A equipe de reportagem do ICTQ – Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico comprovou que um médico brasileiro está comercializando receitas de medicamentos controlados por meio de um aplicativo que funciona como um cardápio digital de substâncias restritas. O usuário escolhe o medicamento, paga um valor fixo e recebe a prescrição assinada em poucos minutos, sem consulta, sem histórico, sem prontuário e sem qualquer ato médico que justifique a emissão.
Para verificar o funcionamento do esquema, um produtor do ICTQ (cuja identidade está preservada por segurança) realizou três compras distintas dentro da plataforma. Em todas elas, a receita chegou por e-mail imediatamente após o pagamento, contendo o nome e o número do CRM do responsável técnico: Pedro Henrique Pelissari, CRM 33528/PR, especialista em clínica médica e reumatologia.
As prescrições obtidas incluem classes terapêuticas que, pela legislação sanitária brasileira, exigem rigor absoluto de acompanhamento: antidepressivos, medicamentos de uso para emagrecimento (como análogos do GLP-1 em caneta) e substâncias de controle especial, incluindo antibióticos e hormônios anabolizantes. Em todos os casos, o aplicativo permitiu que o usuário simplesmente escolhesse a molécula e a dose desejada, como se estivesse encomendando um produto em loja virtual.
O ICTQ confirmou que as três receitas estão arquivadas e disponíveis para auditoria jurídica.
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Como funciona a compra dentro do aplicativo
A dinâmica é simples: basta digitar o nome do medicamento, selecionar a posologia e pagar uma taxa fixa, em média R$ 39,99. Imediatamente, a receita chega assinada digitalmente em nome de Pedro Henrique Pelissari. Algumas prescrições incluem inclusive instruções pré-formatadas ao farmacêutico para a dispensação, como se fossem documentos clínicos legítimos. Não há triagem, não há teleconsulta, não há abertura de prontuário, não há interação com o médico.
Esse processo contraria de forma direta as normas que regem a assistência à saúde, que exigem avaliação individualizada, registro clínico, responsabilidade técnica e justificativa terapêutica para qualquer prescrição, especialmente quando envolve substâncias de controle especial.
O aplicativo oferece abertamente categorias inteiras: antidepressivos, benzodiazepínicos, antibióticos, anabolizantes, tirzepatida e medicamentos classificados nas listas A, B e C da Portaria 344/1998. Não há limite de quantidade e não há bloqueio quando o usuário seleciona combinações perigosas entre si. O produtor do ICTQ comprou, em horários e dias diferentes, três classes de medicamentos restritos - todas imediatamente liberadas. Elas são:
- Tirzepatida 2,5mg/0,5ML – 3 caixas (12 canetas)
- Amoxicilina + Clavilanato 875MG + 125MG – 1 caixa (14 comprimidos)
- Venlafaxina 100 MG – 2 caixas (60 comprimidos)
Embora entidades médicas costumassem adotar posicionamento rígido contra a prescrição farmacêutica, alegando defender o ‘ato médico’, o caso revelado por esta investigação poderia expor um paradoxo: enquanto farmacêuticos seriam cobrados e fiscalizados por práticas reguladas e respaldadas em lei, um modelo de prescrição automática (supostamente conduzido por médico, sem consulta, sem prontuário e sem avaliação clínica) operaria sem a mesma vigilância institucional. A discrepância sugeriria uma incoerência entre o discurso de proteção do ato médico e a fiscalização efetiva dessas práticas.
O que dizem as normas e que crimes podem estar caracterizados
A prática verificada violaria diretamente vários dispositivos sanitários e éticos, entre eles a Portaria 344/1998, a Lei 5.991/1973 e as regras sobre prescrição de medicamentos sob controle especial. Além disso, a ausência de consulta, prontuário e anamnese estaria contrariando a exigência de ato médico efetivo, previsto nas diretrizes de telemedicina e no Código de Ética Médica.
Juridicamente, a conduta poderia se enquadrar em potenciais crimes, incluindo:
– emissão de documento falso ou ideologicamente inverídico;
– infração sanitária com risco à saúde pública;
– exercício irregular da medicina ao emitir prescrição sem ato clínico;
– facilitação de acesso ilegal a medicamentos controlados.
O impacto sanitário e o risco populacional
O modelo de prescrição automática romperia completamente o mecanismo de proteção do paciente. Quando antidepressivos, anabolizantes, antibióticos e hormônios são liberados sem avaliação clínica, os riscos ultrapassam o indivíduo e atingem a saúde pública: resistência bacteriana, efeitos colaterais graves, interações medicamentosas perigosas e uso indevido de substâncias com alto risco de dependência.
O modelo também poderia prejudicar médicos sérios, que seguem protocolos, assumem responsabilidade técnica e mantêm prontuário, enquanto um aplicativo substitui o ato médico por uma transação automatizada.
A denúncia e a preservação da fonte
A reportagem confirma que o esquema existe, funciona de forma contínua e foi comprovado por meio de três compras independentes realizadas por profissional do ICTQ. Todo o material obtido, sejam as receitas, assinaturas digitais e cópia integral do fluxo de compra, está protegido em arquivo interno.
O objetivo não é expor a fonte, mas revelar um mecanismo que viola normas sanitárias, contorna a fiscalização e coloca a população em risco direto, ao disponibilizar medicamentos controlados de maneira indiscriminada.
O que está em jogo
Trata-se de um caso que ultrapassa disputas profissionais e expõe um problema estrutural: quando a emissão de receitas se transforma em produto comercial, o paciente deixa de ser cuidado para se tornar cliente. E quando medicamentos controlados são liberados sem ato médico, o risco ultrapassa a esfera individual e atinge toda a saúde pública.
Box – Passo a passo da venda de receitas controladas
1. Acesso ao aplicativo
O usuário entra no aplicativo de venda de medicamentos controlados, que exibe um catálogo organizado por classes terapêuticas, incluindo antidepressivos, anabolizantes, antibióticos e medicamentos para emagrecimento.
2. Escolha do medicamento
Basta digitar o nome da substância ou selecionar na lista. O sistema permite escolher dose, forma farmacêutica e quantidade, como em um e-commerce comum.
3. Inclusão de dados pessoais
O aplicativo solicita apenas nome completo, e-mail e CPF. Não há qualquer formulário clínico, anamnese, histórico de saúde ou questionário de contraindicações.
4. Pagamento imediato
O usuário paga via Pix um valor fixo (R$ 39,99) independentemente do tipo de medicamento escolhido. O pagamento confirma automaticamente o pedido da “consulta”.
5. Emissão automática da receita
Em poucos minutos, o sistema envia por e-mail uma receita digital assinada pelo médico Pedro Henrique Pelissari (CRM 33528/PR). Não há teleconsulta, vídeo, chamada, interação com profissional ou abertura de prontuário.
6. Receitas com instruções para o farmacêutico
Alguns documentos incluem orientações padronizadas para a dispensação, simulando legitimidade clínica.
7. Arquivamento das evidências
As três receitas adquiridas pelo produtor do ICTQ, de classes distintas e todas controladas, estão arquivadas internamente e à disposição do departamento jurídico.
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