Em qualquer órgão do corpo humano que o câncer atingir, independente da classe social do paciente, seu diagnóstico segue carregado, culturalmente, com o estigma da sentença de morte. Isso é assustador, tanto para o paciente como para os que o rodeiam, principalmente para os familiares, que travam uma luta árdua emocional para encarar o tratamento e chegar à cura da doença.
O farmacêutico oncológico é fundamental no tratamento do câncer, por ser responsável pelo ciclo da assistência farmacêutica que compõe a seleção e aquisição dos medicamentos, a manipulação dos quimioterápicos antineoplásicos e a dispensação e assistência aos pacientes.
É imprescindível falar que as drogas-alvo e a imunoterapia representam uma nova e eficiente abordagem do câncer, aumentando a sobrevida e a qualidade de vida dos pacientes, inclusive daqueles em estágios avançados da doença. Nunca é demais lembrar que, quando detectada no início, ela possui altas chances de cura.
De acordo com o farmacêutico, especialista em Gestão da Assistência Farmacêutica e professor do ICTQ - Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico, Josué Loureiro, o estigma do câncer começa, antes de tudo, com o preconceito que as pessoas têm até em pronunciar as palavras câncer, tumor e cancro. Ele acredita que esse preconceito é um advento cultural, que vem arraigado na sociedade desde muito tempo.
“Historicamente, a evidência mais antiga do relato do câncer vem de oito mil anos antes de Cristo, tendo o osteosarcoma (tipo de câncer ósseo) como o relato mais antigo. Entretanto, foi a partir de Hipócrates, pai da Medicina, que o termo começou a se difundir pela sociedade. Assim como a lepra, que hoje tem a denominação do cientista que a diagnosticou pela primeira vez, Hansen, e para a qual foi adotada a nomenclatura de hanseníase por ser mais branda, o câncer se tornou neoplasia”, descreve Loureiro.
Menos estigma, mais informação
Conforme o professor, neoplasia se trata de uma nova formação tecidual, que se desenvolve de forma desordenada devido à falha genética celular do processo de programação natural da morte da célula, que se multiplica de forma a produzir alterações significativas e prejudiciais ao organismo.
“O maior agravo com a questão de se obter um diagnóstico de câncer é de que as pessoas acometidas por essa doença estão, de certa forma, sentenciadas à morte. Algo que aterroriza a muitos, pois ninguém está culturalmente preparado para morrer, apesar de já estar predestinado a tal iminente fato”, ressalta ele.
Já o farmacêutico, especialista em Farmacologia Clínica e Prescrição Farmacêutica e em Farmácia Clínica e Hospitalar em Oncologia, diretor técnico do Instituto de Oncologia San Giovanni e também da Associação dos Voluntários a Serviço da Oncologia em Sergipe (AVOSOS), Cláuber Emídio, reitera a opinião de Loureiro. “Atualmente, mesmo com os avanços tecnológicos que envolvem a área médica e os novos fármacos disponíveis, o recebimento do diagnóstico de uma neoplasia está enraizado na sociedade como uma representação de negatividade e de sentenças rápidas. O estigma do medo da doença e do tratamento leva muitos pacientes a apresentar dificuldade de aceitação e de ponderar resultados positivos frente ao tratamento”, conta.
Emídio relata que, dessa forma, é possível observar no paciente oncológico sequências de eventos que envolvem uma carga emocional significativa, desde o impacto do diagnóstico, com todas as crenças sociais frente à patologia, seguida de desgaste psicológico durante o tratamento. Por isso, atualmente, é importante discutir e desmistificar a doença.
“O paciente precisa ter ciência de todas as etapas do tratamento, muitas das quais apresentam reais dificuldades, mas ele deve entender, também, que o câncer não é uma sentença de morte. Para isso, toda a equipe multidisciplinar precisa estar efetivamente envolvida. Atualmente, com a terapia alvo e a imunoterapia é possível realizarmos tratamentos altamente específicos e eficazes de uma forma jamais vista no âmbito oncológico”, comemora ele.
Os altos índices de mortalidade estão diretamente relacionados ao diagnóstico tardio, quando o câncer já se encontra em estágio avançado. Ainda sobre o diagnóstico, Loureiro fala que a única certeza é que isso não é o fim da linha. “Mas, ao contrário. Pode ser, sim, um grande ensinamento, aprendizado e, principalmente, fonte de inspiração e superação para uma vida melhor e de forma mais valorizada. As pessoas evitam pronunciar a palavra câncer por, talvez, achar, em seu subconsciente, que sua língua e boca acabaram com a sua total desintegração por causa do falar ‘naquela doença’”, relembra.
