Um problema detectado há anos como uma das maiores ameaças à saúde pública global amplificou-se com a pandemia. Os antibióticos foram muito usados no tratamento da Covid-19 para evitar coinfecções de bactérias e fungos. Cientistas avaliam que isso pode levar a 'apagão' contra bactérias resistentes, revelou a BBC News Brasil.
Mesmo antes da pandemia, a situação já era preocupante em relação à resistência de bactérias e fungos. Médicos e pesquisadores atentos ao problema acreditam que o uso desenfreado de antibióticos no tratamento de Covid-19 tornará ainda mais drástico o cenário atual, em que já há falta de antibióticos capazes de combater certas doenças e micro-organismos.
Problemas corriqueiros de saúde, como pneumonia e infecção urinária, já têm seus tratamentos dificultados por conta da resistência. Há também condições de saúde mais graves afetadas pelo problema, como a tuberculose multirresistente – com resistência a pelo menos dois antibióticos, isoniazida e rifampicina.
Estudos feitos em várias partes do mundo têm mostrado que, mesmo sem eficácia e necessidade comprovadas para combater a Covid-19, antibióticos foram amplamente usados durante a pandemia. Isso poderá levar, nos próximos anos, a uma resistência microbiana ainda mais aumentada.
Uma pesquisa envolvendo 38 hospitais de Michigan, nos Estados Unidos, mostrou que 56,6% de 1.705 pacientes hospitalizados com Covid-19 logo receberam antibióticos como terapia ‘empírica’, quando não há identificação de qual bactéria ou fungo está causando infecção. Dessas pessoas, apenas 3,5% tiveram uma coinfecção bacteriana confirmada por exames.
Outro estudo, com dados de 99 pacientes tratados no hospital Jinyintan de Wuhan (cidade chinesa onde começou a pandemia), mostrou que 71% deles receberam antibióticos, mas apenas 1% teve coinfecção por bactéria constatada por exames e 4% por fungos.
Com respostas de 166 médicos de 23 países, outra pesquisa constatou que apenas 29% dos profissionais escolheram não receitar antibióticos para pacientes com Covid-19 hospitalizados em leitos, situação menos graves do que aqueles na UTI.
Segundo os especialistas, a conduta de médicos e hospitais deve ser receitar antibióticos apenas após uma infecção por bactérias ou fungos realmente ser constatada, preferencialmente por exame de cultura bacteriana e ainda exames que permitem detectar genes de resistência a certos antibióticos.
Contudo, de acordo com o médico do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, Luciano Cesar Pontes de Azevedo, que atua com medicina intensiva e de emergência, observa-se nos hospitais o uso de antibióticos com a justificativa não de tratar a infecção causada pelo coronavírus diretamente, mas sim uma eventual infecção concomitante por alguma bactéria.
“Isso vem muito do fato de que a Covid-19 é uma doença nova, e ninguém conhecia a taxa de coinfecção (por bactérias). Para influenza, a gripe comum, pode ter coinfecção em 30% a 40% dos casos. Para Covid-19, estudos têm sugerido de 5% a 7,5% de coinfecção”, afirmou à BBC Azevedo. “Quando se sabe que a taxa de coinfecção é baixa, não precisa passar antibiótico para todo mundo com Covid-19, como quem está em ambulatório, ou se tratando em casa”.
Depois dos analgésicos, a azitromicina foi o medicamento mais receitado no tratamento da Covid-19 por médicos de todo o mundo que participaram de um levantamento da Sermo, uma plataforma mundial usada por estes profissionais. O antibiótico foi prescrito por 41% dos 6,2 mil entrevistados contra o novo coronavírus.
De acordo com Azevedo, normalmente, a azitromicina é usada com antibiótico contra infecções bacterianas nas chamadas vias aéreas superiores, como no nariz e na garganta. Entretanto, para algumas doenças, já foi sugerido que o antibiótico poderia ter também efeito anti-inflamatório, controlando uma reação exagerada do sistema imunológico, que, na Covid-19, é um dos principais caminhos para quadros mais preocupantes, explicou o médico.
