Vírus que atacam bactérias podem ser a saída para o problema crescente da resistência antibacteriana. Conhecidos como bacteriófagos, esses micro-organismos penetram nas bactérias, se replicam e as eliminam. Por não atacarem células humanas, esses vírus vêm sendo estudados como alternativa para o controle das superbactérias.
Os bacteriófagos estão presentes em praticamente tudo o que nos rodeia, inclusive em nosso corpo. Há bilhões deles circulando no organismo. Felizmente, esses vírus não tem pessoas como alvo – eles não são capazes de causar infecção em nossas células, uma vez que não reconhecem os receptores presentes nas membranas celulares humanas.
Como o próprio nome diz, seus inimigos são as bactérias. Eles podem infectar todos os gêneros bacterianos, incluindo cianobactérias, arqueobactérias e micoplasmas.O que faz deles um aliado muito útil ao homem. Uma espécie de guarda-costas, ou vírus bom, que nos protege de muitas ameaças bacterianas, como afirma em entrevista ao jornal Diário de Notícias o pesquisador do Centro de Engenharia Biológica (CEB) da Universidade do Minho, em Portugal, Luís Melo.
“No conceito histórico de evolução, os bacteriófagos são os inimigos naturais das bactérias. São os entes mais presentes no nosso mundo. O que o planeta mais tem são bacteriófagos, sempre associados às bactérias”, diz Melo. Tal como todos os outros vírus, esses também precisam do seu hospedeiro. “Eles precisam sempre de uma bactéria, reproduzem-se dentro dela, depois a matam e vão libertar novos vírus que se vão reproduzir em outras bactérias”, explica o cientista. Dessa forma, eles ajudam a manter o número de bactérias sob controle.
“Os bacteriófagos reconhecem e se ligam a receptores presentes nas membranas bacterianas para introduzirem nelas seu material genético. Esses vírus utilizam a maquinaria de biossíntese das bactérias para se replicarem”, detalha em entrevista à Agência Fapesp a pesquisadora da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da USP (EERP-USP) Viviane de Cássia Oliveira.
“Depois disso, as membranas e paredes celulares bacterianas se rompem, liberando os vírus para o meio extracelular. Esse processo pode acontecer tanto em bactérias suscetíveis quanto resistentes a antibióticos. Por isso, os bacteriófagos são uma alternativa promissora para o controle desses micro-organismos”, acredita a cientista.
Superbactérias, o problema do século
Está cada vez mais comum encontrar cepas ou espécies bacterianas que são resistentes ao uso de antibacterianos. Algumas delas, batizadas de superbactérias, são resistentes a todos os antibióticos disponíveis. Em 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) indicou a resistência de bactérias a antibióticos como um dos problemas de saúde pública mais urgentes do século XXI.
“A agência estima que, se nada for feito, doenças causadas por bactérias multirresistentes, para as quais nenhum antibiótico conhecido serve, podem causar a morte de mais de 10 milhões de pessoas até 2050”, afirma em artigo para O Globo a microbiologista Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência e pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas da USP.
Segundo o professor da pós-graduação de Farmácia Clínica de Endocrinologia e Metabologia no ICTQ – Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico, Edson Luiz de Oliveira, em 30 anos, ocorrerá um marco para a história futura da humanidade, pois se atingirá o pico da ocorrência de mortes causadas por bactérias resistentes a antibacterianos.
“Existe uma previsão para 2050 sobre as mortes provocadas por infecções causadas por bactérias resistentes a antibacterianos. Nessa data, na Ásia, seriam 4,7 milhões de óbitos, na África, 4,1 milhões, na América Latina, 392 mil, na Europa, 390 mil, na América do Norte, 317 mil, e na Oceania, 22 mil”, revela Oliveira. Atualmente, estima-se que aproximadamente 700 mil pessoas morram todos os anos de infecções não tratáveis, causadas por superbactérias. “Destas, 230 mil só de tuberculose”, frisa Natalia. “A OMS estima que em 2050 morra mais gente por ano devido a infecções resistentes a antibióticos do que, por exemplo, câncer”, pontua Melo.
