O imunologista, Roberto Zeballos; o infectologista, Francisco Cardoso; e o neurologista, Paulo Porto de Melo; tornaram-se, nos últimos meses, figuras de grande alcance nas redes sociais ao defenderem a existência da chamada ‘síndrome pós-spike’: uma condição que, segundo alegam, seria provocada pela exposição à proteína spike tanto durante a infecção por Covid-19 quanto após a aplicação de vacinas de RNA mensageiro.
A hipótese foi apresentada por eles em um relato clínico com apenas cinco pacientes, publicado, e posteriormente retirado, pela revista IDCases, e desde então tem sido utilizada como base para cursos pagos, consultas particulares de alto valor e recomendações terapêuticas sem aval científico.
Apesar de o trabalho não comprovar causalidade, não apresentar grupo controle e se limitar a descrever análises retrospectivas de prontuários, os três médicos transformaram a tese em conteúdo recorrente nas redes. Juntos, eles acumulam milhões de visualizações em publicações que associam a ‘síndrome pós-spike’ a uma ampla gama de sintomas, muitos deles já conhecidos e estudados no contexto da Covid longa (uma condição real, reconhecida internacionalmente, mas que não tem relação comprovada com vacinas).
A proposta desses médicos ganhou repercussão nacional ao sugerir que vacinas de mRNA poderiam induzir sintomas crônicos e graves, hipótese rejeitada de forma unânime por autoridades sanitárias internacionais. Apenas após o crescimento desse debate nas redes é que o conteúdo foi analisado e contestado por especialistas independentes e instituições regulatórias, que apontaram falhas graves na metodologia, ausência de evidências clínicas e risco de estimular tratamentos sem comprovação, de acordo com o jornal Estadão que, em sua cobertura recente, revelou a extensão desse movimento digital e o faturamento associado ao tema.
Ministério da Saúde prepara ações contra profissionais que lucram com conteúdo antivacina
Paralelamente à escalada dessas narrativas, o Ministério da Saúde anunciou que prepara quatro frentes de atuação contra médicos que disseminam conteúdo antivacina e comercializam cursos, consultas e protocolos terapêuticos sem qualquer base científica. Entre as medidas, está prevista a representação criminal na Justiça, além da articulação com conselhos profissionais e setores de fiscalização.
A iniciativa surge após investigações que demonstraram que profissionais de saúde têm monetizado a ideia da ‘síndrome pós-spike’, oferecendo abordagens pagas que prometem ‘tratar’ efeitos atribuídos, sem comprovação, às vacinas.
A tese que sustenta a narrativa digital
O estudo assinado por Zeballos, Cardoso, Porto de Melo e outros quatro colaboradores descrevia cinco mulheres atendidas em uma clínica privada de São Paulo (SP). Algumas delas sequer haviam tomado vacinas contra a Covid-19; outras tinham histórico de infecção pela doença. O trabalho, no entanto, tratava como estabelecida a existência de uma nova síndrome, supostamente causada pela proteína spike, e sugeria que uma combinação de medicamentos, incluindo probióticos, antibióticos, ivermectina e nattokinase, teria levado à melhora das pacientes.
Nenhum desses tratamentos possui aprovação para essa finalidade. Além disso, a presença da proteína spike não foi confirmada laboratorialmente em nenhum dos casos, seja por infecção ou por vacinação. O desenho adotado é reconhecido como o nível mais baixo de evidência científica, uma vez que relatos de caso são apenas geradores de hipóteses e não sustentam conclusões sobre eficácia de terapias.
A retração da revista e as críticas metodológicas
A Elsevier, que publica a IDCases, removeu o artigo após receber críticas de pesquisadores independentes. Na nota de retratação, a editora alertou que a divulgação do estudo poderia incentivar o uso prematuro de terapias não testadas e disseminar interpretações equivocadas sobre vacinas. Destacou ainda que não há evidências empíricas que sustentem qualquer ligação entre vacinas de mRNA e a suposta síndrome descrita no artigo.
