Na onda das inúmeras notícias sobre os malefícios do cigarro eletrônico que estão estampando manchetes ao redor do mundo, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) decidiu conclamar à classe médica que forneça informações e que faça notificações sobre o tema. No entanto, a Agência se esqueceu de incluir o farmacêutico no protagonismo dessa ação, já que ele é um dos personagens de maior acesso aos pacientes tabagistas e àqueles que utilizam os chamados dispositivos eletrônicos para fumar (DEFs).
No final do ano, a Agência lançou uma nota, em seu site, avisando da disponibilização de um formulário específico destinado a médicos de todo o País, pelo qual esse profissional pode fornecer informações sobre os casos identificados.
A justificativa é que os dados serão usados em análises científicas e sanitárias que ajudem na elaboração de políticas públicas de controle do tabagismo. O objetivo seria evitar uma crise de saúde no Brasil, como a que tem sido noticiada nos Estados Unidos, onde o mercado desses DEFs já movimenta U$ 1,7 bilhão (quase R$ 7 bilhões), com cerca de mais de 9 milhões de vapers (como são chamados os usuários de cigarros eletrônicos).
Lá, esses DEFs têm sido relacionados a uma síndrome respiratória que teria matado 12 usuários em pouco menos de um mês, quando 805 casos foram registrados em 46 dos 50 estados americanos. Essa síndrome causaria dor no peito, dificuldade para respirar e febre alta – sintomas facilmente verificados por um farmacêutico clínico no Brasil.
Segundo o farmacêutico e professor do ICTQ – Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico, dr. Ari Francisco Moreira, especialista em tabagismo, “essa nota da Anvisa foi mais médico-centrada do que saúde-centrada”.
Ele acredita que o farmacêutico não foi considerado no processo, porém, é muito comum que o paciente se abra mais facilmente com esse profissional, contando, inclusive sobre o uso do cigarro eletrônico. Neste caso, o farmacêutico deveria funcionar como um notificador também.
Há outra questão levantada por Moreira: “primeiramente, o médico notifica pouquíssimo. Em segundo lugar, se você pegar a população de profissionais médicos em proporção a de farmacêuticos, nós estamos em quantidade bem maior. Então, conseguiríamos notificar muito mais do que os próprios médicos”.
O que a Anvisa alega
Em nota destinada ao ICTQ, com exclusividade, a Anvisa afima: “O farmacêutico é um profissional de saúde e desempenha um importante papel na sociedade e no controle do tabagismo. Ocorre que, neste momento, considerando a evolução e gravidade da doença pulmonar severa associada ao uso de cigarros eletrônicos (EVALI – E-cigarette, or Vaping, product use–Associated Lung Injury), bem como o fato de que a doença usualmente demanda internação hospitalar, os médicos são os profissionais que tem o primeiro contato com os casos suspeitos e, portanto, são a escolha natural para realizar essa notificação”.
Além disso, a Agência ressalta que a ação não visou dar protagonismo a determinados profissionais, mas fora direcionada justamente para atingir o objetivo a que se propõe, que é o de identificar casos de EVALI, que necessitam de diagnóstico diferencial, para que se descartem outras formas de pneumonia.
Farmacêutico é a porta de entrada
Para o farmacêutico clínico e professor do ICTQ, dr. André Schmidt Suaiden, o o farmacêutico é a porta de entrada do paciente do Sistema Único de Saúde (SUS). Ele critica a nota da Anvisa, dizendo que o farmacêutico é o primeiro profissional de saúde de acesso à população, e está disponível em todas as farmácias. “Ele poderia fazer o seguimento dessa doença, explicando todos os malefícios do cigarro e, pior ainda, do cigarro eletrônico, que causa várias consequências aos indivíduos”.
Ele menciona que o Brasil tem pouquíssimos médicos e o atendimento é precário. Sua pergunta: como uma pessoa poderia fazer um acompanhamento para a cessação do tabagismo e a orientação do cigarro eletrônica no sistema público?
