Atuação do farmacêutico é fundamental na revisão farmacoterapêutica do idoso

O País está cada vez mais velho. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a expectativa de vida cresceu três meses e 11 dias, de 2016 para 2017. Separada por gênero, o índice para as mulheres é de 79,4 anos. Já para os homens é de 72,5 anos. Claro que essa previsão é superada em algumas localidades, tornando-se fácil encontrar idosos com mais de 80 ou 90 anos (às vezes até com 100 anos, embora bem menos comum).

Esse acontecimento se deve muito à evolução dos cuidados com a saúde, que vêm auxiliando a humanidade a driblar possíveis falhas com a ajuda dos medicamentos e de outros tratamentos. Claro que esse fato deve ser comemorado, porém, apesar dos avanços, os idosos vão acumulando diversas morbidades e patologias que exigem uma gama muito grande de cuidados e acompanhamentos. Não é difícil encontrar pessoas que tomam mais de cinco medicamentos diariamente.

O idoso apresenta metabolismo mais lento e diversas doenças de base. Ao utilizar diversos medicamentos, ele acaba encontrando dificuldades relacionadas à polifarmácia, como medicamentos que interagem entre si ou até mesmo que não possuem indicação adequada para aquele paciente, já que foram receitados por diversos profissionais diferentes. Assim, o farmacêutico clínico é um profissional indispensável na equipe que lida com a terceira idade, já que é capaz de fazer o acompanhamento farmacoterapêutico em seu consultório, ou mesmo na farmácia.

O paciente geriátrico tem, geralmente, dificuldade em ingerir cápsulas ou comprimidos. As alterações gastrointestinais associadas à velhice são elevação do pH gástrico, atraso do esvaziamento gástrico e redução da motilidade gastrointestinal e do fluxo sanguíneo intestinal. “Essas situações combinadas podem provocar maior tempo de contato com drogas potencialmente ulcerogênicas, tais como os anti-inflamatórios não esteroidais, aumento da frequência de interação de drogas e alimentos e exposição do fármaco e enzimas à acidez”, alerta o farmacêutico, professor do ICTQ – Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico, dr. Alexandre Massao Sugawara. Há também a redução de absorção de drogas aplicadas por via intramuscular em pacientes idosos acamados, talvez por alterações do fluxo sanguíneo regional e redução da massa muscular.

A idade avançada pode alterar a distribuição de um fármaco até ele chegar ao órgão-alvo. Embora a proteína total do corpo não seja afetada pelo envelhecimento, a albumina plasmática é frequentemente reduzida em pacientes idosos debilitados, já que ela atua como transportador de droga, ligando-se à droga até que seja usada. Se a albumina é reduzida, haverá um aumento da droga não ligada, ativa, que constitui a fração livre.

Sugawara fala ainda que, nos idoso, as drogas lipossolúveis, que incluem aquelas que atuam no sistema nervoso central, podem apresentar retardamento de início de ação e, subsequentemente, acumular-se no tecido adiposo, prolongando sua duração de ação e, às vezes, provocando efeitos adversos.

“Com a idade, a redução do clearance total do corpo provoca concentração plasmática média da droga mais elevada e aumento da resposta farmacológica, o que pode levar à toxicidade da droga”, diz ele. Essas respostas alteradas podem ser causadas, por exemplo, pela redução do número e sensibilidade dos receptores, depleção dos neurotransmissores, presença de doenças e mudanças fisiológicas. Todas essas alterações são capazes de afetar nos idosos a resposta à medicação.

Composição corporal

Para a farmacêutica, professora do ICTQ, dra. Ana Alice Dias, as alterações como redução da massa magra, o aumento da gordura e a diminuição da água corporal são fatores importantes, mas não exclusivos dos problemas relacionados aos idosos. “A redução de proteínas tem impacto direto na massa magra. A administração de medicamentos por via intramuscular requer cautela, além de técnica, a absorção pode ser modificada também devido ao menor fluxo sanguíneo, e o efeito terapêutico pode não ocorrer na velocidade e proporção esperadas”, ressalta.