Como profissional de saúde, o professor teve uma experiência única de estar na situação crucial de lidar com um familiar direto com diagnóstico de câncer maligno e, com o resultado da biópsia nas mãos, estava ciente do diagnóstico e da sua gravidade. Foi orientado pelo médico sobre como falar do diagnóstico para que o impacto fosse o mais brando possível. O familiar em questão passou por dois procedimentos cirúrgicos e recebeu alta diagnóstica há 18 anos, sem nenhum dano.
“O mais importante não é o preconceito, mas a informação, esclarecimento e apoio adequado, tanto profissional como familiar e social, para que o prognóstico seja o mais breve possível, pois a perspectiva de cura aumenta exponencialmente quando o esclarecimento e apoio em todos os âmbitos são determinantes para o processo de cura”, expõe Loureiro.
Ética e bioética
É notório que os profissionais da área da saúde estão diante de uma importante mudança de paradigma. Não se deve agir apenas baseado em aspectos técnicos. É indispensável considerar aspectos éticos que assegurem a preservação da dignidade humana. O paciente, quando procura uma instituição de saúde, deseja um profissional com competência e capacidade para reestabelecer sua saúde, todavia, ele também quer encontrar alguém que se envolva e preste total assistência para ele e seus familiares.
Quando se fala da preocupação com aspectos éticos na assistência à saúde, não se está referindo somente à normatização presente na lei ou nos códigos de ética profissional. Inclui-se, também, o respeito ao paciente como cidadão e como ser social. É fundamental a adoção, por parte dos profissionais de saúde, de uma postura consciente, solidária, responsável e virtuosa.
Emídio lembra que a ética é caracterizada como um “conjunto de princípios morais que regem os direitos e deveres de cada um de nós e que são estabelecidos e aceitos numa época por determinada comunidade humana”. Já a bioética, pode ser compreendida como “o estudo sistemático de caráter multidisciplinar, da conduta humana na área das ciências da vida e da saúde, na medida em que essa conduta é examinada à luz dos valores e princípios morais”.
Segundo Loureiro, a ética e a bioética, em se tratando de oncologia, transcorrem paralelamente, uma vez que desde a suspeição de alguma forma anormal de crescimento celular, passando por um diagnóstico adequado e conciso de uma neoplasia, a forma pela qual ela deve ser tratada depende tanto do médico como dos familiares e do próprio paciente.
“Isso ocorre porque a individualidade tem de ser respeitada. Sabe-se que é algo impactante, profundo e de caráter avassalador na vida de qualquer pessoa, e que a forma com que essa informação deve ser dada e aplicada envolve várias questões legais que têm princípios fundamentados em preceitos que podem gerar graves problemas e repercutir em uma cascata de fatores e acontecimentos, que podem marcar profundamente a vida dos envolvidos no caso”, reflete o professor.
Conforme Loureiro, a ética reflete, de forma crítica, sobre o comportamento humano. Na área da saúde, especificamente, busca agir de forma autônoma, com competência para julgar e mobilizar o conhecimento para a prática democrática, com respeito ao comportamento humano e suas prerrogativas. A bioética trás plenitude de sentido e conhecimento dentro do campo das ciências da vida e da saúde. Ela orienta, de forma adequada, a expansão dos conhecimentos técnicos e científicos para o bem integral da pessoa humana e da vida, além da vida animal quando envolvida com o processo de estudos da vida humana.
Autonomia
Com o passar do tempo, os avanços tecnológicos e científicos permitiram, por exemplo, a reprodução artificial, o tratamento e a cura precoces de doenças malignas – como o câncer, o transplante de órgãos, o controle de endemias, bem como o controle e o tratamento de forma eficaz de várias doenças crônico-degenerativas e o prolongamento da vida com qualidade. Isso evidenciou a necessidade de uma nova avaliação do conceito de saúde.
