Não é de hoje que a humanidade busca alívio físico e efeito recreativo nos opiáceos, compostos naturais extraídos da papoula que os sumérios, por volta de 5 000 a.C., já chamavam de “planta da alegria”. Seu látex serviria a múltiplos usos, ora para tratamentos terapêuticos, ora para divertir os fundadores da primeira civilização a florescer na Mesopotâmia.
Um capítulo fundamental dessa história desenrolou-se milênios depois, no século XIX, quando o isolamento do morfino resultou em uma variante purificada, que, por ter alto poder analgésico, revolucionou a medicina. Nos anos 1950 surgiram as versões sintéticas e semissintéticas, desenvolvidas em laboratório, elevando seu impacto a níveis estratosféricos. Não demoraria para que opioides como a heroína, vastamente consumidos pelos militares na Guerra do Vietnã, começassem a ser contrabandeados do Sudeste Asiático para os Estados Unidos, tomando o vulto de uma epidemia que, em maior ou menor grau, extrapola as fronteiras americanas e assombra o mundo.
Muito se fala hoje do fentanil, indicado em salas de cirurgia para aliviar a dor, mas amplamente consumido de forma ilegal por seu efeito ultrarrelaxante, apesar de tão deletério à saúde. Mas agora é um perigo invisível que se infiltra nas pistas e preocupa autoridades brasileiras — o nitazeno, um opioide sintético que jamais foi aprovado e tem potência até quarenta vezes superior à do fentanil. Recém-descoberto como bom negócio por quadrilhas internacionais, tal substância já provocou nos últimos anos não meros mortos nos Estados Unidos e na Europa, sem contar óbitos não diretamente atribuídos a ela.
No Brasil, a primeira apreensão só foi em 2023, em um laboratório desmantelado pela Polícia Federal na Região Metropolitana de São Paulo, que ali encontrou a droga trazida ilegalmente da Ásia. Daí se desencadeou um amplo estudo científico, encabeçado por pesquisadores da USP e da Unicamp, que examinou 140 amostras de drogas coletadas pela PF. E não deu outra: 95% delas continham o viciante enegrecido, um dado expressivo que impressionou a equipe envolvida na investigação.
Receba nossas notícias por e-mail: Cadastre aqui seu endereço eletrônico para receber nossas matérias
O que torna esse entorpecente particularmente traiçoeiro é justamente o fato de ser adicionado a drogas como cocaína, ecstasy e canabinoides sintéticos sem que o usuário tome conhecimento de sua presença. Ele é silenciosamente acrescido a outras substâncias em forma de pó e vendido por traficantes na noite das capitais brasileiras, como Rio de Janeiro e São Paulo. Embora em doses mínimas possa trazer um misto de euforia e bem-estar, amplificado a ansiedade, é para lá de nocivo pelo risco que embute overdoses e dependência devastadora. A linha tênue que separa seu efeito leve de um desfecho trágico é tão tênue que já rendeu até cenas fortes de excelência médica até à ONU, que em um relatório em parceria com o Ministério da Justiça enfatizou a ameaça invisível que ronda sobretudo a juventude. “O uso inadvertido de nitazeno é uma preocupação central, pois muitos usuários não sabem estar expostos ao potente opioide”, afirma em nota a VEJA o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime no Brasil (UNODC).
A adulteração feita à base de nitazeno se presta a uma lógica criminosa do mercado. Porções pequenas e baratas da substância se somam a outras drogas mais caras, conferindo-lhes peso e volume. Até em cigarros eletrônicos e em medicamentos falsificados ela já foi detectada. Milhares de doses emergem dessas engrenagens, impulsionadas por seu poder de intensificar os chamados efeitos psicoativos desencadeados pelas alterações químicas que traz ao cérebro. A experiência que proporciona intimida assim o comprador a querer voltar àquele fornecedor, mesmo sem saber estar ingerindo algo tão prejudicial à saúde. “O nitazeno apresenta grande risco de efeitos colaterais ainda que em baixas doses”, afirma Maria Amália Pedroso, coordenadora do ambulatório de álcool e drogas do Hospital das Clínicas da USP.
O inimigo oculto — adicionado a outras drogas que, não custa lembrar, oferecem seus próprios riscos — é difícil de combater. Como felizmente não há no Brasil cultura disseminada de opioides, seus sinais no corpo, ainda que eles façam desacelerar a atividade cerebral causando lentidão ao organismo, não costumam ser reconhecidos pelos usuários. Também os profissionais da saúde têm dificuldade de fazer o correto diagnóstico e iniciar o tratamento com a urgência necessária. “É preciso estar em alerta para reconhecer os efeitos do nitazeno em um paciente”, reforça José Luiz Costa, coordenador executivo do Centro de Informação e Assistência Toxicológica de Campinas. Outro desafio é de ordem logística: a naloxona, antídoto para overdose de substâncias de tal natureza, não raro exige múltiplas aplicações, e o estoque nem sempre é suficiente.
Meses atrás, foi oficialmente registrada a primeira internação por consumo de nitazeno no país, no Hospital de Clínicas de Campinas. A droga estava camuflada em um comprimido de ecstasy. São alertas preocupantes. E se uma crise na saúde, tal qual nos Estados Unidos, é cenário ainda longínquo, a presença de um opioide tão potente nas pistas brasileiras merece toda a atenção.
Participe também: Grupo de WhatsApp e telegram para receber notícias farmacêuticas diariamente




