A multimorbidade, associada à polifarmácia, representa um desafio importante e crescente para os pacientes, cuidadores e profissionais da saúde. Embora se reconheça que a polifarmácia pode ser benéfica, ela envolve grande potencial de danos, particularmente por meio das interações medicamentosas, das reações adversas de medicamentos e da adesão inadequada por falta de conhecimento dos pacientes. Esses danos são amplificados em pessoas fragilizadas, que podem precisar de intervenções adaptadas às suas necessidades individuais em vez de seguir estritamente as orientações destinadas ao tratamento de doenças isoladas. É aí que entra a desprescrição!
Na desprecrição é importante que o farmacêutico desenvolva uma abordagem clínica que permita a tomada de decisões bem embasadas para priorizar os medicamentos a ser mantidos ou interrompidos, a fim de maximizar os benefícios e minimizar os danos. Segundo o farmacêutico, especialista e analista em gestão de assistência em saúde da FHEMIG e consultor técnico farmacêutico da Drogaria Araújo, Hairton Ayres Azevedo Guimarães, o termo “desprescrição” foi sugerido para casos com base no reconhecimento de que as competências necessárias para interromper o uso de medicamentos precisam ser tão sofisticadas quanto as utilizadas quando se inicia o tratamento medicamentoso.
Guimarães entende que o atendimento clínico na farmácia é o meio para que o paciente obtenha êxito no tratamento com a medicação: “É importante a farmácia ter o serviço clínico para que possamos fazer uma revisão da farmacoterapia com acompanhamento e, a partir desse momento, junto ao paciente, realizar uma carta de encaminhamento ao prescritor relatando as possíveis reações, interações medicamentosas e até mesmo, em alguns casos, mostrar que determinado medicamento é inapropriado. A desprescrição pode ser até mesmo para os MIPs, pois o farmacêutico deve observar as evidências, riscos/benefícios, interações medicamentosas, incompatibilidades, complicações clínicas, eventos adversos, entre outros aspectos, para ter um raciocínio clínico fundamentado nas melhores evidências em saúde”.
A Resolução 585/13 do Conselho Federal de Farmácia (CFF) reforça a importância da atuação farmacêutica. O documento diz que o farmacêutico pode “realizar intervenções farmacêuticas e emitir parecer farmacêutico a outros profissionais da área da saúde, com o propósito de auxiliar na seleção, adição, substituição, ajuste ou interrupção da farmacoterapia de um paciente”.
Guimarães relata que a desprescrição é um processo no qual os profissionais de saúde irão avaliar se o medicamento é realmente necessário, se não irá piorar outras morbidades e buscar orientar o uso racional do medicamento com os melhores desfechos clínicos baseando-se nas evidências científicas. “A desprescrição torna-se necessária em vários momentos, por exemplo: quando o medicamento não tem evidência clínica para a indicação em questão; quando o medicamento traz mais riscos que benefícios; quando se observa uma interação medicamentosa grave e, portanto, aumento do risco de complicações para o paciente, enfim, em situações em que se observam mais efeitos indesejáveis que desejáveis”, diz.
Em termos de doenças crônicas é incomum que médicos retirem os medicamentos de seus pacientes. Entretanto, desprescrever é o processo de reduzir ou interromper o uso de medicamentos, com o objetivo de controlar a polifarmácia e melhorar os resultados, conforme explicou o farmacêutico Guimarães: “A desprescrição deverá ser avaliada e aplicada principalmente na polifarmácia devido aos eventos adversos e interações medicamentosas, entre outras situações. Aplicar a desprescrição não é uma tarefa fácil, pois envolve conhecimento clínico, farmacológico e sabemos que o diagnóstico deverá ter uma maior acurácia”.
Como aplicar a desprescrição?
Guimarães ressalta que o processo de suspensão de um medicamento inapropriado, supervisionado por um profissional de saúde, com o objetivo de manejar a polifarmácia e melhorar desfechos pode evitar danos irreversíveis, como o óbito. “Vários estudos em populações de pacientes com demência que fazem uso contínuo de antipsicóticos observaram diversos efeitos colaterais devido à interação medicamentosa com outros medicamentos. No caso dos agentes anti-hipertensivos, há estudos observacionais evidenciando que, em uma politerapia, quando se interrompe um medicamento indesejável, há uma associação com menos eventos cardiovasculares e óbito”, afirma.
O farmacêutico, doutor em farmacologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e pela Maximilian Universität München Niraldo Paulino relata que, por mais justificável que seja a coexistência de mais de cinco fármacos em uma prescrição – basta imaginar um sujeito hipertenso, diabético e com doença coronariana que facilmente chegamos a isso –, segundo ele a polifarmácia nunca é inócua: traz consigo o ônus da interação medicamentosa, dificuldade em manter a adesão e, logicamente, aumenta o risco de iatrogenia. “Diante desse problema, cada vez mais se fala em desprescrição. A preocupação com a polifarmácia e com a própria racionalidade da terapêutica leva à necessidade de tentar tornar as prescrições mais enxutas. Para tanto, a cooperação entre profissionais da saúde e paciente faz-se fundamental”, explica.
