Poucas circunstâncias têm o poder de transformar profundamente a humanidade em um período tão curto. Dentre essas situações, podemos citar as guerras, os desastres naturais e as pandemias, que cobram um preço muito alto, mas, inegavelmente, são catalizadores de grandes mudanças. A esses períodos circunstanciais de virada na história, em que os sistemas mudam completamente, nós podemos chamar de Ponto de Inflexão.
Vamos, aqui, dispensar o aprofundamento nas equações matemáticas que geram um Ponto de Inflexão, e vamos nos apropriar desse conceito de virada, apenas para entender que, em determinados períodos da história, as circunstâncias vão determinar uma mudança disruptiva para todo o sistema normatizado. Para tal fim, consideramos o setor de educação, que assim como os outros de relevância social, sofrem reflexos diretos dessas mudanças estruturais e de comportamento na sociedade.
Em fevereiro de 2020, os prédios das faculdades estavam lotados de alunos iniciando um novo semestre. Em junho deste mesmo ano, quase a totalidade dos cursos de Farmácia no país, estão realizando suas aulas e estudos por meios digitais e remotos – logo, salas de aulas vazias. Surgem alguns contrastes: As universidades públicas, talvez em um ato de negação da nova realidade imposta, simplesmente fecharam suas salas de aulas. Por outro lado, as instituições privadas, até por uma questão de sobrevivência, estão recorrendo ao Zoom e outras plataformas digitais para aulas ao vivo e conteúdos gravados.
Com essa mudança forçada na forma de ensinar e estudar, mesmo que temporariamente, um fantasma bateu à porta dos conservadores – e aqui estou me referindo a acadêmicos, professores, instituições e entidades da classe. A dita graduação de Farmácia EaD dominou o primeiro semestre de todos os acadêmicos em estudo, claro, por força das circunstâncias, mas criou um precedente preocupante para os ortodoxos do quadro negro (ainda que como tais, sejam mestres brilhantes).
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Como é a graduação em Farmácia EaD
É importante ressaltar que nunca existiram, no Brasil, cursos de graduação em Farmácia 100% à distância, autorizados pelo Ministério da Educação (MEC) – Apesar de que no Ministério existe apenas duas modalidades, EaD ou Presencial. Os cursos ditos EaD da área de saúde são na prática todos semipresenciais, e isso em 2019 já bastava para o meu protesto, e também para o seu.
O Conselho Federal de Farmácia (CFF) chegou a proferir a bravata de que alunos de Farmácia EaD não seriam reconhecidos e nem inscritos no sistema. Mas, reafirmando... não existe um curso 100% EaD em Farmácia, logo, a entidade estava se referindo aos alunos do semipresencial. Fato curioso é que o conselho não tinha, e não tem, prerrogativa para reconhecimento ou não de cursos superiores, uma vez que essa atribuição legal é do MEC. Ademais, nenhum certificado de graduação pode ser diferenciado como presencial ou EaD semipresencial por força de resolução do Ministério da Educação.
Engodos e desinformações à parte, o fato é que em 2019 erámos unânimes ao dizer: “Farmácia EaD NÃO!”. Nossa rejeição natural ao sistema de ensino, com parte do conhecimento sendo transmitido em plataformas digitais, estava baseada, principalmente, na nossa experiência e modelo educacional predominante até então. Mas veio a pandemia...e olhem só como estamos estudando no primeiro semestre de 2020!
Nesse novo normal, no mínimo, as próximas dez gerações de farmacêuticos terão passado por, pelo menos, um semestre de ensino 100% a distância na faculdade. Ressalto que existem exceções. As universidades públicas estão paralisadas e com as aulas suspensas. Então, você pode me perguntar: o atraso na formação desses acadêmicos de universidades públicas vai causar um apagão de novos profissionais nos próximos anos? A resposta é não! A maioria dos acadêmicos de Farmácia está no sistema de ensino privado.
Diante disso tudo, desde março de 2020, o silêncio das entidades sobre o tal curso de Farmácia EaD chega a ser palpável. Podemos observar, também, professores conservadores, das faculdades privadas, negando que estão dando aulas a distância - afirmado que não é EaD, mas aulas remotas...e tudo isso nos remete a uma verdade: mudar dói, mas não mudar é fatal!