A relação profissional de saúde-paciente é sustentada nos chamados três consagrados princípios bioéticos, que são a autonomia, a beneficência e a justiça. O termo autonomia é derivado do grego auto, que significa próprio, e nomos, lei, regra ou norma. A junção dos dois termos dá a ideia de autogoverno e autodeterminação para a pessoa tomar decisões que afetem sua vida, saúde, integridade físico-psíquica e relações sociais. Logo, autonomia refere-se à capacidade do ser humano de decidir o que é bom e o que causa seu bem-estar.
Ao profissional de saúde cabe o respeito da autonomia do paciente. Isso representa o respeito à dignidade humana em toda a sua essência. O princípio da autonomia se reveste de importância fundamental por se tratar, também, de aspecto moral essencial que norteia o paciente nas suas relações com o médico, com o enfermeiro, com o farmacêutico etc.
“A abrangência do conceito de autonomia visa a determinar, de forma objetiva e clara, que, por intermédio do bom relacionamento entre paciente e profissional de saúde, há a autodeterminação da pessoa em tomar decisões relacionadas a sua vida, sua saúde, sua integridade físico-psíquica e suas relações sociais. Mas, de que maneira isso realmente acontece? Por meio da liberdade de escolher as suas deliberações pela dignidade da natureza humana, acatando o princípio imperativo categórico kantiano, que afirma que o ser humano é um fim em si mesmo”, esclarece Loureiro.
Essa autonomia pode, em determinadas situações, tanto permanentes como transitórias, afetar de forma significativa a autonomia de um determinado indivíduo. Mesmo que de forma diminuída, cabendo a terceiros decidir qual a melhor escolha a ser feita em determinadas situações ou momentos cruciais da vida, cabendo o papel de decidir o destino, terapia, tratamento ou recusa de algo que possa prejudicar a saúde e demais prerrogativas.
Loureiro alerta que não se pode confundir autonomia e individualismo, pois seus limites variam de acordo com o respeito ao coletivo e ao outro. Tem-se de manifestação essencial o princípio autônomo, o consentimento livre e esclarecido. É nesse consentimento que se baseia a maioria dos tratamentos de oncologia e câncer. Segundo o Termo de esclarecimento livre e esclarecido, o indivíduo tem o direito de consentir ou recusar propostas de caráter preventivo, diagnóstico ou terapêutico que tenham potencial de afetar diretamente sua integridade físico-psíquica ou social.
O papel do farmacêutico oncológico
O farmacêutico oncológico apresenta uma importância incontestável no tratamento do câncer. Ele é responsável por todo o ciclo da assistência farmacêutica que rege, desde a seleção e aquisição dos medicamentos e a manipulação dos quimioterápicos antineoplásicos até a dispensação e assistência aos pacientes oncológicos.
A Resolução do Conselho Federal de Farmácia (CFF) 288/96, atualizada pela Resolução 565/12, define que é atribuição privativa do farmacêutico o preparo dos antineoplásicos e demais medicamentos que possam causar risco ocupacional ao manipulador (teratogenicidade, carcinogenicidade ou mutagenicidade) nos estabelecimentos de saúde públicos ou privados.
“Além do que diz respeito à avaliação de todas as características técnicas que envolvem o preparo dos medicamentos, os profissionais farmacêuticos são responsáveis por garantir a qualidade das informações e orientações sobre os procedimentos relacionados ao uso dos mesmos e descarte dos resíduos tóxicos gerados e, consequentemente, da segurança dos pacientes e dos profissionais envolvidos na terapia”, comenta Emídio.
Ele acrescenta que, inserido na equipe multidisciplinar, o farmacêutico é responsável por fornecer informações sobre farmacocinética, farmacodinâmica, formas e vias de administração, doses máximas, toxicidade acumulativa, incompatibilidades físicas e químicas com outros fármacos e estabilidade de medicamentos
O farmacêutico está envolvido em todas as etapas da cadeia que engloba a utilização do medicamento, sendo importante ressaltar, também, o processo de qualificação dos fornecedores e atendimento às exigências legais frente à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ao que diz respeito à fabricação e fornecimento dos quimioterápicos antineoplásicos.
É o farmacêutico quem deve avaliar tais informações sobre os laboratórios e distribuidores, além de analisar, tecnicamente, aspectos da farmacovigilância.