A redução de proteínas pode ainda ter impacto na concentração de proteínas plasmáticas às quais os fármacos se ligam e atuam como reservatório. A redução da ligação à proteína plasmática aumenta a fração livre e, em caso de fármacos com janela terapêutica estreita, pode causar efeitos nocivos.

Ela afirma que o volume de distribuição, definido como medida do espaço aparente do corpo capaz de conter o fármaco, também é afetado por esta redução de massa magra. Os músculos estão inclusos como compartimento extravascular e sua diminuição modifica a distribuição de fármacos pelo organismo.  A mudança no teor hídrico e lipídico também será um fator importante, e as características do fármaco (hidrossolubilidade ou lipossolubilidade) devem ser consideradas. 

Aumento na incidência e intensidade de efeitos colaterais

Sabe-se que esses fatores influenciam de forma significativa o volume de distribuição (VD) dos fármacos no organismo humano. Fármacos lipofílicos, como fenobarbital, fenitoína e diazepam, terão maior VD, o que acarreta em maiores possibilidades de acúmulo no organismo, resultando em aumento do tempo de meia-vida.

De acordo com Ana Alice, o tempo de meia-vida é reflexo do volume de distribuição e da excreção (clearance). Ampliar o volume de distribuição aumenta a exposição do organismo ao fármaco e causa aumento no tempo de meia-vida. O resultado será o aumento na incidência e intensidade de efeitos colaterais. Um exemplo desse problema é o uso de benzodiazepínicos em idosos, que está diretamente associado com risco de queda, devido à sonolência, e também causa prejuízos cognitivos.

Como consequência, pode ocorrer um prolongamento do efeito. Os fármacos hidrofílicos, como compostos de lítio, meperidina e amicacina, tendem a um menor VD nos pacientes idosos, o que indica uma maior concentração plasmática.

“Como o teor lipídico aumenta, há menor distribuição pelos tecidos e líquidos intracelulares, e a concentração plasmática tende a aumentar. Como o efeito farmacológico é proporcional à concentração plasmática, a resposta será mais intensa”, comenta a farmacêutica.

Com relação ao lítio, sinais de intoxicação podem ocorrer com níveis plasmáticos considerados normais. Neste caso, a dose pode ser reduzida ou o intervalo entre doses aumentado. “Além do menor volume de distribuição, outro problema a ser considerado é a presença de metabólitos ativos que contribui para aumentar a intensidade de efeitos colaterais”, lembra Ana Alice. 

Esta condição eleva o risco de toxicidade e maior possibilidade de reações adversas. Pode-se dizer, portanto, que a intervenção farmacêutica na terapia medicamentosa de pacientes idosos pode ser de grande contribuição no manejo de reações adversas e na otimização dos resultados farmacoterapêuticos.

O conhecimento das alterações farmacocinéticas e farmacodinâmicas pode levar ao ajuste de dose ou substituição de um fármaco por outro mais seguro e adequado ao idoso. Há consensos (Critério de Beers, STOP-START) que discutem sobre quais são os medicamentos potencialmente perigosos ou inadequados para idosos. Para Ana Alice, coletivamente, estes conhecimentos deveriam ser mais difundidos e auxiliariam muito na redução de reações adversas e otimização da farmacoterapia.

Acompanhamento na farmácia

Sugawara afirma que o farmacêutico que atua em farmácias e consultórios precisa estar atento às atualizações nessa área. Ainda existem muitos desafios para a implantação da atenção farmacêutica nesses estabelecimentos. “Idealmente, deveriam ser implantados os consultórios farmacêuticos para garantir o atendimento à população. O atendimento de um paciente requer o estabelecimento de um vínculo terapêutico, com o qual se garanta sigilo das informações prestadas e um diálogo de forma a evitar barreiras psíquicas, linguísticas e ambientais”.

Para ele, o atendimento baseado num ambiente clínico, que passe confiabilidade ao paciente e que não crie barreiras psíquicas e linguísticas, é fundamental para criar reforço terapêutico e permitir que o paciente revele suas queixas de saúde, especialmente pacientes idosos que podem se encontrar em situação de vulnerabilidade.

