao paciente esteja dentro do padrão de esterilidade garantido por meio de uma técnica asséptica”, fala a professora.
“Todo o processo que envolve o preparo dos antineoplásicos deve ocorrer em Cabine de Segurança Biológica (CBS) Classe II B2. A NR 32/05 define a CSB classe II tipo B2 como sendo cabine dotada de filtro absoluto (HEPA) com eficiência da filtragem e exaustão do ar de 99,99% a 100%. Todo o ar que entra na cabine e o que e exaurido para o exterior passam previamente pelo filtro HEPA”, complementa Emídio.
Não há recirculação de fluxo de ar, sendo a exaustão total. Segundo ele, a cabine tem pressão negativa em relação ao local onde está instalada, pela diferença entre o insuflamento do ar no interior da cabine e sua exaustão. Dessa forma, ela oferece proteção ao manipulador, ao produto manipulado e ao ambiente, tornando-se o modelo recomendado para trabalhos que envolvam agentes biológicos de risco moderado e para manipular antineoplásicos.
Segurança e biossegurança
A base da quimioterapia convencional são os antineoplásicos citotóxicos injetáveis. A própria natureza dos agentes antineoplásicos os torna prejudiciais às células e tecidos saudáveis, bem como às células cancerígenas.
Contudo, para os profissionais de saúde expostos a agentes antineoplásicos, como parte de sua prática profissional, devem ser tomadas precauções para eliminar ou reduzir a exposição o máximo possível. Os profissionais podem estar expostos a riscos ocupacionais inerentes aos fármacos antineoplásicos, desde a fabricação até o descarte final. Os riscos podem ser maiores ou menores de acordo com o treinamento que esse trabalhador recebe.
A professora lembra que vários estudos documentaram a exposição ambiental e dos trabalhadores aos agentes antineoplásicos. Em 2004, o Instituto Nacional de Segurança e Saúde Ocupacional (NIOSH) publicou um alerta intitulado Prevenção de exposições ocupacionais a antineoplásicos e outros medicamentos perigosos em estabelecimentos de saúde.
A Sobrafo publicou, em 2014, o I Consenso Brasileiro para Boas Práticas de Preparo da Terapia Antineoplásica, contendo informações sobre medidas de proteção. No Brasil, há a NR 9, NR 15 e NR 32 que estabelecem os controles e critérios para profissionais que manuseiam esses medicamentos.
“Por conta das características desses medicamentos, os farmacêuticos devem adotar medidas de segurança, como uso de avental ou macacão estéril - de material impermeável, com mangas longas, gola ajustável e punhos elásticos ajustáveis, de baixa emissão de partículas, sem abertura frontal; dois pares de luvas estéreis - de látex, isentas de talco; proteção respiratória - máscara descartável com referência PFF2 / N 95; propé descartável ou bota impermeável com solado antiderrapante; e gorro descartável ou capuz impermeável. Todos os setores devem conter kit de derramamento para realizar limpeza e desinfecção das áreas em caso de acidentes, com objetivo de diminuir a contaminação ambiental provocada pelos antineoplásicos”, detalha Ariely.
Emídio reitera que, no decorrer do processo de manipulação, uma sucessão de procedimentos é realizada pelo profissional farmacêutico, o que pode levar à produção de aerossóis e, como resultado, exposição ocupacional, como durante a remoção de agulhas de frascos-ampolas e abertura de ampolas e eliminação de ar da seringa para aferição do volume correto do medicamento aspirado.
Dessa forma, além da utilização de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) e de Equipamentos de Proteção Coletiva (EPCs) adequados, é recomendada a utilização de dispositivos que diminuam a formação de aerossóis , consequentemente, a exposição ocupacional durante a manipulação e administração dos medicamentos, sendo, de acordo com a NR 32, de cunho obrigatório o fornecimento de tais dispositivos pelo empregador.
Incompatibilidades farmacêuticas
Um dos pontos mais críticos no trabalho com manipulação de quimioterápicos é a chamada incompatibilidade medicamentosa, que compreende os efeitos recíprocos entre dois componentes de uma preparação farmacêutica, com propriedades distintas entre si, que frustram ou colocam em xeque a finalidade para a qual foi concebido o medicamento. As incompatibilidades podem prejudicar a atividade, bem como impedir a dosagem exata do medicamento e influenciar no aspecto da formulação.
“Cabe ao farmacêutico avaliar os componentes presentes na prescrição médica, quanto à quantidade, qualidade, compatibilidade, estabilidade e suas interações e verificar quais medidas deverão ser tomadas”, informa Ariely.
Quando identificadas as incompatibilidades, ela explica que devem ser avaliadas e corrigidas, em algumas situações o próprio farmacêutico poderá realizar essa correção, como, por exemplo, a troca de solução fisiológica por glicosada para atender às características dos medicamentos - compatibilidade físico-química. No entanto, há situações em que será necessário o contato com o prescritor para uma análise da viabilidade de mudança de acordo com as características dos medicamentos e do próprio paciente.
Segundo Emídio, as incompatibilidades farmacêuticas podem gerar uma redução da atividade ou inativação dos fármacos, formação de um novo composto ativo inócuo ou tóxico, um aumento da toxicidade de um ou mais fármacos envolvidos, além da possibilidade de mudanças organolépticas e formação de precipitação.
Assim, é de suma importância a avaliação farmacêutica de compatibilidade entre fármacos a ser administrados na mesma bolsa de infusão ou para ser administrado em Y, e a compatibilidade das soluções de diluição com o fármaco a ser dispensado.
“Um exemplo prático na oncologia é a incompatibilidade do agente alquilante oxaliplatina em solução fisiológica. O mesmo apresenta estabilidade físico-química apenas em solução glicosada, uma vez que, na presença de cloreto de sódio, existe risco de conversão à cisplatina. Artigos de incompatibilidade e bases de dados, a exemplo do Micromedex, Up To Date e Medscape, devem ser consultadas pelo profissional farmacêutico para a tomada de decisão frente a incompatibilidades farmacêuticas”, conclui o farmacêutico.