“A resistência a antimicrobianos faz parte de um processo evolutivo natural. Os maiores produtores de antibióticos são as próprias bactérias. Uma bactéria capaz de jogar um antibiótico no meio mata as outras que estão ali competindo por espaço e nutriente”, explica Natalia.
Segundo ela, genes que trazem imunidade a antibióticos se transferem com facilidade de uma bactéria para outra, mesmo em espécies diferentes. “Os genes de resistência podem ser passados de ‘mãe para filha’, quando as bactérias se dividem, mas também, de forma muito mais efetiva – e preocupante – por transferência horizontal: bactéria ‘adulta’ para outra que esteja no mesmo ambiente”.
A microbiologista destaca que se houver um antibiótico no meio de cultura ou no organismo do animal infectado, e em havendo bactérias naturalmente resistentes ali, logo se forma toda uma população composta apenas por resistentes, já que a população suscetível terá sido eliminada.
“Essas bactérias resistentes podem passar para frente os genes, inclusive para outras espécies do local, que podem até ser bactérias nativas, não patogênicas. Isso quer dizer que uma bactéria do nosso intestino pode carregar vários genes de resistência que ganhou ao longo da interação com outras bactérias e passá-los para espécies patogênicas que cheguem ali. Se isso acontecer, podemos acabar com uma bactéria multirresistente”, observa Natalia.
Uso equivocado de antibióticos favorece resistência bacteriana
A microbiologista da USP vai direto ao ponto: o uso exagerado e indiscriminado de antibióticos em humanos, a utilização de antibióticos como promotores de crescimento em criação de animais, e a falta de cuidado no descarte desses produtos são os principais responsáveis pela resistência antibacteriana e a consequente proliferação das superbactérias.
“No Brasil e em vários países, o uso de antibióticos é controlado, e em alguns locais, o uso em pecuária é proibido. Imagine, portanto, o resultado do uso indiscriminado de azitromicina contra a Covid-19, um antibiótico que não serve para o tratamento de SARS-Cov2 (novo coronavírus) ou de qualquer vírus. Corremos o risco de, no futuro, encarar bactérias resistentes à azitromicina, que costumava ser uma das soluções viáveis para, por exemplo, gonorreia multirresistente”, ressalta Natalia.
De acordo com o professor do ICTQ, o uso equivocado de antibacterianos envolve ainda a escolha incorreta do fármaco (aplicá-lo em uma infecção viral, por exemplo), dosagem inadequada, tempo de utilização incorreto, utilização de terapêutica de prova em pacientes febris sem diagnóstico definido e via de administração inadequada. “Ou seja, erro de horário, de dose, de medicamento não autorizado, da via de administração, da condição do paciente. Tem que conhecer detalhes para que o antimicrobiano seja usado corretamente”, frisa Oliveira.
Para que o problema não se agrave, a OMS prega o uso racional de antimicrobianos. “Aquele que maximiza os efeitos terapêuticos clínicos, enquanto minimiza tanto a toxicidade relacionada aos medicamentos quanto ao desenvolvimento da resistência antimicrobiana”, diz a entidade.
“O conhecimento dos diferentes mecanismos de resistência e sua interpretação clínica-laboratorial é essencial para a escolha terapêutica mais adequada”, explica o professor do ICTQ. Segundo ele, o sucesso da terapêutica antimicrobiana depende de três elementos: fármaco, hospedeiro e organismo.
É preciso avaliar o micro-organismo, a condição clínica, ou seja, a patologia, a sensibilidade, o fármaco envolvido e o paciente. “A eficácia do uso de um antimicrobiano vai depender do micro-organismo, da doença estabelecida, do paciente e do fármaco escolhido, que será utilizado de acordo com a sensibilidade. Deve-se conhecer, ainda, aspectos relativos à farmacocinética”, diz Oliveira.
A solução dos bacteriófagos
“Quando os antibióticos param de funcionar, uma solução possível é usar vírus”, enfatiza Natalia. Segundo ela, estamos acostumados a olhar para os vírus apenas como parasitas obrigatórios e que causam moléstias, mas não como solução para doenças. E os bacteriófagos podem ser essa alternativa.