Segundo Ana Alice, é fundamental ter em mente que a farmácia é o último ponto entre o sistema de saúde e a casa do paciente, e o primeiro local que ele procura quando há problemas. A aproximação do farmacêutico com idosos ou seus cuidadores é crucial para reduzir riscos relacionados a medicamentos. “O farmacêutico deve ser o profissional acessível e disponível para ouvir, esclarecer dúvidas, levantar questionamentos, realizar acompanhamento farmacoterapêutico, quando necessário, e, principalmente, ser resolutivo. Essas ações são essenciais para reduzir reações adversas e otimizar a farmacoterapia em uso”, afirma ela.

Exemplo de sucesso

O farmacêutico clínico, dr. Diego Medeiros Guedes, atende pessoas idosas em seu consultório farmacêutico. Ele conta que foi procurado por uma paciente de 67 anos com queixa de que os medicamentos utilizados não estariam fazendo efeito: “Ela foi ao consultório, acompanhada do seu filho, e disse que não estava conseguindo controlar sua pressão (Hipertensão Arterial Sistêmica). Ela relatou fobia à aferição da pressão arterial”.

No momento da consulta, Guedes deu início à anamnese, perguntando qual outro motivo a trazia ao consultório. A paciente relatou que o diabetes (Diabetes Mellitus Tipo 2), não estava controlado também. Em seguida comentou que sentia muitas dores na coluna que, segundo ela, era uma ‘dor no ciático’.

“A idosa já havia buscado tratamento médico, inclusive tomando diversos analgésicos. Quando pedi para ela classificar esta dor, de 0 a 10, a paciente classificou em 8 as dores sentidas. Informou que, em 2016, teve chikungunya e que, desde então, sentia muitas dores pelo corpo. Por fim relatou que em 2012 fez cirurgia de catarata em ambos os olhos”, lembrou Guedes.

Assim, o farmacêutico pediu para ela mostrar a sacola com os medicamentos que fazia uso, destacando que, no momento da marcação da consulta, pediu para que ela levasse todos os medicamentos, bem como os documentos médicos, incluindo exames. Os medicamentos para a hipertensão eram hidroclorotiazida 25mg e losartana 50mg.

Os medicamentos para o diabetes foram gliclazida (diamicron) MR 60mg e metformina 850mg. Contudo, o que chamou a atenção de Guedes foi o fato de a paciente estar em uso de levotiroxina 50mcg, uma vez que não relatou nenhuma condição clínica associada.

Quando perguntado, a paciente informou que fora anteriormente diagnosticada com hipotireoidismo. O farmacêutico entendeu que, como não houve relato espontâneo, essa não era uma preocupação maior da paciente, e que a condição clínica estava controlada.

“Verifiquei, também, que ela vinha fazendo uso frequente de clonazepam 0,5mg à noite, quando apresentava insônia. Ela comentou que, cada vez mais, vinha apresentando episódios de insônia, fazendo com que o seu uso estivesse cada vez mais frequente”, diz Guedes.

O problema é que a idosa contou ao farmacêutico que havia suspendido o captopril 25m por conta própria, alguns meses antes, e que fora prescrito linagliptida 5mg (trayenta), mas que ela não usou por causa do seu elevado valor.

Os exames laboratoriais trazidos (recentes, na época) apresentaram os seguintes valores:

  • Glicemia jejum = 180mg/dL;
  • Uréia = 27mg/dL (VR 15-45mg/dL);
  • Creatinina = 0,5mg/dL (VR 0,4-1,3mg/dL);
  • Ácido Úrico= 4,4mg/dL (VR 2,4-5,7mg/dL);
  • Colesterol Total = 228mg/dL (VR até 200mg/dL);
  • HDL = 55mg/dL (VR bom > 60mg/dL);
  • LDL = 132mg/dL (VR 130-159mg/dL Limítrofe);
  • Triglicerídeos = 203mg/dL (VR menor que 200mg/dL);
  • Potássio = 4,6mmol/L (VR 3,5-5,1mmol/L)

“Ao verificar os valores de colesterol total e triglicerídeos acima do limite, perguntei se algum médico já havia avaliado aqueles exames. Para minha surpresa, a paciente informou que sim, e que um médico havia prescrito sinvastatina 20mg, mas que ela não estava utilizando”, fala ele.

