Uma nova perspectiva nas áreas da farmácia clinica e hospitalar inclui conhecimentos que advêm das biologias molecular e celular, que também foram responsáveis pelo surgimento da tecnologia dos transgênicos, de novas drogas, das vacinas recombinantes, do DNA, da clonagem terapêutica e da terapia gênica e celular.
Terapias gênicas são desenvolvidas a partir da manipulação celular, que resultam em medicamentos personalizados, para tratamento de doenças hereditárias, como a Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), câncer e algumas infecções virais. Quer seja o nome - terapia gênica, terapia genética ou geneterapia, trata-se da inserção de genes nas células e tecidos de um indivíduo com vistas a reparar problemas causados por genes defeituosos ou ausentes.
A ideia começou a se mostrar realizável a partir do desenvolvimento da tecnologia do DNA recombinante, com a introdução de genes humanos em bactérias para a produção de proteínas humanas, como a insulina.
Nas prateleiras do varejo
Finalizando pós-doutorado em Biotecnologia na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Ellen Anatriello conta que, para inovar em medicamentos, além da disponibilização de financiamentos para que os pesquisadores possam imergir nas melhores tecnologias para aperfeiçoar a saúde humana, é necessário que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) continue modernizando o ambiente regulatório. Para a pesquisadora, sem dúvida, apesar dos avanços, a regulamentação de produtos de terapia gênica é um grande desafio para o Brasil.
Tratamentos em terapia gênica ainda são muitos experimentais, mesmo nos Estados Unidos e na Europa. São mais restritos aos hospitais, então sua popularização (e o consequente barateamento para que enfim possa chegar às farmácias) ainda deve passar por um longo caminho, que não será em curto prazo.
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“É do médio para o longo prazos que essas terapias gênicas estarão mais acessíveis. É claro que existem tecnologias baseadas em biologia molecular, por exemplo, teste rápido de DNA - que antes era experimental e hoje está disponível em farmácias. Estou falando de um procedimento diagnóstico, mas que antes era de ponta, de alto custo, e foi chegando até os estabelecimentos. Eu não descarto que alguns produtos, algumas terapias, realmente estejam acessíveis em um espaço de tempo talvez não tão longo, mas a maioria está mais restrita para hospitais”, salienta o vice-presidente do Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo (CFF/SP) e especialista em farmácia hospitalar, Marcelo Polacow.
De acordo com o executivo de Pesquisa & Desenvolvimento e Inovação farmacêutica e professor do ICTQ – Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico, Robert Woolley, os estudos em terapias gênicas no Brasil ainda estão no âmbito acadêmico e mais restritos a universidades e centros de pesquisa, e se classificam em três grandes áreas:
- Coleta de material genético e células-tronco para desenvolvimento de tratamentos (e para uso em futuros tratamentos);
- Sequenciamento e diagnósticos de doenças que podem ser tratadas por terapia gênica; e
- Terapia gênica propriamente dita, que visa alterar o gene de um órgão ou todo o genoma do paciente para levar à cura.
Caminhos para o consumidor
De acordo com Polacow, quando se desenvolve uma nova tecnologia, a tendência é que o custo inicial seja bastante elevado. Com o passar dos anos, com a produção em série, em larga escala, a possibilidade é de um barateamento e, então, a população realmente se beneficia. O Brasil, segundo ele, tem uma peculiaridade, que é o Sistema Único de Saúde (SUS), que é equânime e universal. Teoricamente, a partir do momento em que uma tecnologia é incorporada pelo SUS, toda a população brasileira tem acesso.
“Por exemplo: recentemente tecnologias para o tratamento do câncer, que eram inacessíveis, foram incorporadas pelo SUS e a população passou a ter acesso a esses produtos. Agora, como são tecnologias muito caras ainda, dificilmente a população tem condições de pagar por conta própria. Mas, com certeza, todo avanço, todo tratamento novo e que está acessível, passa a ser benéfico para a população em geral”, sentencia Polacow, que continua: “É importante que o farmacêutico conheça essas tecnologias e discuta com seus pacientes essas oportunidades de tratamento, ou seja, conheçam onde estão disponíveis, qual é o custo e também lutem para que esse tratamento seja acessível e de baixo custo”.
Mercado incipiente
Polacow reflete que o desenvolvimento da terapia gênica ainda é muito inicial, e seu amadurecimento, de fato, deve se dar nos próximos 5 a 15 anos. No Brasil ainda há vários limitantes, principalmente a falta de recursos financeiros para o desenvolvimento de estudos. Existe a tendência de esses tratamentos estarem disponíveis, em um primeiro momento, para pacientes da rede privada e, depois, serem incorporados pelo SUS e disponibilizados para toda a população.
Woolley compartilha a mesma opinião: “Terapia gênica tem por objetivo tratar doenças genéticas, não se tratam de terapias em massa e, na maioria dos casos, serão tratamentos customizados. O acesso à terapia gênica não será imediato, ocorrerá com o amadurecimento e barateamento da tecnologia e, em paralelo, à incorporação no SUS”.