“Pesquisando bacteriófagos, podemos desenvolver soluções para doenças bacterianas multirresistentes. Existem alguns estudos de sucesso do uso de bacteriófagos para infecções multirresistentes, inclusive tratamentos de emergência que salvaram vidas. Mas é um campo que ainda dá os primeiros passos”, acredita a microbiologista.
No Brasil, um grupo de pesquisadores da USP de Ribeirão Preto isolou cinco novos vírus que atacam exclusivamente bactérias e obteve sucesso ao utilizá-los na redução da contaminação bacteriana em tubos endotraqueais usados na intubação de pacientes. A técnica foi eficiente para combater bactérias resistentes a antibióticos presentes nesse equipamento, que permite o fornecimento de oxigênio a pacientes durante cirurgias ou em complicações respiratórias graves, como as causadas pela Covid-19, conforme revelou a Agência Fapesp. Nessas condições, contaminações microbianas podem levar a infecções persistentes e mesmo fatais.
Os pesquisadores da USP pretendem agora isolar as principais proteínas usadas pelos vírus para atacar as bactérias e avaliar sua eficácia no revestimento de superfícies de produtos para saúde, como os tubos endotraqueais. O estudo teve participação de pesquisadores da Universidade do Minho e da Universidade de Innsbruck, na Áustria.
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Em Portugal, o pesquisador Melo lembra que o universo dos bacteriófagos abre diversas vias de exploração, a principal delas, a terapia fágica, que além de poder ser alternativa importante quando os antibióticos não resolvem, pode ser utilizada também para complementar a terapia antibiótica.
No projeto da Universidade do Minho, denominado Ativar bactérias dormentes com proteínas derivadas de fago para aumentar a eficácia antibiótica (fago é como o bacteriófago também é conhecido), a equipe de Melo quer explorar as características de alguns bacteriófagos e usar algumas proteínas que eles codificam nos seus genomas para ativar células dormentes da bactéria Staphylococcus aureus. A ideia aqui não é eliminar diretamente a bactéria, mas ‘ressensibilizá-la', para a atuação de antibióticos.
“Durante o ciclo de crescimento de uma bactéria, ela atinge normalmente um estado estacionário. Deixa de se replicar e reduz sua atividade metabólica – sua a parede celular engrossa, ou seja, torna-se mais difícil de ser atacada. Isso faz com que muitos antibióticos não tenham capacidade de matar essas bactérias, porque muitos deles com o seu alvo na célula precisam que a bactéria esteja ativa”, explica o cientista, que encontrou um bacteriófago com capacidade de matar e quase erradicar uma população bacteriana que esteja no estado estacionário.
“Nesse caso, em vez de usarmos o bacteriófago, vamos ver que proteínas é que ele tem com a capacidade rara de fazer esta ativação das células”, esclarece Melo, lembrando que isso terá como benefício maior “a reintrodução na prática clínica de antibióticos já existentes que deixaram de ser utilizados por terem perdido eficácia”.
Esse recurso às proteínas dos bacteriófagos traz outras vantagens associadas. Entre os principais entraves à terapia fágica estão os obstáculos regulatórios e o pouco interesse da indústria farmacêutica em trabalhar com um ‘produto’ que, por existir naturalmente no planeta, não pode ser ‘patenteável’. “Se usarmos uma proteína podemos não ter tantos entraves do ponto de vista legal para uma possível terapia porque só estamos usando um coadjuvante para melhorar a eficácia do uso de antibióticos. E será muito mais fácil patentear uma proteína do que patentear bacteriófagos”, ponderou Melo.
Uma ‘antiga’ novidade
Vale lembrar que a utilização dos bacteriófagos para fins terapêuticos não é uma novidade para a ciência. Sua descoberta remonta há cerca de um século, quando a terapia fágica foi usada pela primeira vez, em 1919, por Felix d'Herelle, um microbiologista franco-canadense que recorreu a bacteriófagos para curar um menino que sofria de disenteria severa.