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Órgãos regulatórios reiteraram a inexistência de comprovação científica.
– A Agência Europeia de Medicamentos (European Medicines Agency — EMA) classificou o estudo como “muito pequeno” e “sem metodologia robusta”.
– A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) enfatizou que os termos “síndrome pós-spike” e “spikeopatia” não são reconhecidos pela comunidade científica e não possuem validação internacional.
– A Organização Mundial da Saúde (World Health Organization — OMS) declarou que não existe evidência de que vacinas de mRNA causem sintomas semelhantes à Covid longa e reforçou que milhões de vidas foram preservadas graças à vacinação.
– A Food and Drug Administration (FDA) e outras autoridades regulatórias internacionais não reconhecem qualquer entidade clínica associada ao termo proposto pelos médicos brasileiros.
A contradição entre ausência de evidências e oferta comercial
Mesmo após a retratação, os três médicos continuaram a divulgar a tese nas redes.
Zeballos, que possui mais de 900 mil seguidores, publicou dezenas de vídeos associando a suposta ‘spikeopatia’ a quadros como câncer, tromboses, inflamações sistêmicas e até mortes súbitas. Em vários desses conteúdos, seguidores perguntam como ter acesso ao protocolo, e o médico responde indicando o estudo como referência ou recomendando acompanhamento médico pago.
Além dos vídeos, protocolos terapêuticos inspirados no artigo passaram a ser vendidos online, em forma de suplementos alimentares que prometem “eliminar proteína spike do organismo”. As mesmas formulações contêm ingredientes citados no artigo, como nattokinase, cuja eficácia para esse uso não é reconhecida por nenhuma agência de saúde. Os produtos são anunciados entre R$ 160 e R$ 180.
Os três médicos também comercializam cursos, alguns apresentados como “conteúdos proibidos”, com valores que chegam a R$ 685. As consultas particulares variam de R$ 1,5 mil a mais de R$ 3 mil, com promessas de “detox vacinal” e outras aplicações que não possuem respaldo científico.
Reações da comunidade científica
Pesquisadores de instituições públicas brasileiras, como a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), analisaram o artigo e classificaram sua evidência como fraca. Especialistas apontaram problemas como:
– ausência de grupo controle;
– viés de seleção;
– uso simultâneo de diversos medicamentos, impedindo associação causal;
– falta de comprovação laboratorial da presença de spike;
– extrapolações indevidas a partir de apenas cinco casos.
O Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças publicou revisão de literatura indicando que pessoas vacinadas têm 27% menos risco de desenvolver Covid longa. Outros estudos citados por organizações de saúde corroboram que a vacinação reduz hospitalizações, mortes e formas prolongadas da doença.
Divulgação contínua e impacto social
Mesmo com o estudo invalidado, Zeballos, Cardoso e Porto de Melo seguem criando conteúdo sobre a tese, posicionando-se contra a vacinação e associando imunizantes a efeitos graves sem fundamentação. Em audiência pública no Congresso, por exemplo, repetiram alegações de que vacinas gerariam uma “usina de toxina”, contrariando completamente o consenso científico global.
Esse tipo de discurso tem efeitos concretos: gera receio na população, amplia desinformação e pode reduzir a adesão a programas de imunização. Por isso, o Ministério da Saúde, a OMS, a Anvisa e demais agências reforçam que vacinas de mRNA são seguras, eficazes e fundamentais para reduzir mortes.
A resposta dos médicos
Procurados, os autores do estudo afirmaram que o trabalho é apenas um relato de casos e não pretende estabelecer protocolos. Também alegam perseguição e politização do debate. Ainda assim, seguem divulgando cursos pagos e consultas baseadas no tema, assim como a retórica de que as vacinas seriam arriscadas: afirmação que é rejeitada de maneira unânime pelos órgãos oficiais de saúde.
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