Pessoalmente, estou sentindo a dor da mudança. Minha primeira formação foi em Administração de Empresas e, agora, estou no quinto período de Farmácia, estudando química farmacêutica e medicinal, farmacognosia, primeiros socorros, epidemiologia, dermocosméticos, gestão de sistemas e serviços de saúde, tudo em plataformas digitais a distância. Estou gostando? Nem um pouco! Mas a dor da mudança não para por aí.
Com a responsabilidade de continuar entregando conhecimento aos mais de cinco mil farmacêuticos em especialização presencial do ICTQ, em três semanas tive que quebrar meus paradigmas, e juntamente com o meu time de professores, gravamos mais de 800 horas de aulas para distribuir em plataformas digitais no período da pandemia.
Está sendo doloroso porque todas essas mudanças me tiraram da minha zona de conforto. Mas...essas mudanças deveriam incomodar tanto assim? Tenho absoluta certeza de que não! Porém, estamos falando de um dos mercados mais tradicionais e conservadores em todo o mundo. Busque no Google imagens de alunos em uma sala de aula em 1920... Você vai se assustar com as semelhanças das nossas salas de aulas até janeiro de 2020.
Quando eu precisei resetar meus pré-conceitos para reaprender o sistema de ensino (como instituição) e aprendizado (como acadêmico de Farmácia), curiosamente revisitei o meu passado e recordei que, no princípio da minha carreira, eu tive uma experiência com o ensino a distância.
Senta que lá vem história...
O ano era 2000. Trabalhando desde os 13 anos, aos 17, eu estava no primeiro emprego formal com carteira assinada. Era uma empresa agroindustrial que abatia dez caminhões de frango a cada madrugada com um turno que começava às 23h e finalizava às 7h. As minhas mãos estavam sempre inchadas com os cortes, afinal de contas, pendurar frango na linha de produção para morrer, não é para qualquer um...é para os fortes mesmo!
Foi com o salário mínimo desse emprego que eu paguei o curso de auxiliar administrativo, feito a distância, por correspondência, via correios, no Instituto Universal Brasileiro. Digamos que aqueles que se recordarem dessa ilustre empresa presente em dezenas de versos de revistas e jornais, viveu intensamente a leitura exclusivamente no papel e por questões de elegância, não vamos pensar na idade.
Sim! Há 20 anos o ensino a distância já estava consolidado no Brasil. E há duas décadas essa primeira formação me levou a buscar uma faculdade, me levou a empreender com 800 reais emprestados do meu pai, me levou à gestão de uma empresa que, hoje, está presente em todos os Estados brasileiros, com o maior market share do segmento em que atua. Quem disse que todo e qualquer ensino a distância ou semipresencial não presta? Ponderação antes do julgar! Nunca sabemos onde pode chegar um acadêmico de Farmácia de um curso semipresencial.
Ao revisitar o meu passado, sem perder de vista os cenários do nosso presente, cheguei a algumas conclusões e indicações sobre a formação em Farmácia e como será a entrada no mercado de trabalho para os novos farmacêuticos nos próximos anos. Sim... eu sei que predizer o futuro é uma atitude arriscada, mas é necessário. Vamos lá:
Primeiro: Não tem nada de novo acontecendo! As plataformas, os e-books, os aplicativos, as chamadas de vídeos, as salas de aulas ao vivo, as lives e todo a aparato que dão sustentação ao ensino a distância ou remoto já existiam antes de janeiro de 2020. Não usávamos por preconceito, desconhecimento, conservadorismo, falta de prática e uma série de outros fatores. Mas, como eu disse no início deste artigo, estamos em um ponto de inflexão que está acelerando um processo que já estava em curso – a modernização do sistema de ensino.
Segundo: Nunca existiu graduação em Farmácia 100% EaD, mas agora, suspendeu-se a graduação 100% presencial, pelo menos nas faculdades privadas. Um sistema de ensino híbrido que vai privilegiar a prática presencial em laboratório e o conteúdo teórico em plataformas digitais não é mais uma tendência. É uma realidade, e com amparo legal.