Na I Guerra Mundial houve países que utilizaram os bacteriófagos para tratar soldados feridos em combate. No entanto, a descoberta da penicilina, em 1928, desencadeou a era dos antibióticos, o que, aliado a algumas más utilizações dos bacteriófagos, levou a terapia fágica ser quase abandonada no Ocidente.
Com a redescoberta da utilidade dos bacteriófagos, os cientistas ponderam as vantagens e desvantagens do uso da terapia com esses vírus. A maior desvantagem, aponta o pesquisador português, é que eles têm um menor espectro de ação do que os antibióticos. Ou seja, enquanto os antibióticos são capazes de matar várias espécies bacterianas, os bacteriófagos têm um alvo específico.
“Um bacteriófago que mate uma bactéria não tem, em princípio, a capacidade de matar outra bactéria de outra espécie. E quando nós não conhecemos qual é o agente que está causando uma infecção numa pessoa, teoricamente não é recomendado o uso de bacteriófagos. Existe a necessidade de identificação prévia do organismo que está causando a infecção, para se poder administrar o bacteriófago adequado”, pontifica Melo. Por outro lado, ele continua, quando se consegue identificar o agente infeccioso, a terapia fágica é muito mais precisa e não afeta, por exemplo, estirpes benignas de bactérias.
Outro aspecto que os pesquisadores estão debruçados é superar a possibilidade de as bactérias se tornarem também resistentes aos bacteriófagos. Nesse caso, uma das saídas seria a manipulação genética desses vírus, “que além de aumentar o potencial terapêutico também abre as portas do interesse da indústria farmacêutica”, assinala Melo.
“A manipulação genética permite melhorar aquilo que existe naturalmente. Por exemplo, cerca de 40% a 60% das proteínas de alguns bacteriófagos têm funções indeterminadas. Ou seja, algumas delas podem ser más, não sabemos. Por isso, aumentamos a segurança se estivermos a aplicar um bacteriófago que tenha apenas os genes cuja função conhecemos e eliminarmos aqueles de que nada sabemos e que podem ter efeitos indesejados”, exemplifica o pesquisador.
Outro aspeto relevante, diz o cientista, é também o tipo de terapia fágica que se vai estabelecer. “Isto é muito importante”, realça, diferenciando entre a terapia personalizada, “em que determinado bacteriófago é escolhido para aquele paciente que tem aquela infecção específica”.
O uso terapêutico de bacteriófagos em alguns países da Europa é de longa tradição, a exemplo do centro Phage Therapy Unit, na Polônia, que desenvolve pesquisas e diferentes formas de uso da chamada fagoterapia, conforme apurou a Agência Fapesp. Outros estudos têm revelado aplicações biotecnológicas inovadoras para os bacteriófagos, como veículos de administração de fármacos, no tratamento de doenças como Alzheimer, Parkinson e câncer.
Segundo a International Society for Viruses of Microorganisms (ISVM), no mundo, cerca de 40 empresas estão disponibilizando bacteriófagos ou produtos enzimáticos produzidos a partir desses vírus para pesquisa e desenvolvimento de ensaios pré-clínicos de fagoterapia.
Na última década, foram realizados esforços para conduzir estudos mais detalhados a respeito da utilização in vivo de bacteriófagos no controle de infecções. Além do uso direto para controle ou prevenção de infecções, pesquisas em várias partes do mundo têm demonstrado que enzimas produzidas pelos bacteriófagos podem ser administradas diretamente em infecções como tratamento principal ou adjuvante.
Segundo a Agência Fapesp, a plataforma de registro de ensaios clínicos Clinical Trials registra 57 estudos que envolvem bacteriófagos no tratamento de diferentes infecções. “Os dados sinalizam uma tendência promissora de aumento do emprego de bacteriófagos e seus subprodutos no enfrentamento de diferentes infecções no futuro próximo”, afirmou o professor da Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto da USP Evandro Watanabe.
Na série Farmacologia em 1 Minuto, o farmacêutico e professor do ICTQ, Thiago de Melo, fala sobre o uso racional de medicamentos da classe dos antimicrobianos, como antibióticos, por exemplo; assista ao vídeo (baixo) e faça sua inscrição no canal para não perder nenhum conteúdo de educação em saúde.
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