As mulheres francesas têm acesso universal e irrestrito às pílulas abortivas; no Brasil o aborto é ilegal desde 1890.
A chamada lei "Veil" [referência à deputada, intelectual e feminista Simone Veil, militante dos direitos das mulheres na França], de 17 de janeiro de 1975, descriminalizou o aborto na França há 48 anos. As mulheres francesas têm acesso universal e irrestrito às pílulas abortivas quando desejam interromper uma gestação e o país pensa em fabricar seu próprio estoque de medicamentos. Já no Brasil, o aborto continua ilegal desde 1890.
Na década de 1940, o Brasil adotou exceções na proibição do aborto para gravidez decorrente de estupro ou incesto, ou no caso de ameaça à vida da gestante. No entanto, o aborto no país continua sendo considerado crime e pode ser punido com até três anos de prisão.
O resultado é que, de acordo com diversos relatos publicados na imprensa brasileira, o público feminino aposta massivamente no tráfico paralelo de medicamentos como o cytotec (misoprostol), uma das substâncias recomendadas pela OMS (Organização Mundial de Saúde) para o aborto medicamentoso.
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A outra é a mifepristona, que nunca teve seu uso disseminado no Brasil. Já a França se prepara para investir na produção de ambas as substâncias para seu mercado interno.
MISOPROSTOL
No início de abril deste ano, doulas e médicos em algumas regiões da França começaram a relatar que estavam tendo problemas para acessar o misoprostol, um dos dois medicamentos usados em abortos médicos no país.
"Este ano, o MisoOne acabou muito rapidamente. Depois compramos o Gymiso e logo ele não estava mais disponível na França", disse à RFI Isabelle Louis, que trabalha para o Planning Familiale em Paris, uma clínica de saúde reprodutiva pública que fornece contracepção e abortos na cidade e região.
MisoOne e Gymiso são os nomes dos dois medicamentos de misoprostol autorizados na França, ambos produzidos pela mesma empresa farmacêutica, a Nordic Pharma. Quando a farmácia de Isabelle não conseguiu obter o medicamento, "ficamos sem saber como fornecer o aborto às mulheres", declarou.
O misoprostol, juntamente com a mifepristona, é usado em abortos medicamentosos, que representaram a maioria - 76% - dos procedimentos de interrupção de gravidez na França em 2021.
Em abril deste ano, como os farmacêuticos em algumas partes da França não conseguiram obter o misoprostol, gerou-se uma preocupação porque os abortos medicamentosos são permitidos somente até sete semanas de gravidez.
Isabelle Louis se lembra de não ter comprimidos suficientes para uma paciente, que teve de ser encaminhada para outro médico do outro lado da cidade. "Nosso médico parceiro tinha mais um comprimido sobrando. Então, passamos o endereço à nossa paciente e ela teve que atravessar todas essas barreiras para ter acesso aos seus direitos", disse.
IMPACTO DA "GUERRA DO ABORTO" NOS EUA?
A escassez de misoprostol na França ocorreu no momento em que a Suprema Corte dos Estados Unidos estava julgando um caso que poderia proibir a aprovação federal do medicamento mifepristona - parte de uma ação de ativistas conservadores antiaborto.
Os fornecedores norte-americanos estariam estocando medicamentos para aborto, criando uma escassez global?
Pauline Londeix, do Observatório independente para Transparência em Políticas de Drogas, que esteve envolvido no alerta às autoridades francesas sobre a escassez de misoprostol, disse que o que estava acontecendo nos EUA era a se considerar, mas que a França tem um problema estrutural e de longo prazo relativo à escassez de medicamentos.
"Há escassez de quase todos os remédios", disse ela à RFI. "Há escassez de insulina, antirretrovirais, medicamentos anticâncer. Há milhares de medicamentos para os quais estamos enfrentando escassez na França."
PROTEGENDO O DIREITO AO ABORTO
Os deputados e senadores de esquerda na França, preocupados em não deixar os medicamentos abortivos concentrados em um único produtor, apresentaram um projeto de lei que exigiria a produção pública de mifepristona e misoprostol "para garantir às mulheres o direito fundamental ao aborto".
Londeix vê com bons olhos as iniciativas para a produção de mais medicamentos na França e a pressão para a produção pública, mas ela é cautelosa com relação aos medicamentos abortivos.
"A produção pública é importante, mas, nesse caso específico, acreditamos que também precisamos da produção privada. Precisamos de ambos, porque se houver uma mudança de governo na França e a extrema direita, por exemplo, acessar o poder - se houver apenas produção pública, isso pode ser um problema", considerou.
Após vários avisos sobre a escassez de misoprostol em abril, o Ministério da Saúde da França respondeu dizendo que não havia escassez, apenas "tensões" sociais. Os farmacêuticos franceses conseguiram obter suprimentos do medicamento destinados à Itália. Na clínica de planejamento familiar em Paris, Isabelle Louis recebeu caixas etiquetadas em italiano, com adesivos adicionados em francês.
"Por enquanto, provavelmente estamos voltando ao normal", disse ela recentemente. "Mas não sabemos quanto tempo isso vai durar", finalizou.
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