Paulino diz que o primeiro passo para a desprescrição envolve a conscientização sobre a existência de opções: “Efeitos adversos de drogas, o acréscimo de um novo medicamento ou um novo diagnóstico podem ser oportunidades para conversar sobre as alternativas disponíveis. Deve ser levado em conta que as atitudes dos pacientes em relação aos fármacos, não raramente, são contraditórias: eles valorizam o uso de medicamentos, percebem isso como um cuidado, mas também se incomodam com a necessidade de usar tantos diferentes”.
Segundo ele, uma vez que há entendimento e concordância sobre as potenciais vantagens da desprescrição, pode-se tomar a decisão: “É fundamental a observação do efeito prático da suspensão de medicamentos que, evidentemente, pode ser revista a qualquer tempo. Na prática, ainda é muito comum o clínico conquistar a confiança do paciente simplesmente por retirar da prescrição uma droga por ter concluído que parte dos problemas do paciente, a ela se devia. É mais difícil, todavia, a proposta de desprescrição em sujeitos que se apresentam bem assintomáticos”.
Desprescrição na melhor idade
A médica geriátrica do Hospital Naval Marcílio Dias, Dayanna de Oliveira Quintanilha, afirma que a polifarmácia inadequada, especialmente em pessoas idosas, impõe uma carga substancial de desfechos clínicos negativos, como riscos de queda, hospitalização e, até mesmo, a morte: “O mais simples e importante preditor de prescrição inapropriada e risco de eventos adversos de drogas em idosos é o número de medicamentos prescritos. A desprescrição é o processo de redução ou interrupção de drogas, visando a minimizar a polifarmácia e melhorando os resultados do paciente. A evidência de eficácia para desprescrição é emergente de ensaios randomizados e estudos observacionais”.
Para a médica assistente do serviço de geriatria da Faculdade de Medicina da USP e doutora em ciências pela Faculdade de Medicina da USP, Maria Cristina Guerra Passarelli, o uso de vários medicamentos simultaneamente (polifarmácia) é uma prática comum quando se refere a pacientes idosos: “Estes, em geral, consultam diferentes especialidades médicas, agrupando várias classes de medicamentos ao seu histórico farmacológico. Contribui para a polifarmácia o processo de fragmentação da visão do modelo biomédico sobre o homem, de modo que cada especialista assume a responsabilidade sobre o ‘órgão doente’ de sua área de atuação sem considerar o ser humano como um todo, com suas características biológicas, psicológicas e socioambientais”.
A doutora Maria Cristina diz que a associação incorreta de medicamentos pode potencializar o risco de eventos adversos e, nesse contexto, as prescrições inadequadas são apontadas como a principal causa dos problemas gerados pela polifarmácia. Ela relata que, segundo uma revisão sistemática recente, uma em cada cinco prescrições destinadas às pessoas idosas na atenção primária é inapropriada: “Esse panorama nos leva à importante reflexão acerca de uma prática de atenção à saúde denominada desprescrição. Essa prática consiste em uma rigorosa análise das prescrições, de modo a identificar problemas relacionados aos medicamentos utilizados, contribuindo para maior qualidade da farmacoterapia, melhoras funcionais e redução de gastos com internações decorrentes, por exemplo, de eventos adversos”.
A médica reconhece que, embora a desprescrição possa, em condições muito específicas, ser feita por médicos, o farmacêutico continua sendo o principal ator dessa prática. “O apoio de farmacêuticos, sugerindo condutas terapêuticas, seja por meio de diálogo com o prescritor ou por intermédio do paciente, pode somar esforços a fim de minimizar interações indesejáveis e reações adversas. As intervenções podem variar desde modificação das doses, substituição, eliminação ou até mesmo inclusão de fármacos à prescrição médica”, afirma.
Cinco etapas da desprescrição
Revisar: listar todos os medicamentos utilizados e avaliar o estado físico e comportamental, bem como o contexto sociofamiliar, do paciente.
Analisar: avaliar adesão, interações e efeitos adversos. Pontuar metas de atenção e objetivos de tratamento, considerando a relação entre a expectativa de vida e o tempo até o benefício.
Agir: iniciar a desprescrição retirando fármacos inapropriados e que causam danos mais graves, ajustando doses ou introduzindo outros fármacos necessários.
Ajustar: pactuar expectativas e crenças do paciente dando preferências às reais possibilidades de cumprimento da prescrição.
Monitorar: detectar ressurgimento dos sintomas ou agravamento da doença de base, avaliar adesão à desprescrição, destacar conquistas e proporcionar apoio ao paciente.
A doutora Maria Cristina alerta que, como qualquer intervenção em saúde, a desprescrição pode ter implicações negativas, apesar dos benefícios ao paciente: “Entre elas, vale citar algumas complicações, como a síndrome de retirada, que está relacionada principalmente aos fármacos que atuam no sistema nervoso central, como os benzodiazepínicos, e o efeito rebote, entendido como o reaparecimento dos sintomas após a retirada do medicamento”. Por essas razões, a médica afirma que é importante realizar o processo envolvendo o paciente, seu cuidador e os profissionais responsáveis, ressaltando que nenhuma alteração deve ser vista como irreversível e que o sucesso da intervenção depende do acompanhamento constante do paciente pelos profissionais envolvidos em seu caso clínico, incluindo o cuidador, se for o caso. “Desprescrever é uma prática que beneficia não apenas os idosos, mas também todo paciente que possui uma conduta terapêutica inadequada.”
