Utilizada desde os anos 1930 para tratamento da malária, a cloroquina ganhou projeção nos últimos meses quando alguns pesquisadores passaram a considerá-la para combater o coronavírus. Isso fez surgir algumas confusões, comparando os efeitos positivos da droga em tratamentos tradicionais (como os obtidos contra malária) com a possível cura da Covid-19. Os entusiastas a elevaram à condição de panaceia (estimulada por líderes mundiais como Donald Trump); outros chegaram a dizer que ela não serve nem mais para a malária, o que é contestado pela Organização Pan-americana de Saúde, ligada à Organização Mundial da Saúde (OMS).
Em março, a OMS aprovou a realização de testes com as substâncias cloroquina e sua derivada hidroxicloroquina para tratamento dos pacientes com Covid-19. De acordo com alguns estudos preliminares, o medicamento pode ser eficaz, se combinado com outras drogas, como antibióticos, para combater o coronavírus. Contudo, não há ainda certezas sobre isso, pois as pesquisas estão em andamento e são inconclusivas.
Conhecido pelo nome comercial de Reuquinol, o medicamento foi inicialmente apontado por uma pesquisa feita por cientistas chineses. Divulgado em março, o estudo demonstrou que a combinação da hidroxicloroquina e o antiviral remdesivir, utilizado para tratar a doença ebola, foi capaz de reduzir a presença do coronavírus em uma simulação in vitro, conforme revelou a revista Exame.
Estudos in vitro apontaram que a cloroquina age em dois caminhos: tem efeito antiviral e anti-inflamatório. “Além de inibir a replicação do vírus e sua entrada na célula, a cloroquina indica ter uma ação anti-inflamatória. Isso é importante porque, para se defender do vírus, o organismo reage com inflamação. Mas se essa resposta é muito intensa, a manifestação clínica é muito grave. Ao agir nesses dois caminhos, a cloroquina poderia reduzir a gravidade da doença. Do ponto de vista experimental, faz sentido. Mas tem muito medicamento que funciona no laboratório, mas não no paciente. Por isso é preciso esperar o resultado de estudos clínicos rigorosos”, revelou à revista Veja a coordenadora de ciência, tecnologia e inovação da Sociedade Brasileira de Cardiologia, Ludhmila Hajjar.
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Além disso, resultados obtidos in vitro não significam necessariamente que irão funcionar no corpo humano. “Estudos in vitro não podem imitar perfeitamente as condições dos nossos corpos. Por exemplo, alguns medicamentos não são bem absorvidos pelo intestino e, portanto, podem não ter o mesmo efeito no corpo que é visto in vitro. Além disso, estudos in vitro não podem nos fornecer informações sobre possíveis efeitos colaterais; portanto, esses estudos não podem nos dizer o quão seguros esses medicamentos devem ser usados em pacientes com Covid-19”, informou à Veja a pesquisadora da Universidade de Oxford, no Reino Unido, e autora de uma revisão sobre testes com cloroquina para o tratamento de Covid-19, Kome Gbinigie.
Apenas três estudos finalizados
Há, até agora, 65 estudos científicos que investigam efeitos da cloroquina contra a Covid-19, sendo que apenas três foram finalizados, dois chineses e um francês, e os resultados são controversos, segundo informa o Estadão. Os estudos foram compilados por um grupo de pesquisadores que incluem os hospitais Sírio-Libanês e Oswaldo Cruz, de São Paulo, e geraram um relatório do Ministério da Saúde (MS).
De acordo com os pesquisadores, existem várias limitações e falhas nos estudos, como amostras pequenas de pacientes, falta de um grupo controle (pacientes que tomaram placebo) e ausência de metodologia duplo-cego, ou seja, quando nem pesquisadores nem pacientes sabem quais doentes estão recebendo o medicamento.
O relatório do MS aponta que as pesquisas são consideradas “pequenas e com alto risco de viés, principalmente associado à falta de mascaramento”. O termo refere-se ao problema dos chamados estudos abertos, nos quais pesquisadores e pacientes sabem quais grupos estavam tomando o medicamento e aqueles que estavam recebendo placebo, o que pode influenciar os resultados. É por esse risco de influência que o “padrão-ouro” da pesquisa clínica é o estudo randomizado, com grupo controle e duplo-cego.
De acordo com a análise dos pesquisadores, a principal divergência entre o primeiro estudo chinês e a pesquisa francesa foi observada no índice de pacientes que tiveram remissão do vírus. No estudo francês, com amostra total de 42 pacientes, 70% dos que tomaram a hidroxicloroquina tiveram diminuição da carga viral contra 12,5% do grupo controle. O estudo não era randomizado nem duplo-cego.
Já no estudo chinês, feito com 30 doentes, não foi encontrada diferença estatisticamente significativa entre os resultados dos dois grupos: o controle, inclusive, teve uma taxa de remissão viral maior do que o que tomou a hidroxicloroquina (93,3% contra 86,7%). Após 14 dias, os 30 pacientes apresentaram o exame negativo. A pesquisa chinesa era randomizada, mas aberta.
Por fim, o terceiro estudo, também chinês e com 62 participantes, mostrou que o uso de hidroxicloroquina propiciou melhora no tempo de febre, de tosse e da imagem do pulmão na tomografia, mas não mediu nem a remissão viral nem o desfecho clínico final de cura, como alta, óbito ou menor tempo de internação em UTI ou de ventilação mecânica.