“Nós temos uma organização do Sistema Único de Saúde, do SUS, que não pode prescindir de farmacêuticos em todas as áreas. Além disso, nós temos a indústria que depende dos farmacêuticos em diversos setores. Eu vejo a profissão com uma abertura muito grande. Aquela imagem do farmacêutico atrás do balcão da farmácia é coisa do passado. É uma carreira hoje com muitas possibilidades”, falou o médico oncologista, cientista e escritor brasileiro, Dráuzio Varella, em entrevista exclusiva ao jornalismo do ICTQ, cuja matéria foi publicada no Portal de Conteúdo da Instituição, intitulada O que Dráuzio Varella está falando sobre o farmacêutico (leia matéria aqui).
Farmacêutico não é valorizado
“Um dos maiores problemas pelos quais a Anvisa não incluiu, ou não mencionou, o farmacêutico nessa nota que indica a notificação sobre os problemas causados com o cigarro eletrônico é que o farmacêutico não é valorizado. Seu trabalho não é divulgado para a população. Assim, ele não é reconhecido nem pela Anvisa e nem pelos pacientes como profissional de saúde”, critica Suaiden.
A resposta da Anvisa tenta amenizar o fato: “Esperamos contar com o auxílio dos demais profissionais de saúde, sobretudo de farmacêuticos, para que encaminhem imediatamente os casos suspeitos para o hospital ou clínica mais próxima, para avaliação e diagnóstico. Certamente, com a aquisição de novos conhecimentos sobre a EVALI, as orientações sobre estes casos serão atualizadas”.
Suaiden lembra que, quando a Avisa tinha, como presidente, um farmacêutico (ele se referiu a Dirceu Raposo de Mello), a Agência trabalhou muito bem em prol da profissão. “Recentemente, tínhamos um presidente na Agência que é médico e que, provavelmente, tem pouco conhecimento sobre nossa atuação clínica”. Ele se referiu ao cardiologista, William Dib, cujo mandato terminou, à frente da Anvisa, em 21 de dezembro de 2019.
Suaiden continua: “Eu acredito que a Anvisa não tenha considerado o farmacêutico para integrar a equipe de saúde para efetuar a notificação desse problema porque ela sequer sabe quem nós somos e o que nós fazemos. Para a Agência, nós somos apenas aquele profissional que vende o medicamento”.
Claro que Suaiden também fez a mea-culpa ao afirmar que parte disso é ocasionada pelo próprio farmacêutico. “Há muitos profissionais que, sequer, fazem esse trabalho de atendimento à população, simplesmente, por medo e por não terem conhecimento sobre o assunto, pois, na faculdade, o atendimento clínico não é abordado profundamente. Para isso, ele precisaria de uma pós-graduação”.
Formulário
Ao acessar o formulário de notificação proposto pela Agência, é fácil verificar que ele é destinado exclusivamente ao médico, com informações de avaliação clínica e condutas médicas. “Acredito que se fosse reestruturado, poderia ser um instrumento riquíssimo para a avaliação dos riscos dos dispositivos de fumo alternativos, até porque os sintomas questionados são os informados pelos pacientes. Únicos sinais solicitados são o nível de saturação com oxímetro, que o farmacêutico também pode coletar este sinal”, ressalta Moreira.
De acordo com a Agência, o formulário foi desenvolvido com o apoio da Associação Médica Brasileira (AMB) e da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT).
Vae lembrar que, em 2009, a Anvisa, por meio da RDC 46, proibiu o comércio, a importação e a propaganda dos DEF, tanto como substituto ao cigarro, a cigarrilha, ao charuto, ao cachimbo, quanto como uma alternativa ao tratamento da cessação do tabagismo.
Notificação
Moreira chama a atenção para um fato importante: “Inclusive, no site da Anvisa, o sistema Notivisa (sobre notificações) específica que qualquer profissional de saúde pode notificar”.
O Notivisa é um sistema informatizado desenvolvido pela Anvisa para receber notificações de incidentes, eventos adversos (EA) e queixas técnicas (QT) relacionadas ao uso de produtos e de serviços sob vigilância sanitária
Exemplos de notificações de eventos adversos que podem ser feitas no Notivisa:
- Incidente / evento adverso durante procedimento cirúrgico;
- Queda do paciente;
- Úlcera por pressão (feridas na pele provocadas pelo tempo prolongado sentado ou deitado);
- Reação adversa ao uso de medicamentos;
- Inefetividade terapêutica de algum medicamento;
- Erros de medicação que causaram ou não dano à saúde do paciente (por exemplo, troca de medicamentos no momento da administração);
- Evento adverso decorrente do uso de artigo médico-hospitalar ou equipamento médico-hospitalar;
- Reação transfusional decorrente de uma transfusão sanguínea;
- Evento adverso decorrente do uso de um produto cosmético;
- Evento adverso decorrente do uso de um produto saneante.