Alto custo
A gigante mundial, Novartis, lançou, no início de 2019, o Zolgensma, medicamento usado para tratar Atrofia Muscular Espinhal (AME). O nome é complexo e a doença é destrutiva. As estatísticas indicam que a cada 100 mil bebês nascidos no mundo, de sete a dez são afetados pela AME, que pode levar a criança à morte antes mesmo de completar os dois anos de vida. No Brasil, estima-se que a doença afete cerca de 200 pessoas por ano.
Esse lançamento da empresa de medicamentos foi polêmico e considerado o mais caro do mundo. Uma dose, a única usada no tratamento, custa US$ 2,1 milhões (R$ 9,1 milhões). O produto também representa o início de uma nova era no âmbito farmacêutico e uma das principais apostas da Novartis nas terapias gênicas e celulares.
O Zolgensma tem a capacidade de reparar os genes que produzem a proteína SNM, responsável por proteger os neurônios motores, fazendo com que crianças que tinham perdido os movimentos voltem a se locomover.
Regulação
Segundo a Anvisa, o processo de regulação de terapias avançadas, que abrange também a terapia gênica, teve início em 2012. Desde então, o órgão regulador brasileiro publicou duas resoluções sobre o tema. A RDC 214, de 2018, trata das boas práticas para o uso de células humanas destinadas à produção de terapias gênicas e pesquisa clínica. A RDC 260, do mesmo ano, diz respeito às regras para a realização de ensaios clínicos com produto de terapia avançada.
Um campo a mais para o farmacêutico
“A terapia gênica já tem sido bastante explorada e tem se tornado cada vez mais promissora pela necessidade em testá-la em ensaios clínicos. E, em um futuro próximo, deverá se expandir exponencialmente. O progresso na área tem impulsionado um número crescente de profissionais da saúde, incluindo médicos e farmacêuticos clínicos, a envolver seus pacientes em ensaios clínicos promissores. Além disso, temos percebido um grande interesse de empresas farmacêuticas multinacionais em vir ao Brasil para fazer ensaios clínicos”, conta Ellen.
De acordo com a pesquisadora, como toda nova proposta de tratamento, a terapia gênica deve ser testada em protocolos pré-clínicos (estudos in vitro, com células em cultura, seguidos por estudos in vivo, com experimentação em modelos animais) e em protocolos clínicos, em que o papel do farmacêutico clínico é indispensável. Ele tem o papel não só em amparar os aspectos de segurança (via, dose, frequência), mas, também, no acompanhamento do tratamento e avaliação do prognóstico de pacientes submetidos a essas terapias.
“O farmacêutico clínico é o responsável por todo o processo de gestão dos estudos clínicos para a aprovação das terapias pelas agências reguladoras, e futuramente haverá um amplo mercado para atuar em clínicas e centros de terapia gênica”, revela Woolley.
Polacow corrobora que a terapia gênica é uma grande oportunidade para o farmacêutico clínico se envolver, no entanto, há uma carência muito grande na formação, principalmente na graduação e também nas pós-graduações, que não preparam o aluno adequadamente para a atuação nessa área.
“A formação ainda é muito focada nos produtos de síntese e química e nem os medicamentos biológicos ainda os farmacêuticos dominam. Mesmo os farmacêuticos clínicos que já atuam têm muita dificuldade de entendimento e de formação para agir nessa área, mas sem sombra de dúvida é um campo a mais de trabalho”, ressalta o ele.
Entraves
Ellen fala que a terapia gênica envolve uma nova fronteira no campo da ciência, e conduz o desenvolvimento de tratamentos inovadores e promissores para curar muitas doenças para as quais ainda não há tratamento. Há excelentes pesquisadores e diversas pesquisas de relevância internacional sendo desenvolvidas aqui no Brasil. No entanto, cabe ressaltar que, além do avanço científico, que tem sido enorme, a terapia gênica ainda vive majoritariamente de financiamento público.
Polacow destaca que o Brasil tem algumas ilhas de excelência, locais que pesquisam terapias gênicas e que estão bastante avançados, como a Universidade de São Paulo (USP-SP), USP-Ribeirão Preto e a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Segundo ele, ainda é muito incipiente, os tratamentos ainda são experimentais, mas as expectativas são grandes de popularização.
“Como o Brasil, nos últimos anos, não tem recebido muitos investimentos nessa área de pesquisa pelos órgãos de fomento do Governo, isso dificulta bastante a realização de pesquisas, pois a maior parte das universidades é dependente - quase que totalmente - dessas fontes de recursos, ao contrário dos Estados Unidos e da Europa, onde as fontes de recursos, muitas vezes, são diversas e são da iniciativa privada. É esse tipo de iniciativa que estamos precisando no Brasil para os desenvolvimentos dessas terapias gênicas - hospitais, indústrias farmacêuticas investindo e fazendo parceira com esses centros de pesquisas”, finaliza o farmacêutico.
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