Chegou o momento de alinhar a regulamentação das Boas Práticas de Fabricação (BPF) de Medicamentos, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), com os guias adotados pelo Pharmaceutical Inspection Co-operation Scheme – Esquema de Cooperação de Inspeção Farmacêutica (PIC/s). A revisão do marco regulatório das BPF tem sido motivo de muitas dúvidas e incertezas entre os players do setor.
Por conta disso, em debate promovido pela Agência em março, o diretor do órgão, Fernando Mendes, afirmou: “A adesão do Brasil ao PIC/s contribuirá para a melhoria da qualidade e da imagem dos medicamentos produzidos no País, além de possibilitar o aumento da competitividade das empresas nacionais e seus produtos nos mercados internacionais”.
Ser membro do PIC/s dá à Agência a possibilidade de participar da elaboração das referências regulatórias internacionais e, além isso, ser mundialmente equivalente, aumentando o reconhecimento e a relevância das contribuições brasileiras no cenário mundial, segundo Mendes. Essa mudança garante o acesso aos mesmos treinamentos na área de Boas Práticas de Fabricação disponibilizados às demais agências reguladoras que integram o programa, tendo como objetivo a padronização de procedimentos e exigências regulatórias.
O fato é que a base do marco atual é de 2003 e está desatualizada. Assim, o início da consulta pública acontecerá em maio - período em que as empresas devem enviar as contribuições. Entre julho e agosto de 2019 a nova resolução já deve estar vigente, de acordo com o gerente geral de Inspeção e Fiscalização Sanitária da Anvisa, Ronaldo Lúcio Ponciano. Ele afirmou durante o debate: “Promover a atualização nesse momento é importante para a adesão da Anvisa ao PIC/s, mas principalmente para o aumento da qualidade dos medicamentos consumidos pela população brasileira.
Segundo a farmacêutica, analista da Garantia da Qualidade Pleno na indústria farmacêutica, Victoria Chicuta Improta, o PIC/s é uma convenção de inspeção farmacêutica e esquema de cooperação em inspeção internacional que ocorre entre países e autoridades de inspeção farmacêutica, e que, atualmente, é composto por 51 países. “O Brasil tenta sua inserção no grupo há 10 anos, o que demandou uma série de melhorias, cujo prazo acaba neste ano. Por isso, eles precisam alterar o escopo da resolução da área farmacêutica, para concluir o processo de integração ao grupo”, lembra ela.
Já a diretora da MD Consultoria e professora do ICTQ – Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico, Daniela Silva, a necessidade da mudança da RDC 17/10 e sua inclusão ao PIC/s é fundamental para que haja uma padronização. “Anteriormente, a Anvisa seguia a OMS, que passa por muitas revisões. No entanto, a Agência não consegue acompanhar essas atualizações. Além disso, o PIC/s será para o Brasil um marco regulatório nas Boas Práticas de Fabricação, garantindo, também, uma maior visibilidade ao País”, afirma ela.
A professora tem certeza de que as mudanças propostas são necessárias: “Há, ainda, vários gaps na RDC 17/10, que é muito subjetiva e, muitas vezes, provoca interpretação incorreta de seu conteúdo. Com essas mudanças acredito que ficará mais claro o que deve ser feito e como isso será cobrado numa inspeção”.
Produtos de maior qualidade
“Este processo de integração ao PIC/s, certamente, é de geração de valor aos produtos fabricados e utilizados no Brasil. Este ajuste nos critérios técnicos para a fabricação e controle de produtos farmacêuticos resultará em produtos de maior qualidade, alinhados com a expectativa do mercado nacional e internacional”, destaca o professor do ICTQ, André Luís Dias.
Ele defende que novos critérios e abordagens tornam-se evidentes. Muitas delas já eram consideradas pelas empresas que trabalham em conformidade e buscam, continuamente, a melhoria de seus produtos. “Os guias PIC/s, em diversos temas, já são referências utilizadas para a avaliação de projetos e em auditorias, mas essa formalização e direcionamento impulsionarão as empresas a reavaliar todos os projetos, conceitos, controles e rastreabilidades existentes, contribuindo para a melhoria contínua”, afirma ele.
Daniela concorda, dizendo que, com essa mudança de harmonização entre RDC 17/10 e o PIC/s haverá alterações significativas em todas as áreas de uma indústria, não somente na produção, já que as áreas de qualidade, qualificação e validação serão bem impactadas. “O ganho com essas alterações será enorme, em se tratando de garantir a qualidade do produto final que vai para o mercado”.
Ela ilustra sua opinião com um exemplo: se ocorrerem desvios durante os processos, não bastará, somente, abrir o desvio. Será preciso aplicar uma ferramenta da qualidade robusta para a investigação, com o objetivo de chegar à causa raiz e propor ações corretivas ou preventivas para que não haja recorrência desse desvio.
