Reduzir a elevada dependência da matéria-prima estrangeira é estratégica para a indústria farmacêutica brasileira, como indicaram os problemas de falta de insumos ocasionados pela pandemia do novo coronavírus. Setor farmacêutico discute a nacionalização da produção desses elementos. Para o médico Drauzio Varella, o mercado se acomodou com a importação dos países asiáticos, que fabricam uma infinidade de produtos por uma fração do preço que seria cobrado em outros mercados.
“Para fazer os medicamentos, as empresas preferem comprar os insumos da China e da Índia, sai mais barato trazer de lá do que fabricar aqui. A mesma coisa com equipamentos de proteção. Uma máscara sai por 80 centavos a unidade. Para quê vamos produzir isso aqui? Vai sair mais caro. A mesma coisa com os respiradores. Compra da China, muito mais fácil”, ironizou Varella durante live do ICTQ. “Vai comprar respirador agora lá. No ano passado um respirador comprado pelo Sírio-Libanês custava US$ 10 mil. Hoje não se acha por menos de US$ 40 mil ou R$ 50 mil”.
Na visão do médico, o assunto vai além da questão meramente comercial. “Não podemos deixar na mão dos outros a nossa segurança. Alguém já imaginou entregar o país na mão de um exército estrangeiro para nos proteger? E nós fazemos isso na área da saúde. Da mesma forma que não podemos alienar o exército não podemos deixar a medicina brasileira, os insumos necessários à produção de medicamentos, de equipamentos de proteção, na mão de outros países. É uma questão de soberania nacional”, salienta.
Ele lembra que o Brasil não está sozinho nesse cenário. “Os americanos estão com o mesmo problema, a ponto de eles usarem uma lei nacional de que quando baixa um avião com escala em seu território para se dirigir a outro país eles confiscam. Confiscaram respiradores. Será que não existe tecnologia nos Estados Unidos ou no Brasil para fazer esses respiradores? Fabricamos aviões, vendemos para o mundo inteiro, será que não conseguimos fazer respiradores, uma máquina que empurra o ar e solta. Precisamos ter esse tipo de previsão, do que pode acontecer quando o país deixa a saúde de lado”, assinala Varella.
De acordo com o Grupo Farma Brasil (GFB), entidade que reúne empresas responsáveis por 30% do volume de medicamentos fabricados no Brasil, o País importa entre 80% e 90% dos Insumos Farmacêuticos Ativos (IFAs) consumidos pelos laboratórios farmacêuticos instalados no território nacional. Desse total, cerca de 60% vêm da China, seguida pela Índia, Alemanha e Suíça. Uma realidade que não é apenas brasileira. Maior economia do mundo, os Estados Unidos importam 72% dos IFAs que precisam, segundo levantamento do GFB.
Empresas de vários setores buscam reduzir a submissão do fornecimento de insumos do exterior, especialmente o asiático. A pandemia teve grande impacto na produção da China e da Índia, provocando restrições nas exportações dos ingredientes, atraso nas entregas e alta de preços devido à maior demanda internacional. Isso demonstrou o choque que a dependência estrangeira pode causar em momentos de crise, como foram os casos de falta de equipamentos de proteção (máscaras, aventais, luvas etc.), respiradores, além dos IFAs. O Exército brasileiro anunciou recentemente, por exemplo, a interrupção na fabricação de cloroquina por falta de insumos.
Indústria busca novos caminhos
De acordo com o presidente do Conselho de Administração do GFB, Dante Alário Júnior, e o presidente-executivo da entidade, Reginaldo Arcuri, em artigo para a Folha de S. Paulo, o planejamento de médio e longo prazo não pode ser ignorado quando se avalia a estratégia de segurança e defesa nacional.
“Uma estratégia na qual as tecnologias mais avançadas na área farmacêutica estejam também sob domínio nacional, com produtos necessários para enfrentar nossas doenças e epidemias não controladas ou que infelizmente têm retornado (dengue, malária, sífilis, tuberculose), bem como as mais avançadas tecnologias necessárias para atender a uma população cada vez mais idosa e demandando medicamentos mais sofisticados”, afirmam os autores do artigo.