Segundo a médica, a alteração da conduta terapêutica de um paciente assume obstáculos não apenas por parte do indivíduo, que pode se sentir inseguro com a prática, mas também por fatores externos como o sistema de saúde vigente, os profissionais responsáveis e a relação profissional-paciente: “Assim, faz-se necessário que a população e os profissionais de saúde busquem informações sobre o processo de desprescrição para que essa prática seja mais valorizada e incorporada, de fato, à rotina terapêutica. É importante ressaltar que a interação entre os profissionais que acompanham o paciente é o principal facilitador para o sucesso da prática, sendo por isso indispensável a troca de informações e conhecimentos entre os mesmos visando à qualidade de vida do indivíduo”.
Um médico atuante na desprecrição
O médico geriatra do serviço de geriatria do Hospital das Clínicas da FMUSP, graduado pela Faculdade de Medicina da USP, José Renato Amaral, conta que cerca de 30% dos pacientes idosos empregam cinco ou mais medicamentos por dia e que isso corresponde à polifarmácia. “Depreende-se daí que essa população apresenta alto risco de complicações associadas, como reações adversas a medicamentos, interações medicamentosas e prescrição de medicamentos considerados potencialmente inapropriados. Aproximadamente 50% dos pacientes idosos hospitalizados e institucionalizados recebem um ou mais medicamentos que poderiam ser considerados desnecessários”, explica.
Segundo Amaral, estudos observacionais têm demonstrado eventos adversos em no mínimo 15% dos idosos, podendo levar à piora da funcionalidade, descompensação clínica, hospitalização e até mesmo ao óbito, sendo o número de medicamentos empregados o principal fator de risco para complicações: “Objetivando a redução desse risco, meu atendimento tem como foco a desprescrição de medicamentos, definida como o processo sistemático de identificar e suspender medicamentos de benefício questionável ou com potencial para complicações”.
O médico geriatra ressalta que existe na literatura considerável evidência do alto risco de eventos adversos associados à polifarmácia em idosos. Segundo o doutor Amaral, desde que se faça avaliação adequada e monitorização criteriosa, a taxa de desprescrição segura de anti-hipertensivos, psicotrópicos e benzodiazepínicos tem variado de 20% até 100% sem quaisquer complicações. “Outro achado descrito é a redução do risco de quedas e a melhora cognitiva e funcional após a suspensão de medicamentos de ação no sistema nervoso central. Em populações de pacientes demenciados, a retirada de antipsicóticos de uso contínuo foi reportada como segura em até 80% dos idosos avaliados. Ainda, em um estudo observacional, a interrupção de agentes anti-hipertensivos mostrou associação com menos eventos cardiovasculares e óbito em um período de cinco anos de seguimento”, complementa.
O doutor Amaral ainda ressalta que, para auxiliar a decisão terapêutica, há dois aspectos que devem ser considerados:
1º- É necessário ponderar se a medicação, cuja suspensão foi cogitada, tem como finalidade o controle da doença ou da qualidade de vida, como, por exemplo, o uso de analgésicos em pacientes com osteoartrose severa; tais medicações até poderão ser interrompidas, ou ter suas doses reduzidas, mas o estado clínico do paciente deverá ser rigorosamente monitorado a partir da suspensão, que deverá ser revista, se necessário;
2º- Há os medicamentos indicados para a prevenção de um evento mórbido futuro, como, por exemplo, anticoagulantes, bifosfonatos e estatinas; a suspensão de tais fármacos envolve a consideração criteriosa e baseada em evidências dos riscos e dos benefícios daquele determinado tratamento, à luz do tempo necessário para que o benefício se manifeste e da expectativa de vida.
Principais situações em que a desprescrição deve ser considerada
- Surgimento de um novo sintoma ou síndrome clínica, compatível com um evento adverso.
- Estágios finais de doenças terminais, fragilidade extrema, grave prejuízo da funcionalidade.
- Uso de medicamentos com alto potencial para complicações.
- Situações em que a interrupção do medicamento não levará a agravamento da doença em questão (por exemplo, a interrupção do alendronato de sódio após cinco anos de tratamento de osteoporose).
Amaral ressalta que conceitos como polifarmácia, uso de medicamentos potencialmente inapropriados para idosos e interações medicamentosas têm sido muito difundidos nos últimos anos, mas, segundo ele, no entanto, todo o conhecimento deve ser colocado em prática, visando à redução de eventos adversos possíveis de prever relacionados a medicamentos: “Não basta conhecer os riscos se não existe a preocupação com a aplicação desses conceitos, culminando com a desprescrição de determinados medicamentos. Espera-se que esse tema seja mais estudado no futuro e que a desprescrição em idosos venha a fazer parte das boas práticas do uso de medicamentos nessa população”, finaliza.