O farmacêutico efetuou a tomada de medidas da paciente, cuja estatura apresentou 1,51m e massa corporal 70,5kg. Ao perguntar sobre os hábitos alimentares, a paciente informou que não realizava nenhum tipo de dieta e que consumia carboidratos com frequência em sua alimentação.

Adesão não satisfatória

Quanto à hipertensão arterial, o farmacêutico verificou que a pauta terapêutica era racional e condizente com as diretrizes nacionais. Contudo, a adesão não era satisfatória e ainda havia componentes externos que podiam estar influenciando. Os medicamentos (hidroclorotiazida e losartana) eram necessários e seguros, mas não se podia afirmar que eles não estavam sendo efetivos, pois o controle da HAS não dependia tão somente do uso de medicamentos.

“Em relação aos hipoglicemiantes orais, a terapia medicamentosa não vinha surtindo efeito. Embora a paciente não relatasse adesão a medidas não farmacológicas, os valores estavam bem elevados, mesmo com o uso do esquema terapêutico”, lamenta o farmacêutico.

Quanto ao clonazepam, não havia indicação clara que justificasse seu uso. Além disso, os riscos associados à utilização desse medicamento por mais de seis meses eram enormes, pois tendiam a causar dependência da paciente.

Por fim, o farmacêutico encontrou um Problema Relacionado ao Medicamento (PRM) de necessidade frente ao uso da sinvastatina. A paciente fora identificada com necessidade de uso de estatina, a terapia foi prescrita, mas ela não estava em uso.

Por conta disso, Guedes que fez as seguintes intervenções:

  1. Destacou para a idosa a importância da adesão aos tratamentos medicamentosos prescritos, bem como às medidas não farmacológicas, como dieta e exercícios. Tão somente o uso de medicamentos não iria controlar suas doenças.
  2. Emitiu comunicado por escrito ao médico (com quem ela iria ter consulta), solicitando ponderar os seguintes pontos:
  3. Avaliar a terapia anti-hipertensiva, uma vez que a paciente relata descontrole frequente;
  4. Avaliar terapia hipoglicêmica, já que não está surtindo o efeito desejado;
  5. Avaliar a necessidade de uso do clonazepam, uma vez que não há condição clínica que justifique o uso frente aos riscos inerentes;
  6. Avaliar a necessidade de uso do hipolipemiante oral prescrito anteriormente, e não utilizado até aquele momento.

“O uso racional de medicamentos pode melhorar a qualidade de vida da paciente evitando, assim, o uso da polifarmácia, o que pode gerar problemas secundários à paciente. Notamos que uma intervenção farmacêutica pode alcançar resultados definidos que contribuem para o bem-estar da paciente e, em conjunto com o médico, foi criada uma nova perspectiva a partir do bom atendimento do farmacêutico”, ressalta o farmacêutico clínico, dr. Ronaldo Ribeiro.

Feedback satisfatório

Após a paciente levar o comunicado do farmacêutico por escrito ao prescritor, o farmacêutico recebeu seu feedback, informando:

  1. A terapia anti-hipertensiva foi modificada, sendo inserido o medicamento besilato de anlodipino 2,5mg.
  2. Foi inserido o hipoglicemiante oral sitagliptina (januvia) 50mg para auxiliar a reduzir os índices glicêmicos.
  3. Foi iniciado o desmame do benzodiazepínico clonazepam.
  4. O prescritor não verificou necessidade de uso de estatina naquele momento, mas solicitou acompanhamento do perfil lipídico da paciente para avaliação posterior.

“Está claro que a consulta contribuiu, e muito, para o uso racional de medicamentos, ao solicitar ao médico a retirada de medicamentos sem indicação clínica”, conclui o farmacêutico clínico e professor do ICTQ, dr Clezio Rodrigues de Abreu.

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