O Sistema Único de Saúde do Brasil (SUS), ao lado do NHS (sigla em inglês do Sistema Nacional de Saúde da Inglaterra), se projeta como um modelo de política pública invejado por países desenvolvidos na Europa e na América do Norte. Descentralizado, mas integrado, o sistema brasileiro tem um coração valente, que prova em tempos de pandemia sua capacidade de reação rápida, com universalidade e integralidade.
E não é só o ministro da Saúde que faz o SUS acontecer. Um verdadeiro exército de gestores na esfera federal, estadual e municipal, ao lado dos profissionais de saúde de todas as categorias, têm demonstrado união e coesão em torno de um único objetivo: a preservação da vida! É claro que há vozes dissonantes no sistema, como gotas de água no oceano. E essas vozes, com certeza, são importantes no processo democrático do nosso País. Isso se dá porque o nosso sistema de saúde é mais amplo e complexo do que parece - é composto por hospitais públicos e privados, indústrias públicas e privadas, laboratórios, centros de pesquisas dentro e fora de universidades, farmácias públicas e privadas e uma infinidade de outras empresas, agências, entidades e instituições.
Conscientes da importância e relevância do SUS, temos assistindo, nos últimos meses, os princípios doutrinários que conferem legitimidade ao sistema dobrarem os joelhos para outro princípio, talvez, esquecido - o princípio da soberania. A soberania de Estado é considerada, geralmente, em dois aspectos: o interno e o externo. A soberania interna significa que o poder do Estado é o mais alto existente dentro do próprio Estado. A soberania externa significa que, nas relações recíprocas entre os Estados (países), não há subordinação nem dependência, e sim igualdade.
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No contexto da soberania externa, como o SUS pode nos garantir a universalidade, integralidade e equidade se ele depende de forma desigual de outros países? É irracional pensarmos que precisamos da China para fabricar as simplórias máscaras de proteção - mas é uma verdade dolorosa. O Diário Oficial da União (D.O.U.), em 03 de março de 2020, anunciou a compra de 240 milhões de máscaras da China em caráter emergencial. Mas, espere aí... não sabemos, não podemos ou não temos indústria para produzir o básico – as máscaras? Uma verdadeira operação de guerra foi mobilizada para que as máscaras chinesas chegassem ao Brasil, porque nem a entrega o império chinês garantiu. A colônia brasileira precisou fretar cerca de 40 voos para receber uma compra que é considerada a maior na história do País, feita no exterior.
E não para por aí. O SUS precisa, humildemente, da China para respirar. As indústrias chinesas que vendem os respiradores para UTIs, somente com pagamento integral antecipado, não pensam duas vezes em cancelar as vendas com os equipamentos em trânsito aéreo, mesmo tendo que reembolsar as multas contratuais. Um leilão internacional se estabeleceu por conta da alta demanda, e o Brasil é um humilde País com parcos recursos, que aguarda sua vez, e que será bem depois das grandes potências mundiais.
Os testes rápidos para Covid-19? Made in China também. Mas a nossa dependência vai além. Segundo a Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica (Abramed), entidade que reúne laboratórios médicos, a maior parte dos reagentes utilizados nos testes laboratoriais é importada, e precisa passar por avaliação da Anvisa antes de ser disponibilizada no Brasil.
Quer mais? A Índia mandou parar 1,3 bilhão de pessoas, colocando-as em quarentena. O país é o maior fabricante mundial de insumos farmacêuticos ativos (IFA), utilizado em inúmeros medicamentos fabricados no Brasil. Em coletiva de impressa o Ministério da Saúde informou que em 30, 40 ou 60 dias pode haver falta de medicamentos para diabetes e hipertensão no Brasil. Isso faz parte da bagunça que esse vírus fez em países como o Brasil, sem soberania nacional.
É fato que a nossa geração está vivendo, ou melhor, sobrevivendo, a um capítulo da história da humanidade, que será um marco de antes e depois na saúde púbica e em diversos outros aspectos comportamentais e sociais. A vergonhosa dependência, principalmente da China e da Índia, não é um problema exclusivo do sistema de saúde brasileiro. No mundo pós-Covid será imperativo aos governos de cada país repensar seus sistemas.
Concordo com o ex-ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta, quando diz que é preciso repensar a cadeia de distribuição de materiais e insumos de saúde pelo mundo. A pandemia colocou em xeque o sistema atual da cadeia global de medicamentos, equipamentos médicos e EPIs, fazendo com que dezenas de países disputassem com dois ou três o fornecimento de produtos estratégicos na manutenção dos sistemas de saúde pública e privada.
No nosso caso, precisamos, hoje, da China para o SUS poder respirar porque por décadas apostamos na economia globalizada sem resguardar os devidos incentivos fiscais de proteção à indústria nacional em setores estratégicos. O mercado da saúde é mais do que essencial, e não basta pleitear a universalidade, integralidade e equidade. A pandemia nos ensina a importância da sustentabilidade e autonomia para um sistema de saúde.
O desenvolvimento autossustentável de um sistema de saúde passa pela valorização da ciência, pelo investimento em pesquisas, passa ainda pela construção de uma cadeia produtiva que contemple a produção de matéria prima, IFAs e insumos. E mais importante - o desenvolvimento autossustentável de um sistema de saúde depende da formação e valorização de cientistas, farmacêuticos, médicos, enfermeiros, engenheiros de tecnologia e todos os profissionais ligados, direta ou indiretamente, à entrega de produtos e serviços de saúde.
No Brasil pós-Covid, sem dúvida, o SUS sairá fortalecido e fará com que o governo repense os recursos direcionados a todos os determinantes de saúde. E quem sabe... o SUS poderá sair respirando sem precisar da China. A nossa bravíssima indústria brasileira já promete produzir 14 mil respiradores após o fracasso em negociações com China... E isso já é uma centelha de esperança para nossa independência – antes tarde do que nunca.
*Marcus Vinícius de Andrade é fundador do ICTQ – Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação Para o Mercado Farmacêutico, Administrador de Empresas e graduando em Farmácia.
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