Como os erros de medicação e os desvios de qualidade são tratados na Farmacovigilância

Como os erros de medicação e os desvios de qualidade são tratados na Farmacovigilância

Detecção, avaliação, compreensão e prevenção dos efeitos adversos ou quaisquer problemas relacionados a medicamentos é forma como a Organização Mundial de Saúde (OMS) definiu a Farmacovigilância, em 2002. Qualquer agravo à saúde de um paciente, ao longo de um tratamento com um produto farmacêutico é escopo desta ciência. 

A maioria dos efeitos adversos está relacionada a erros de medicação ou desvio de qualidade de medicamentos, que podem gerar questões relativas à ineficácia, entre outros agravos, bem como intoxicações por uso de medicamentos. Interações medicamentosas, previstas ou não previstas em bulas, também são escopo da Farmacovigilância.

Ao pensar no desenvolvimento de um medicamento, observa-se que, desde o início, houve estudos em laboratórios, em animais e em humanos. Mas, por que ainda existe uma ciência que se preocupa com o uso, após o medicamento comercializado? Quem contribui para essa compreensão é o professor de pós-graduação em Assuntos Regulatórios na Indústria Farmacêutica do ICTQ - Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico e diretor de Assuntos Regulatórios, Qualidade e Ensaios Clínicos do Instituto Butantan, Gustavo Mendes.

Desenvolvimento clínico de medicamentos

Segundo ele, o desenvolvimento clínico de um medicamento é dividido em três fases: segurança farmacológica; estudos exploratórios para definição de dose e população-alvo, e estudos confirmatórios com população controlada. Na primeira etapa, como o próprio nome indica, preocupa-se em avaliar a segurança farmacológica de uma nova molécula, quando se testa uma quantidade menor de voluntários, normalmente sadios, e verifica-se a segurança do medicamento.

Para aprovar a fase 1 existe uma série de dados que foram desenvolvidos antes, em escala laboratorial e em escala in vitro. Por isso, na primeira vez que uma molécula é testada em um ser humano, já existe um conjunto de dados de segurança importantes, os quais subsidiam as sequências do desenvolvimento clínico.

“A fase 2 refere-se a estudos que ainda buscam obter respostas, como para qual a dose ideal de um medicamento? É necessário algum ajuste? Precisa-se administrar mais para obter a mesma resposta clínica? Nela também se preocupa com a chamada população-alvo. Nesses casos, as questões que se tem em mente são, por exemplo: o novo medicamento pode ser administrado em idosos? E em pacientes com insuficiência renal e insuficiência hepática? Por isso, essa fase é exploratória, busca identificar a população-alvo e a dose resposta. Assim, no desenvolvimento de um medicamento, o mais importante é que se tenha a menor dose com a maior resposta”, explica Mendes.

Na fase 3 é quando o medicamento é testado em uma população maior, que representa o público-alvo e a população mundial. São milhares de voluntários e pacientes. Representa o padrão-ouro do que é um estudo clínico, ou seja, randomizado e controlado. O objetivo é confirmar se o medicamento realmente funciona. O medicamento é aprovado pela agência reguladora do país, no caso do Brasil, pela Anvisa, a partir de estudos conduzidos em uma população controlada.

Quando um medicamento vai para o mercado é necessário que uma estrutura seja montada para que todas as reações dele sejam observadas, mapeadas e possam contribuir para as ações futuras. Isso perpassa desde um possível recolhimento do produto até mesmo sua proibição. Historicamente, há casos em que o medicamento, após aprovado por uma agência reguladora, tenha causado problemas aos pacientes. 

A decisão de uma agência reguladora em aprovar um medicamento e mantê-lo no mercado é de benefício-risco, ou seja, o risco de usar o medicamento não pode ser maior que o benefício terapêutico que ele possui. Qualquer medicamento possui um risco associado, contudo, é preciso um balanço benefício-risco positivo para que o produto não seja retirado das prateleiras.

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“A Farmacovigilância se preocupa em saber o quanto os eventos adversos estão relacionados ou são a causa do uso dos medicamentos. Se não houver a relação de causalidade, pode ser que não se consiga fazer a relação e associar eventos adversos ao medicamento”, esclarece Mendes.

Ele defende que, algumas vezes, com os dados gerados pela Farmacovigilância ou com as informações observadas, é possível fazer um novo balanço benefício-risco que pode gerar uma retirada do medicamento do mercado.

“Por outro lado, pode ser que, com os dados gerados, seja possível propor novos usos, os quais, inicialmente, não haviam sido pesquisados em estudos clínicos. Por exemplo, o medicamento não tinha a indicação para um câncer específico que, na prática médica, pelo uso off label, observa-se que há um benefício de um determinado medicamento para esse tipo de doença, acrescenta ele.

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Dessa forma, há a possibilidade de juntar dados e evidências, chamados evidências de vida real, pois não são geradas a partir de estudos clínicos específicos, mas por meio da prática clínica, das observações dos profissionais prescritores. Com isso, pleiteia-se uma nova indicação. Essa é uma importante contribuição da Farmacovigilância, visto que o campo dos dados de vida real tem crescido sobremaneira.

Conforme o professor Gustavo Mendes, quando um gestor de saúde precisa decidir sobre qual medicamento será fornecido, por exemplo, pela sua Secretaria de Saúde ou pelo Ministério da Saúde, o balanço benefício-risco pautado pelos dados de vida real ou pelos dados observados pela Farmacovigilância pode ser fundamental. Riscos associados a medicamentos possivelmente geram agravos à saúde, com consequências não somente à saúde, mas em relação aos recursos e estruturas do sistema, ou seja, tem impacto direto com a gestão econômica.