“O estudo francês não é randomizado e os grupos não são comparáveis. O primeiro estudo chinês é randomizado, mas o grupo de pacientes é muito pequeno. Já o segundo estudo chinês mediu melhora de sintomas, mas não acompanhou questões mais importantes. É para se jogar fora os resultados? Não. Mas eles não têm força de recomendação para uso em todos os doentes”, afirmou ao Estadão o diretor do Centro Internacional de Pesquisa do hospital Oswaldo Cruz, Álvaro Avezum, que fez parte da equipe que supervisionou a revisão de estudos feita para o documento do MS.
Para a médica e coordenadora do Núcleo de Avaliação de Tecnologia em Saúde do hospital Sírio-Libanês, Rachel Riera, que também integrou a equipe que colaborou com o relatório, os três estudos tinham problemas nos grupos controle porque em alguns os pacientes não foram escolhidos aleatoriamente ou, quando foram, os grupos tinham perfis diferentes, o que também pode influenciar nos resultados. “Se a pesquisa não tem grupo controle ou os grupos são muito heterogêneos não é possível atribuir o resultado exclusivamente ao medicamento”, disse Rachel ao Estadão.
Importância dos estudos conclusivos
Até a pandemia do coronavírus, a cloroquina era utilizada, além de combater a malária, para o tratamento do lúpus e da artrite reumatoide. Com a Covid-19, médicos e pesquisadores em várias partes do mundo testaram várias drogas e viram na cloroquina uma alternativa para os casos mais graves. Contudo, pela rapidez com que a doença avança, ainda não tiveram a possibilidade de realizar testes conclusivos, gerando incertezas do seu real benefício.
Há, inclusive, pesquisas que apontam que a droga não é eficaz. De acordo com um estudo publicado no Médecine et Maladies Infectieuses, a hidroxicloroquina não parece ajudar o sistema imunológico a eliminar o coronavírus. “Existem outros estudos clínicos que mostraram que a droga não é eficaz contra a Covid-19, bem como vários outros vírus”, escreveu Katherine Seley-Radtke, professorada da Universidade de Maryland, nos EUA, em texto publicado no The Conversation e reproduzido pela revista Galileu. Segundo a professora, especialista em estudar medicamentos contra microrganismos do grupo dos coronavírus, além de dar falsas esperanças aos pacientes, a cloroquina tem efeitos colaterais perigosos, como taquicardia e diarreia.
Um artigo publicado na revista científica Canadian Medical Association Journal, citado pela Galileu, chama atenção para reações ainda mais sérias, como confusão mental, paranoia e hipoglicemia, e para a falta de evidências. “Apesar do otimismo e até mesmo entusiasmo de alguns para o potencial da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19, há poucas considerações sobre a possibilidade de essas drogas influenciarem negativamente o quadro da doença”, escreveu David Juurlink, cientista autor do artigo. “Por isso, precisamos de melhores evidências para usar esses medicamentos rotineiramente no tratamento de pacientes com a Covid-19”.
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Somente o aprofundamento dos estudos científicos irá revelar o papel da cloroquina na cura da Covid-19. Nos casos de sucesso em que ela foi usada associada a outras drogas não se tem claro ainda quem ajudou mais a vencer a doença. O que muitos pesquisadores avaliam é que dificilmente a droga isoladamente poderá ser a solução, sobretudo pelo riscos associados a ela. Resultados preliminares de um estudo conduzido pela Fiocruz no Brasil, divulgado pela Veja, mostraram que o uso de uma dosagem alta de cloroquina em pacientes com quadros graves de Covid-19 é tóxico, aumentando o risco de arritmia cardíaca e morte.
Os efeitos colaterais da cloroquina e sua derivada incluem ainda danos irreversíveis na retina, fraqueza muscular, queda acentuada no açúcar no sangue, problemas renais e hepáticos, insônia, pesadelos, alucinações e ideação suicida. Ela pode ter interações prejudiciais com medicamentos usados para tratar diabetes, epilepsia e problemas cardíacos.
“Além dos conhecidos efeitos colaterais, a cloroquina e a hidroxicloroquina podem estar envolvidas em uma gama de interações medicamentosas – fármaco-fármaco; fármaco-alimento; fármaco-doença; fármaco-status fisiológico – que merecem destaque, e ao mesmo tempo uma reflexão, principalmente para os pacientes que se encontram na fase desses testes clínicos e certamente tem sido alvos de uma polifarmácia”, destaca o farmacêutico doutor Thiago de Melo Costa Pereira.
“Para toda boa intenção na área farmacológica, surge um alerta. Costumo dizer que qualquer farmacoterapia pode ser como uma caixa de morangos: você pode até desejar os ‘vermelhinhos que brilham por cima’, mas frequentemente podem vir outros ‘podres e verdes’ escondidos logo abaixo. Portanto, não se pode dissociar os riscos iminentes das farmacoterapias investigadas contra a Covid-19”, conclui Pereira.
Outro aspecto importante sobre empregar um medicamento sem os testes definitivos são as consequências futuras do seu uso. Um exemplo emblemático dos riscos de se aprovar um medicamento sem a realização de estudos rigorosos é a talidomida, utilizada utilizado no Brasil para tratar hanseníase. Na década de 1950 seu uso foi aprovado na Europa para insônia. Segundo a revista Veja, na época, o medicamento foi considerado extremamente seguro, inclusive para ser usado por mulheres grávidas. Com o passar do tempo, notou-se que ele também era capaz de reduzir os enjoos matinais durante a gravidez e passou cada vez mais a ser prescrito para grávidas. Anos depois descobriu-se que a talidomida causava deformações físicas em bebês, além de outros graves efeitos colaterais. O medicamento foi proibido em muitos países, mas seu efeito podia ser visto em milhares de crianças nascidas com deformidades.
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