De acordo com os executivos do GFB, num contexto em que as relações internacionais são pautadas por um complexo jogo de interesses e normas que estimulam ou limitam a capacidade de atuação dos países, o desenvolvimento da indústria nacional de defesa, orientada para a obtenção da autonomia em tecnologias indispensáveis, deve ir além das questões relacionadas diretamente à área militar. “Na área farmacêutica é preciso avançar na pesquisa e inovação de novos produtos, aproveitando a biodiversidade brasileira, aproximar mais das áreas universitárias de pesquisa aplicada e ampliar a produção de IFAs, reduzindo a dependência externa”.
Quem também tem visão semelhante é o presidente da Associação Brasileira da Indústria Química, Ciro Marino. “Na cadeia farmoquímica, o País não produz quase nada, 95% dos insumos são importados. E há os fertilizantes. São agroquímicos, estamos falando de biossegurança. Temos debatido nos ministérios da Defesa, da Economia e da Cidadania, mas a Defesa pegou para si a questão. Algumas cadeias que foram interrompidas podem voltar. O mundo está vendo que precisa se reindustrializar e desconcentrar produção”, afirmou Marino ao Globo.
Para a diretora de Assuntos Regulatórios e Acesso ao Mercado da EMS, líder no setor farmacêutico brasileiro, Solange Dallana, essa não é uma discussão que só ocorre no Brasil. “É mundial, devido às dificuldades de importação e à volatilidade cambial. No curto prazo temos estoques, mas, para médio e longo prazos, há uma discussão que é inevitável em relação ao complexo industrial”, disse ao Globo.
Solange afirmou, ainda, que sua empresa, juntamente com as demais do setor, estão debatendo que produtos são essenciais para o País, para os quais faz sentido criar uma política de nacionalização e quais poderiam ser exportados.
Alguns segmentos estão avançando
“Devido à elevada complexidade e ampla diversidade de tecnologias existentes no setor farmacêutico, nenhum país no mundo é autossuficiente. Todos precisam importar medicamentos e insumos, mesmo os países mais modernos e inovadores”, ponderou em nota ao Portal do ICTQ a Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma).
Mas a entidade concorda que, com a expressiva alta recente do dólar, a indústria farmacêutica atuante no Brasil foi impactada. Por conta disso, juntamente com os desafios impostos pela pandemia e seu reflexo na economia mundial, “está levando o setor farmacêutico a reavaliar estratégias e ações para prever possíveis riscos e, assim, buscar soluções para sempre garantir o abastecimento de medicamentos no País”.
A Interfarma acrescentou que, para lidar com possíveis interrupções no fornecimento de insumos farmacêuticos (IFAs), como tem ocorrido em decorrência da pandemia, a RDC 348/20 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), publicada em 18 de março, conferiu celeridade à troca de fornecedores de IFAs pelas empresas produtoras, “minimizando os impactos na produção”.
O debate sobre a redução da dependência do fornecimento de insumos do exterior também chegou às empresas estatais, que avaliam positivamente o movimento. O diretor do Instituto de Tecnologia em Fármacos da Fundação Oswaldo Cruz (Farmanguinhos/Fiocruz), Jorge Mendonça, afirmou ao jornal que tem capacidade de suprir o mercado brasileiro, caso as pesquisas apontem essa necessidade.
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“A crise pode nos levar a repensar o modelo e a valorizar a importância da pesquisa e da produção farmacêutica no País. Sabemos que vivemos em um mundo globalizado, e isso traz vantagens, mas queremos ter uma dependência externa tão grande?”, questionou Mendonça.
Algumas cadeias foram remontadas em tempo recorde. A explosão de demanda pelo álcool em gel fez renascer a indústria de espessante no País, de acordo com o presidente da Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos, João Carlos Basílio.
“No Brasil, o produto era fabricado por pequenas e médias empresas, o restante era importado. Com esse boom no consumo, ficamos sem matéria-prima. Conseguimos produzir o insumo no Brasil, e o fornecimento está sendo normalizado. O preço vem caindo para o consumidor. Aconteceu numa escala muito rápida”, disse o executivo ao Globo. “Teremos condições de produzir 31 bilhões de frascos por ano. Poderemos exportar. Houve uma reversão completa no fornecimento”, completou.
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