Se você ainda não sabe, as graduações divulgadas pelas faculdades como presenciais podem ter até 40% do seu conteúdo a distância (Portaria MEC 2.117/19). Vamos além: é provável que o conceito de “modalidade” vá desaparecer. Curso superior será isso...e ponto! E não haverá essa classificação de EaD presencial ou semipresencial, que já está arcaica.
Terceiro: Teremos uma ressignificação das metodologias e aplicação de tecnologias no ensino superior. Já está acontecendo agora: em grandes instituições de ensino em massa (como FMU e Anhembi Morumbi) são robôs que corrigem as provas. Se os professores tinham toda a razão em sala, agora as certezas estão (e estarão) cada vez mais diluídas, e o aprendizado será mútuo entre docentes e alunos em salas de aulas invertidas. A repetição exaustiva de conceitos e a decoreba não fazem mais sentido quando o conhecimento pode ser acessado a qualquer tempo e por qualquer um.
Quarto: Os conselhos de farmácia vão, sim, cumprir com a sua atribuição de registrar todos os acadêmicos formados em cursos semipresenciais (que eles dizem ser EaD) credenciados e reconhecidos pelo MEC. Não há caminhos ou possibilidades de a entidade se ausentar dessa obrigação legal. Por outro ângulo, se a entidade continuar existindo como é hoje, obviamente, ela precisará do recurso das anuidades para continuar se mantendo. Eles vão dispensar o faturamento de dez gerações profissionais? Mas nem sonhando!
Quinto: A régua vai subir. A prova de proficiência pode ser uma das estratégias que o conselho adotará em longo prazo para separar o joio do trigo. Digo a longo prazo, pois tal estratégia depende de aprovação de lei em congresso e senado, e ainda sanção presidencial. Isso não é algo que se resolve na canetada de uma resolução nessa autarquia. Não vejo o por quê não termos transparência quanto à qualidade dos acadêmicos egressos. Mas claro, com critérios que sejam de fato representativos das competências e habilidades profissionais, e não somente como uma mera prova típica de concursos. Nossa visão não é que isso sirva apenas para classificação, isso talvez seja o menos importante. O mais relevante é transformar esses indicadores como mecanismos de reorientação de capacitação profissional para as novas demandas ou reestruturação de competências profissionais.
Sexto: A régua pode subir ainda mais. Se, por um lado, o conselho, para registrar o profissional, poderá cobrar conhecimentos em prova de proficiência, por outro lado, o mercado vai cobrar visão e habilidades. O conhecimento técnico e teórico pode ser o mesmo para todos os farmacêuticos, mas o que, de fato, irá diferenciar o indivíduo nas empresas e na competição mercadológica será a visão do que cada um fará com esse conhecimento. Ou seja, ATITUDES.
Sétimo: Não faz muito tempo que as diretrizes curriculares do MEC para o curso de Farmácia foram atualizadas. Uma formação mais humanística e com um olhar direcionado também para o cuidado vai gerar um novo mindset na profissão puramente tecnicista dos últimos anos.
Concluo que nesse ponto de inflexão que ainda vivemos em 2020, os alunos, os professores, as instituições e a própria a regulação da educação no MEC não serão como antes. As mudanças que já vinham acontecendo foram turbinadas. Teremos menos professores e mais orientadores e tutores em sala de aula. Vamos perder espaço para o tradicional ensino (transmissão de conhecimento) e ganhar tempo com aprendizagem (aquisição autônoma de conhecimento e competências).
A sala de aula não será mais apenas um quadrado ou um prédio com um auditório e um slide. A nova sala de aula será onde o aprendiz está. E chamem isso do que quiserem, inclusive de EaD, mas a verdade inconveniente para os que resistem à mudança é que a curva mudou de direção no ponto de inflexão, e não há retorno.
*Marcus Vinicius de Andrade é fundador do ICTQ – Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação Para o Mercado Farmacêutico, administrador de empresas e graduando em Farmácia.
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