Segundo Dias, em um mundo cada vez mais globalizado e conectado, participar de grupos que buscam a harmonização é uma ação sempre bem-vinda. “Primeiro a participação no ICH e agora a entrada no PIC/s, certamente, contribuem para a melhoria da imagem das empresas e produtos fabricados e comercializados no Brasil”, diz.
Pontos mais importantes
Victória, que participou do debate na Anvisa, ressalta os pontos mais importantes discutidos sobre o tema:
- No cenário atual, a RDC 17/10 é baseada nos conceitos da OMS, que sofreu três revisões, e a Anvisa não as acompanhou.
- Haverá alteração decorrente da inclusão do Brasil no PIC/s, por meio da Anvisa, portanto a nova RDC será conforme o PIC/s, e não mais a OMS.
- Serão centralizados grupos de auditores de regiões específicas do Brasil para atender à demanda nacional: SP, RJ, GO, PR, SC e MG.
- Com relação aos impactos na RDC, o conceito de Sistema de Qualidade Farmacêutico (SQF) vai substituir o de Garantia da Qualidade, por considerarem um termo mais robusto. Neste serão inseridas as exigências para o Gerenciamento de Risco, que deve ser considerado durante todo o ciclo de vida do produto, processos e afins.
- Os anexos do PIC/s, como os sistemas computadorizados e validação e qualificação, virão em formato de instrução normativa, com exceção do anexo 20 – Gerenciamento de Risco, que poderá vir como um guia, pois possui orientações das ferramentas para aplicação do gerenciamento do risco.
- Nesta revisão, os responsáveis técnicos (RT) nos processos são os responsáveis pela liberação de produtos com qualidade, portanto, por mais que, atualmente, as empresas possuam POP de liberação de lotes, que são executados por colaboradores da garantia da qualidade, deve haver uma comprovação do RT, que garante a qualidade de produto liberado para a venda. É citado no PIC/s que esta comprovação pode ser válida até por meio de assinatura eletrônica, além do POP que leva o seu nome.
- Há fortes orientações da avaliação contínua do processo, e não somente considerando RPP. Assim, outros parâmetros e mecanismos de acompanhamento do processo serão considerados, pois avalia-se que o RPP, por ser anual, não acompanha o produto e o processo em tempo real. Há uma forte adesão ao conceito de acompanhamento contínuo do ciclo de vida do produto. A avaliação contínua não está restrita ao processo de fabricação ou produto, mas ao processo do SQF, como de POPs e demais documentações da área.
- Como a gestão de risco será muito ressaltada, as não conformidades deverão ter ferramentas e mecanismos muito bem esclarecidos para avaliar as não conformidades, e CAPAs deverão ser propostos sempre com base no risco x benefício avaliado para o processo, e sempre muito bem documentado.
- Integridade dos dados será ainda mais reforçada, para a qual a legitimidade dos dados e a qualidade com que eles são registrados em documentos manuais devem ser claras e confiáveis.
- Higiene pessoal e contaminação das áreas serão muito mais embasadas e devem ser impostos mecanismos para controle efetivo do cumprimento das normas pelos colaboradores.
- Uma grande mudança será a permissão do compartilhamento de áreas de produção. Há uma tendência de extinguir a classificação dos medicamentos, e a análise de risco será presente em toda a cadeia o que justificará o compartilhamento de áreas. Não haverá categorização de risco por produto e sim o gerenciamento de risco da cadeia produtiva.
- Com relação à validação, a grande mudança está diretamente relacionada à CP 343/17, em que é ressaltada a importância da qualificação de transporte. As transportadoras estarão se adequando, e nessa avaliação, deve-se garantir as condições principais de temperatura e umidade.
- Validação retrospectiva não é mais aceitável (isto já era de comum conhecimento).
- Os documentos, como ERU, comprovação do FAT e SAT e qualificação de design, deverão ser documentados e arquivados, compondo todo o histórico de documentações geradas em acordo com o diagrama em “V”.
“De modo geral, teremos mudanças significativas (como a permissão do compartilhamento das áreas) e outras que já eram esperadas devido à complexidade dos processos farmacêuticos, todavia, as mudanças são necessárias e coerentes. O órgão está muito aberto a utilizar a visão e interpretação das empresas para compor a nova RDC, e conta com todo tipo de contribuição”, defende Victoria.
Já Dias afirma que o processo de adesão ao PIC/s tem ocorrido com muita transparência e seguido passos muito bem delimitados. “Espera-se que, em breve, esteja disponível a diretriz internalizada. Com isso, é recomendado que todas as empresas olhem para dentro de casa e mapeiem os conceitos, processos e controles utilizados, frente aos novos requisitos. Esse é um processo muito bem-vindo para evoluirmos continuamente”, conclui o professor.