“Esses aspectos são fundamentais no reconhecimento de reações adversas causadas por fármacos e a prevenção das mesmas pode levar a uma redução do tempo de internação do paciente e diminuição da sintomatologia que ocorre após a quimioterapia antineoplásica. Assim, o papel do farmacêutico oncológico não se restringe ao medicamento, mas ao cuidado do paciente oncológico que utiliza tais medicamentos para que, dessa forma, seja obtido o melhor resultado possível dentro da posologia prescrita”, elucida Emídio.
Novas terapias para tratamento do câncer
Localizado em São Paulo, o Hospital A C Camargo Cancer Center, referência em câncer, tem realizado uma experiência precursora no Brasil. Nele, os pacientes passam a ter adicionado ao tratamento um recurso que foi denominado de ‘avatar do câncer’. Uma amostra do tumor de cada paciente é reproduzida e cresce implantada em um camundongo, sob a pele ou no órgão correspondente do animal, funcionando como um espelho da doença.
Em casos difíceis, a estratégia é preciosa. Por meio dela, os médicos podem experimentar medicamentos que podem ser mais eficazes contra aquele tumor específico. Além disso, podem observar seu comportamento, inclusive sua agressividade, de forma que o corpo do paciente fique preservado de eventuais prejuízos que as tentativas possam trazer.
“Os novos fármacos que vem surgindo para o tratamento de neoplasias específicas apresentam grandes avanços no que diz respeito à especificidade de ação e, consequentemente, menores reações adversas relacionadas ao seu uso”, fala Emídio.
A terapia alvo e a imunoterapia representam um grande marco na história do tratamento sistêmico das neoplasias malignas. No que diz respeito à terapia alvo, o fármaco irá atuar especificamente, ou quase especificamente, em receptores que são expressos por aquele tipo de tumor ou a fatores de crescimento que levam ao desenvolvimento do mesmo, segundo Emídio.
O farmacêutico completa que a imunoterapia estimula o próprio sistema imunológico do paciente a destruir as células neoplásicas, por meio de um bloqueio do processo de inibição da atividade linfocítica.
Essas terapias apresentam incontestáveis vantagens frente à utilização de agentes citotóxicos, no que diz respeito à especificidade de ação e à ocorrência de eventos adversos relacionados ao seu uso. Porém, os agentes citotóxicos ainda são altamente utilizados e de eficácia comprovada contra as células neoplásicas.
Fosfoetanolamina e a pílula do câncer
Para Emídio, o surgimento de uma nova substância que promete curar o câncer sempre irá causar grandes expectativas por parte dos pacientes, que esperam, de forma ansiosa, um tratamento menos desgastante e mais definitivo.
De acordo com o Instituto Nacional de Câncer (INCA), o câncer é o nome dado a um conjunto de mais de cem doenças que têm em comum o crescimento desordenado de células, que invadem tecidos e órgãos. Cada tipo de câncer apresenta diversos subtipos, os quais apresentam especificidades fisiopatológicas. Assim, o milagre enigmatizado com o surgimento da fosfoetanolamina, para a cura de mais de cem doenças diferentes, apresenta uma falsa expectativa das suas reais atividades.
“Para que uma determinada substância possa ser utilizada com finalidade de promoção da saúde, ela deverá passar por rígidos procedimentos definidos pela Anvisa, objetivando o cumprimento de exigências técnico-científicas para a aprovação de medicamentos, dentro de padrões éticos. Os testes realizados irão comprovar a atividade da substância para aquela específica finalidade, a segurança na utilização, a definição de doses terapêuticas a fim de evitar efeitos tóxicos e a pureza e o teor do ativo em determinada forma farmacêutica que estará sendo disponibilizada. Apenas após diversas etapas e testes clínicos, uma determinada substância estará liberada para ser utilizada”, defende Emídio.
A pesquisa clínica é dividida em quatro fases - I, II, III e IV, em que aquela determinada substância será utilizada pela primeira vez por um ser humano. Porém, previamente, ela já deverá ter sido aprovada em testes pré-clínicos, onde foram avaliadas características de segurança em animais de experimentação.
Quando a substância está classificada como segura para ser testada no ser humano, as fases de testes clínicos se iniciam e são realizadas de forma sequencial, com restrições em cada fase, até que o maior volume possível de informações sobre aquela substância seja coletado.
“A fosfoetanolamina não passou por nenhuma dessas etapas quando liberada erroneamente com a finalidade de curar o câncer, ou seja, não apresentando, portanto, segurança e atividade comprovada para sua utilização”. Assim Emídio fecha essa questão.