Exemplos de notificações de queixas técnicas que podem ser feitas no Notivisa:
- Produto (exceto sangue e componentes) com suspeita de desvio da qualidade;
- Produto com suspeita de estar sem registro;
- Suspeita de produto falsificado;
- Suspeita de empresa sem autorização de funcionamento (AFE).
Como é o cigarro eletrônico?
De acordo com dados publicados em uma cartilha exclusiva sobre os cigarros eletrônicos, do Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA), do Ministério da Saúde, os DEFs são aparelhos mecânico-eletrônicos alimentados por bateria de lítio. Seu interior é composto por um espaço para a inserção do cartucho ou refil, onde fica armazenada a nicotina líquida, disponível nas concentrações que variam entre zero e 36 mg/ml, ou mais em alguns casos.
O atomizador é responsável por aquecer e vaporizar a nicotina. Durante a tragada, o sensor é acionado, esse por sua vez deflagra a ação do microprocessador responsável por ativar tanto a bateria como a luz de led.
Os DEFs, atualmente, estão na terceira geração. A primeira geração é composta por produtos descartáveis não recarregáveis, com formato muito semelhante ao cigarro regular, sendo que uma luz de led simula a brasa do cigarro durante a tragada. São comercializados com ou sem nicotina. Disponíveis em cores vibrantes, são também conhecidos como e-hookah ou shisha-pen e, na Holanda, como kindersigaret (cigarros de crianças).
Na segunda geração, encontram-se produtos com bateria recarregável, nos quais os cartuchos podem ser substituídos por outros pré-cheios de nicotina líquida. Alguns, semelhantes a canetas (pen-style), permitem a regulagem da duração e do número de tragadas.
A última geração de DEF não se assemelha ao cigarro regular e também é conhecida por tank, por conter um reservatório ou tanque para ser preenchido com nicotina e também com outras drogas, como a maconha líquida. São recarregáveis e facilmente manipuláveis para a emissão de maior quantidade de vapor.
Ao tragar, os vapers absorvem os vapores gerados a partir de soluções conhecidas como e-liquids ou e-juices que contêm solventes (os chamados e-liquid base), além de várias concentrações de nicotina, água, aromatizantes e inúmeros outros aditivos. Os solventes mais populares usados em e-liquids são a glicerina (geralmente de origem vegetal) e o propilenoglicol. O glicerol pode estar presente ou não nos DEFs.
Prevalência do tabagismo
Segundo a Anvisa, atualmente, as companhias de cigarros produzem aproximadamente 6 trilhões de cigarros por ano, que são consumidos por quase 20% da população mundial, sendo a prevalência de 800 milhões para homens e 200 milhões para mulheres.
Na última década, mais que 43 trilhões de cigarros foram fumados. Nesse mesmo período, mais de 50 milhões de pessoas foram mortas em decorrência das doenças tabaco-relacionadas, sendo que a maioria vivia em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento.
De acordo com a Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), do Ministério da Saúde, em 2018, o percentual total de fumantes com 18 anos ou mais no Brasil era de 9,3%, sendo 12,1% entre homens e 6,9% entre mulheres. Não há dados específicos sobre o cigarro eletrônico.
Além disso, os últimos dados oficiais da prevalência do tabagismo em adultos data de 2013 e são fruto da pesquisa do Instituto Nacional de Câncer, do Ministério da Saúde (MS). Dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) apontavam o percentual total de adultos fumantes em 14,7% naquele ano.
O MS afirma que o percentual de adultos fumantes no Brasil vem apresentando uma expressiva queda nas últimas décadas em função das inúmeras ações desenvolvidas pela Política Nacional de Controle do Tabaco. Considerando o período de 1989 a 2010, a queda do percentual de fumantes no Brasil foi de 46%, estimando-se que um total de cerca de 420 mil mortes foram evitadas naquele período.