CRF sem fiscal mantém faturamento de anuidades

Farmacêuticos de todo o Brasil pagam por fiscalização do CRF que não existe há 11 meses

Uma das principais atividades dos conselhos regionais de farmácias (CRF) é a fiscalização do exercício profissional do farmacêutico em todas as suas áreas de atuação. Até aí, já é de conhecimento geral...mas, o que nem todos sabem é que há um Conselho, em especial, que está sem fiscal e, consequentemente, sem nenhuma fiscalização em todo o Estado. É o caso do Acre.

Parece ironia, mas é a pura realidade: o CRF-AC está sem fiscais contratados há quase um ano. A única fiscal do quadro da entidade está em licença médica, desde janeiro de 2019, por conta da gravidez e, no momento, está em licença-maternidade. Conforme o Plano de Fiscalização Anual 2019, disposto na aba da Transparência, do site do CF-AC (acesse aqui), no item 1.2, consta apenas o nome dela, como gerente de Fiscalização, Priscilla Fernandes de Aguiar.

De acordo com a Resolução do Conselho Federal de Farmácia (CFF) 648, de 30 de agosto de 2017, a cada 600 estabelecimentos, no máximo, deve haver um fiscal em atividades de fiscalização.

O Plano de Fiscalização do CRF-AC para 2019 compreende sete rotas de fiscalização: Rio Branco, Região Metropolitana, Baixo Acre I e II, Alto Acre, Juruá e Tarauacá/Envira, cujos roteiros são organizados de acordo com a logística da região e as dificuldades de acesso, percebidas por conta das variações climáticas.

A fiscalização no Estado ocorreria (se houvesse um profissional para isso) em 518 estabelecimentos, sendo 227 na capital, e contemplaria estabelecimentos públicos e privados, com maior ênfase em farmácias, drogarias e distribuidoras de medicamentos.

Por esse número de estabelecimentos, o Estado comportaria apenas um fiscal, no entanto, por conta das características da região, foi aprovada a contratação de mais um fiscal, ainda sem data para o lançamento do edital.

As metas de fiscalização do Acre, apontada no seu Plano de Fiscalização para 2019 (item 2.5), incluíam:

  1. a) Número de inspeções por ano em todo o Estado: 1.674.
  2. b) Número de inspeções na capital: serão realizadas quatro fiscalizações na capital, totalizando assim em 848 inspeções.
  3. c) Número de inspeções na região metropolitana: Serão realizadas quatro fiscalizações na região metropolitana, totalizando assim em 144 inspeções.
  4. d) Número de inspeções no interior: Serão realizadas três fiscalizações no interior, totalizando, assim, 690 inspeções.

Acre recebe verba do CFF para a fiscalização

De acordo com o Portal da Transparência do CFF, está inserida no orçamento de 2019 uma verba para o Acre de R$ 20 mil ao mês, cedida pelo CFF, com a exigência de que esse recurso fosse gasto, exclusivamente, com a fiscalização.

Perguntas óbvias: por que um Estado que não tem fiscal e nem fiscalização recebe essa verba de R$ 20 mil? O que o CRF-AC faz com esse recurso? Por que o CRF-AC e a Comissão de Fiscalização não querem falar sobre o assunto?

O recurso do CFF advém dos farmacêuticos de todo o País. Logo, os R$ 20 mil repassados ao CRF do Acre é um recurso proveniente dos farmacêuticos de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e de todos os Estados. Em análise, todo o País está pagando por uma fiscalização que, simplesmente, não existiria. E a pergunta insiste: para onde está indo esse recurso?

Promotor do Acre investiga a fiscalização

Matéria publicada no Jornal O Rio Branco afirma que o promotor de Justiça do Ministério Público do Acre (MPAC), Flávio Bussab, abriu Procedimento Administrativo para investigar as farmácias e drogarias do Município de Tarauacá (AC) por desrespeitar lei que obriga a presença do profissional farmacêutico em tempo integral. Isso, possivelmente, seria reflexo da falta de fiscalização no Estado (leia matéria aqui).

Bussab considerou o Código de Defesa do Consumidor e que “um dos deveres do Estado é proteger e promover a saúde como direito de todos, garantindo a segurança sanitária na produção e na comercialização de produtos e serviços disponibilizados aos consumidores, de modo a manter o propósito constitucional de redução dos riscos de doenças graves”. Procurado pelo ICTQ – Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico, Bussad disse que não concederia entrevistas por telefone ou e-mail sobre o tema.