Também no ambiente de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) os antibióticos foram bastante prescritos – um dos mais receitados foi a associação piperacilina/tazobactama. Essa combinação é um antibiótico do tipo inibidor de beta-lactamase, uma classe incluída pela OMS na categoria mais urgente – ‘criticamente importante’ – na busca por medicamentos substitutos que consigam driblar a resistência.
Há diversas pesquisas indicando que bactérias originalmente alvos desse antibiótico, como a Escherichia coli e a Klebsiella pneumoniae, estão ficando resistentes a ele. Um tipo da Klebsiella pneumoniae, a Klebsiella pneumoniae produtora de carbapenemase (KPC), ficou conhecida como ‘superbactéria’ por produzir uma enzima capaz de combater os medicamentos mais potentes para tratar de infecções graves, com destaque para os chamados carbapenêmicos.
Azevedo lembra ainda que existe a possibilidade de uma superinfecção. “É quando, em uma fase mais tardia da Covid-19, o paciente é contaminado por germes hospitalares. Acontece fundamentalmente com pacientes de UTI, graves, que já têm um grau de deficiência do sistema imunológico”, salientou.
“Já tínhamos o problema da resistência microbiana antes. Em virtude da Covid-19, muitos antibióticos foram receitados. Em um futuro não muito distante vamos ter um problema mais sério do que já teríamos”, acrescentou à BBC o professor e responsável pelo Laboratório de Controle Microbiológico de Alimentos da Escola de Nutrição (Lacomen) da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), Victor Augustus Marin.
Segundo ele, esse ‘futuro’ está batendo à porta. “Vamos ver efeitos daqui a seis meses, um ou dois anos, quando pacientes com outras doenças chegarem ao hospital. O médico vai prescrever um antibiótico que pode não funcionar naquele paciente, ou vai aumentar a resistência (de micro-organismos presentes no grupo da pessoa)”, prevê Marin.
No cenário mais drástico, até 2050, a chamada resistência microbiana poderá estar associada a 10 milhões de mortes anuais, afirmou a Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2019. Acredita-se que pelo menos 700 mil pessoas morrem por ano devido à essa resistência microbiana atualmente.
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Preocupada com esse futuro, a OMS publicou em maio um guia para tratamento de Covid-19 que, entre outros pontos, recomendou expressamente a não utilização dos antibióticos no tratamento da nova doença em casos suspeitos ou leves. Mesmo para casos moderados, a entidade indicou que o uso só deve ser feito após indícios de uma infecção bacteriana, apurou a BBC.
“O uso generalizado de antibióticos deve ser desencorajado, uma vez que sua aplicação pode levar a taxas maiores de resistência bacteriana, o que vai impactar o volume de doenças e mortes durante a pandemia de Covid-19 e além”, diz o documento da OMS.
Mas o uso indiscriminado de antibióticos não se restringe à resistência bacteriana. Segundo Marin, receber um antibiótico sem um diagnóstico preciso pode acabar desestabilizando a comunidade de micro-organismos que existe naturalmente em nosso corpo, como na flora intestinal, formando uma ‘microbiota’.
“Em condições normais, nossa microbiota está em simbiose. Quando você ingere um antibiótico, o que causa? A disbiose – alguns micro-organismos são eliminados, enquanto outros crescem. Crescem aqueles que têm resistência, e antes estavam inibidos pelo resto da microbiota”, explicou o prefessor da Unirio.
“Dar um antibiótico sem diagnóstico é como dar um tiro de bazuca em uma mosca: pode até matar a bactéria, mas pode criar resistência em outras que já estavam no organismo (naturalmente). É preciso dar um tiro de chumbinho primeiro para ver se funciona”, conclui Marin.
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