“Além dos aspectos de saúde pública, relacionados às condições de saúde dos pacientes e da utilização do medicamento, a Farmacovigilância diz respeito ainda ao aspecto econômico da gestão pública”, ressalta Mendes.

O Centro de Vigilância Sanitária, descentralizado nos estados ou nos municípios, também é responsável por coletar dados de eventos adversos e tratá-los. Indústrias farmacêuticas têm como grande responsabilidade essas ações. Existem ainda os centros de saúde que atendem aos pacientes, com seus respectivos profissionais de saúde ou prescritores como peça-chave nas ações de Farmacovigilância, do mesmo modo que as farmácias, instituições que promovem e coletam dados relacionados aos eventos adversos.

Mendes reforça que os pacientes precisam ser orientados a fazer parte desse sistema de Farmacovigilância, pois, no final, quem está utilizando os medicamentos deve saber quais são as possíveis intercorrências. Portanto, esses pacientes devem conseguir identificar e relatar aos profissionais prescritores e farmacêuticos, para que os dados sejam adequadamente coletados.

Novo marco regulatório

A RDC 406/20, da Anvisa, conhecida como “novo marco regulatório da Farmacovigilância”, trouxe um novo conceito para a especialidade. A Agência está preocupada com o que os detentores de registro, ou seja, as indústrias farmacêuticas têm que fazer para agir e fazer parte do Sistema de Farmacovigilância Nacional.

Em 2019, a Anvisa foi aceita no comitê gestor do ICH (Fórum de Agências Reguladoras), que trata da harmonização de requisitos técnicos para medicamentos. A partir daí, o Brasil atingiu um novo patamar, em que são necessárias internalizações de guias que já existem no âmbito do ICH. Um deles é o E2B, que harmoniza procedimentos de Farmacovigilância de relatos de segurança de uso de medicamentos. Assim, o novo marco regulatório busca internalizar esses conceitos e trazer para o Brasil uma proximidade maior com os procedimentos das agências, no âmbito do ICH.

Sistema de Farmacovigilância

O Sistema de Farmacovigilância foi estruturado pela RDC 406/20 e assim deve continuar, pois é a maneira como a Anvisa entende que a Farmacovigilância deve ser estruturada na organização do detentor de registro do medicamento. Sendo assim, ela deve:

I - Garantir que a coleta e o processamento de todas as informações sobre Eventos Adversos sejam devidamente notificados ao Detentor de Registro de Medicamento por diversas fontes, incluindo representantes de visitação médica. Até as visitações realizadas pelos representantes de vendas aos médicos são fontes utilizadas para coleta de dados e informações, tratadas pelo detentor do registro. As notificações são feitas ainda pelas farmácias, pacientes, sistema de atendimento ao consumidor, sistemas de reclamações estruturados nas indústrias farmacêuticas e os prescritores. Tudo isso deve ser coletado e processado nesse sistema de farmacovigilância que precisa ser estruturado pelo detentor do registro.

II – Garantir o cumprimento dos requisitos regulatórios, definidos na RDC 406/20.

III – Garantir seu constante aperfeiçoamento ou capacidade de manter a coleta e o processamento dos dados ativa, através de avaliação contínua e autoinspeção, conceitos trazidos pela resolução RDC 406/20, em Farmacovigilância, para a detecção de não-conformidades e de oportunidades de melhoria.

De acordo com Mendes, o conceito de autoinspeção trazido pelo Sistema de Farmacovigilância é uma das grandes novidades do novo marco regulatório e, como um programa estruturado, emerge da proposta de que a melhoria contínua do sistema é uma ação importante e precisa ser autoinspecionada.

“Portanto, a RDC 406/20 define a necessidade de uma frequência para a realização de autoinspeções. As responsabilidades dos envolvidos, os procedimentos e demais documentos a serem seguidos, bem como o seu cronograma de execução, precisam estar claros, não só para quem é o detentor de registro, como também para o responsável pela Farmacovigilância e para a autoridade sanitária”, detalha o professor.

Ele continua: “A norma traz uma periodicidade, preferencialmente, de uma por ano, não podendo ultrapassar dois anos. As inspeções incluem ainda os terceiros envolvidos, ou seja, quando outra empresa está coletando, armazenando dados ou realizando alguma atividade do Sistema de Farmacovigilância, pois são atores importantes no sistema. Nesses casos, os registros devem ser mantidos por cinco anos”.

Saiba mais sobre Farmacovigilância

Gustavo Mendes Lima Santos é farmacêutico, formado pela USP de Ribeirão Preto, mestre em Toxicologia pela Universidade Estadual de Maringá. Atualmente é diretor de Assuntos Regulatórios, Qualidade e Ensaios Clínicos do Instituto Butantan, onde é responsável por coordenar as atividades relacionadas à regulamentação e à qualidade dos produtos desenvolvidos e fabricados pela instituição, além de liderar a equipe de ensaios clínicos e garantir o cumprimento das normas e regulamentos aplicáveis à indústria farmacêutica e de biotecnologia.

Foi servidor da Anvisa por 19 anos, tendo atuado como gerente-geral de Medicamentos e Produtos Biológicos no seu último cargo. Por quase um ano foi cedido pela Anvisa para atuar como cientista pesquisador no International Vaccines Institute, em Seul, na Coreia do Sul, onde acompanhou o desenvolvimento de novas vacinas para doenças negligenciadas. Por sua extensa contribuição para a Saúde e para a Farmácia no âmbito dos Assuntos Regulatórios no Brasil e no mundo, o CRF-SP o homenageou com a Comenda do Mérito Farmacêutico Paulista.

Assista a um trecho da videoaula ministrada por ele na pós-graduação do ICTQ de Assuntos Regulatórios da Indústria Farmacêutica:

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