O presidente do CRF-AC, João Vitor Italiano Braz, foi procurado pela reportagem do ICTQ e respondeu o seguinte: “Em nosso Estado é necessário conhecer a realidade política, social e cultural de cada regional, e para não atrapalhar o andamento do nosso planejamento de trabalho, somos aconselhados pelo jurídico a não divulgar algumas informações que possam atravancar nosso plano de ação. Como não formos notificados oficialmente, sugiro que procure os responsáveis pela matéria para informações que não são de nosso conhecimento”.

Fora isso, o presidente do CRF-AC disse não poder dar informações sobre a fiscalização no Estado por recomendação de sua área jurídica.

Pesquisa

Por conta da negativa de informações sobre o tema da fiscalização no Acre que os envolvidos deram, e ainda para dar lastro às afirmações desta matéria, o ICTQ usou seu Departamento de Pesquisa e colocou sua equipe em campo.

Assim, foram visitadas 50 farmácias na capital e em 4 cidades do interior, entre 10 e 13 de dezembro de 2019. Dentre as farmácias, estão aquelas de redes e as independentes, em bairros e no centro das cidades.

Como resultado, foi encontrado que 36% das farmácias no Acre estão sem farmacêuticos em tempo integral. No interior, a ausência do farmacêutico chega a 50% dos estabelecimentos.

A fiscalização é obrigatória

A fiscalização exercida pelo CRF é obrigatória, e deve acontecer de forma padronizada, conforme previsto na Resolução 648/17. Essa atividade prevê o direito legal da população de ser atendida pelo farmacêutico durante todo o período em que o estabelecimento estiver aberto, garantindo, assim, a presença de profissionais capacitados no cuidado à saúde e comprometidos com o uso racional de medicamentos.

Quando forem constatas irregularidades nos estabelecimentos, a fiscalização os notifica para a regularização, e encaminha a informação para outras autoridades, se necessário (vigilâncias sanitárias, Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), autoridades policiais, ministério público etc.). Essa ação é uma obrigatoriedade legal. Os profissionais inscritos no CRF-SP envolvidos nas irregularidades terão sua conduta ética julgada.

As fiscalizações só podem ser exercidas por farmacêuticos fiscais, aprovados em concurso, que serão responsáveis pelo cumprimento de inspeções, inclusive em períodos noturnos, finais de semana e feriados. As inspeções fiscais ocorrem mediante lavratura de termos de visita eletrônico (Fiscalização Eletrônica Móvel – FEM), mantendo-se o preenchimento dos termos de intimação e auto de infração de forma manual.

Comissão de Fiscalização do CFF

Procurado pelo jornalismo do ICTQ, o presidente da Comissão de Fiscalização do CFF, Romeu Cordeiro, disse que iria consultar a Comunicação do CFF, mas deixou de responder às solicitações. Ironicamente, esse presidente da Fiscalização é também o conselheiro Federal do Acre, Estado que nem possui fiscais ativos.

Legislação

A Lei 13.021, de 08 de agosto de 2014, dispõe sobre o exercício e a fiscalização das atividades farmacêuticas. No entanto, a Resolução 648/17 é que determina regulamento dessa atividade.

Em seu Anexo I - Regulamento de Fiscalização dos Conselhos Regionais de Farmácia, Capítulo I (dos farmacêuticos fiscais), o Art. 2º diz que os Conselhos Regionais de Farmácia deverão dispor de quadro de farmacêuticos fiscais em número suficiente a garantir a fiscalização de todos os estabelecimentos no Estado.

O § 4º afirma que, para garantir a fiscalização em todas as empresas ou estabelecimentos durante o exercício fiscal, os Conselhos Regionais de Farmácia deverão manter a proporção de, no máximo, 600 estabelecimentos por fiscal em atividades de fiscalização.

Já o § 5º diz que para garantir o Índice de Desempenho do CRF, e a fiscalização mínima em todas as empresas ou estabelecimentos durante ano, os Conselhos Regionais de Farmácia deverão garantir o índice médio de, no mínimo, em cada estabelecimento, três inspeções nas cidades do interior e quatro inspeções na capital e região metropolitana, observando as prioridades em razão da deficiência de assistência farmacêutica.

