É completamente falsa a informação que circula na internet de que estudo desenvolvido pela Universidade de São Paulo (USP) confirmaria a eficácia da hidroxicloroquina contra a Covid-19. Ao contrário do que diz o texto veiculado, o foco da pesquisa são os possíveis benefícios da colchicina para o tratamento da doença, segundo o Projeto Comprova.
O texto espalhado, cujo título é “Estudo da USP confirma eficácia da hidroxicloroquina. Nome do medicamento é suprimido nas manchetes”, inicialmente publicado no blog Quinina, distorce dados de pesquisa da USP para defender medicamentos sem comprovação científica no tratamento da Covid-19. A publicação foi compartilhada inclusive por um procurador da República, aumentando seu alcance, conforme revelou o Projeto Comprova, parceria com o Estadão.
Na verdade, o foco do estudo citado são os possíveis benefícios de outra substância – colchicina – para o tratamento da Covid-19. Por isso, uma parte dos voluntários recebeu a droga e a outra, não. Isso serve para comparar os resultados obtidos por ambos os grupos. Ou seja, esse era o objeto do estudo.
Segundo apurou o Comprova, a hidroxicloroquina junto com a azitromicina, medicamentos citados na notícia falsa, foram prescritas a todos os voluntários porque esse era o protocolo de tratamento padrão adotado no hospital onde e quando o estudo foi feito. Ao Comprova, os autores disseram que houve manipulação no texto para levar a crer que o estudo avaliou a eficácia da hidroxicloroquina, da azitromicina ou da heparina.
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O artigo veiculado pelo blog usa erroneamente dados de um estudo da USP disponibilizado em 12 de agosto na plataforma Medrxiv – que hospeda versões de artigos sobre ciências da saúde que ainda precisam ser submetidas à revisão dos pares (outros pesquisadores que podem validar o estudo).
O nome original da publicação é ‘Beneficial effects of colchicine for moderate to severe Covid-19: an interim analysis of a randomized, double-blinded, placebo controlled clinical trial’. Em tradução livre: ‘Efeitos benéficos da colchicina para Covid-19 moderada a grave: uma análise provisória de ensaio clínico randomizado, duplo-cego e controlado por placebo’.
Como foi feita a pesquisa
Foram convocados 38 pacientes, dos quais 35 permaneceram no estudo até o final. Parte dos voluntários tomou a colchicina além do tratamento padrão, enquanto a outra parte tomou o tratamento padrão e um placebo, substância sem efeito. Isso é importante para se avaliar qual foi o impacto da medicação analisada no tratamento.
Segundo o Comprova apurou, os integrantes de cada segmento foram escolhidos de forma aleatória, e inicialmente nem os pesquisadores nem os voluntários sabiam de qual grupo se tratava. Isso é utilizado na ciência para melhor identificar a relação entre as variáveis que influenciam o resultado de um estudo.
O texto espalhado a partir do blog engana já no título ao destacar que o “estudo da USP confirma eficácia da hidroxicloroquina” no tratamento da Covid-19. De acordo com o médico e professor titular da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, Paulo Louzada Junior, um dos autores do artigo, é errado dizer que foi avaliada a eficácia da hidroxicloroquina, da azitromicina ou da heparina. Isso porque todos os participantes receberam a droga, uma vez que já faziam parte do então tratamento padrão no hospital.
Sem um grupo de controle, isto é, um conjunto que recebe o placebo em vez da droga, não é possível comparar a diferença e o impacto da hidroxicloroquina no tratamento. “O que pode ser dito, e de fato é dito no artigo, é que não houve evento adverso grave (arritmia, por exemplo) pelo uso combinado dessas medicações”, explicou Louzada Junior ao Comprova.
O médico revelou que o estudo teve início em abril deste ano. Atualmente, a hidroxicloroquina não é mais empregada no protocolo da instituição para o tratamento de pacientes internados com Covid-19. “Se esse ensaio clínico tivesse iniciado hoje, não contaria a hidroxicloroquina no tratamento padrão institucional, que consiste de corticoides e heparina”, garantiu Louzada.
Ele reforçou ainda que o resultado da pesquisa tem relação apenas com a colchicina: “A conclusão final do estudo foi que a adição da colchicina ao tratamento padrão da Covid-19 levou à redução do tempo de uso de oxigênio suplementar, bem como redução do tempo de internação”.
Segundo o pesquisador, não é possível compreender um ensaio clínico, com suas limitações e importância, somente pela leitura do resumo. E sugeriu “a leitura completa do texto, antes da divulgação inapropriada dos seus resultados”.
Colchicina
A colchicina é um anti-inflamatório utilizado no tratamento da gota. Segundo os pesquisadores, entre as motivações para o estudo está o fato de não haver medicamento que combata a infecção causada pelo novo coronavírus, apenas cuidados médicos para evitar a reação do corpo que gera um quadro inflamatório.
Na pesquisa, “a dose empregada foi a que se utiliza para o tratamento das crises, pois já se tem bem estabelecido estudos de segurança para o seu emprego em pacientes”, ressaltou Louzada Junior ao Comprova, acrescentando os benefícios possíveis da colchicina.
“A colchicina é um inibidor do inflamassoma, que é uma plataforma de estruturas intracelulares que se organizam para produzir duas citocinas pró-inflamatórias. Como já existiam estudos prévios que indicavam que essas citocinas poderiam estar envolvidas no estado hiper inflamatório presente nos pacientes com Covid-19, essa foi a justificativa que embasou o seu uso como possível tratamento para os pacientes internados com pneumonia secundária à infecção pelo SARS-CoV-2”, apontou.
Em contrapartida, diversos estudos constataram que a cloroquina e seu derivado, a hidroxicloroquina, não apresentam qualquer benefício para os infectados pela Covid-19.
Segundo o Comprova, pesquisas em padrão ouro para avaliação de medicamentos – que exige testes com grupos de controle e o uso de placebos – publicadas no Journal of the American Medical Association (Jama) e no British Medical Journal (BMJ), apontaram que pacientes tratados com cloroquina e hidroxicloroquina não tiveram melhores resultados que aqueles que não receberam os mesmos remédios.
Na mesma linha, uma pesquisa realizada em 55 hospitais brasileiros e publicada no New England Journal of Medicine (NEJM) chegou às mesmas conclusões. A Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) publicou um informe, em julho, no qual pontua ser “urgente e necessário que a hidroxicloroquina seja abandonada no tratamento de qualquer fase da Covid-19” diante das novas evidências científicas.
Já a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o National Health Service, do Reino Unido, anunciaram que abandonaram os estudos com cloroquina e hidroxicloroquina. Conforme a OMS, não há, até o momento, tratamento efetivo ou drogas comprovadas contra o novo coronavírus. Essa posição é ratificada por autoridades sanitárias como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e sua equivalente norte-americana Food and Drug Administration (FDA).
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