O § 6º diz que, em razão da complexidade dos vários tipos de inspeções, será usado fator de correção conforme cada tipo de estabelecimento, para o cálculo do Índice de Desempenho do Conselho (IDC) e do fiscal (IDF):

A - Inspeções de rotina, definida como aquela de verificação de presença, ausência, autuações, intimações e orientações necessárias, um ponto por inspeção realizada;

B - Inspeções conjuntas, aplicação de FFEAF padrão prevista pelo CFF, descrita nos respectivos anexos, três pontos por cada inspeção realizada (média de duas horas de tempo dedicado);

C - Inspeções conjuntas com FFEAF de alta complexidade, sendo estas aquelas com quesitos relevantes adicionados pelos CRFs, onde o tempo previsto de aplicação seja no mínimo o dobro da FFEAF padrão, cinco pontos por cada inspeção realizada; etc.

Onde o CFF entra nisso tudo?

O CFF não quis explicar o caso, por intermédio do presidente da fiscalização (que também é conselheiro do Acre), mas a legislação é clara ao determinar as atribuições do Conselho Federal nesse assunto.

A Resolução 648/17, Anexo I, Capítulo IV - Do Conselho Federal De Farmácia -, em seu Art. 26, diz que o CFF poderá auxiliar o CRF que pretenda dinamizar sua fiscalização, desde que sejam cumpridas pelo conselho regional as normativas e metas de desempenho estabelecidas no plano de fiscalização anual.

O Art. 27 lista os auxílios prestados aos Conselhos Regionais de Farmácia:

  1. a) orientação e organização do setor;
  2. b) aquisição de equipamentos e suporte administrativo;
  3. c) outros a serem solicitados, devidamente justificados.

Já o Art. 28. afirma que o CFF poderá auxiliar o CRF para cumprimento do plano de fiscalização anual em caso de comprovada a necessidade de melhorias no departamento de fiscalização.

Além disso, o CFF (Art. 30) terá de fiscalizar a aplicação dos recursos, por verificação "in loco", e por meio de relatórios mensais encaminhados pelo presidente do CRF, com o parecer da comissão de fiscalização do CFF.

Consequências

Em entrevista exclusiva à equipe de jornalismo do ICTQ, o senador Sérgio Petecão (PSD-AC), falou sobre o seu Projeto de Lei (PL) 5455/19, apresentado em outubro de 2019, que defende a venda de medicamentos isentos de prescrição (MIP) em supermercados e hotéis. Sua justificativa é de que essa comercialização feita além das portas de uma farmácia iria beneficiar a população, principalmente, com o aumento da oferta e, consequentemente, com a queda dos preços. Leia matéria no Portal de Conteúdo o ICTQ, intitulada MIPs: senador acusa farmácias de quererem faturar sem concorrência (leia aqui).

“Com esse projeto, eu gostaria de facilitar o acesso das comunidades mais isoladas, onde a população fica à mercê de uma ou duas farmácias e, como não há concorrência, elas colocam o preço que quiserem no remédio, no caso dos MIPs. Eu estou falando pelo interior, onde tem maior dificuldade, mas nas capitais também o serviço iria facilitar, como já acontece no mundo todo”, fala ele.

Perguntado se essa venda fora das farmácias causaria problemas para a população, que não teria um farmacêutico para dar orientações sobre esses medicamentos, ele respondeu: “Você é de São Paulo? Quantas vezes você já foi atendida na farmácia pelo farmacêutico? Você entra na farmácia, pega o remédio que quiser e nunca fala com o farmacêutico. Na verdade, aqui em Brasília, e no Brasil todo, você acessa qualquer medicamento isento de prescrição. Estou falando dos medicamentos seguros, que são os MIPs. Não estou falando dos medicamentos prescritos. Eu tenho uma sugestão legal para eles. Se eles quiserem, podem criar o farmacêutico digital, ou seja, assim você vai acessar o farmacêutico. Pelos menos isso vai te informar, e seria muito mais presente do que esse farmacêutico que eles tanto falam”.

Petecão defende que essa é a tendência, mas os farmacêuticos acham que isso vai prejudicar a classe. “Eu não estou nem entrando nesse debate porque, na verdade, existe um lobby muito grande das farmácias, e eu confesso para você que eu não sabia. O pessoal está preocupado em ganhar dinheiro. Eu não estou preocupado com isso. Eu estou preocupado é que a gente possa ajudar a população. Só isso”.

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