No transporte de produtos farmacêuticos, um dos itens mais importantes é a temperatura. Além disso, a condição do baú do veículo, a quantidade de volumes, distância do trajeto, duração da viagem e o carregamento e descarregamento podem influenciar diretamente na perda da eficácia do produto, em virtude da oscilação de temperatura. Para tratar esse e outros temas relacionados à cadeia de produtos farmacêuticos, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) lançou a Consulta Pública 343/17.
Isso se deu porque, as etapas de armazenamento, distribuição e transporte influenciam diretamente na segurança e eficácia dos medicamentos, porém não são bem desempenhadas em relação à garantia da qualidade dos medicamentos - pelas distribuidoras e transportadoras - pois as legislações brasileiras que referenciam essas etapas são muito deficitárias, tornando a fiscalização, pelos órgãos reguladores, ineficiente.
Assim, visando à melhoria e à adequação dessa proposta, na tarde da segunda-feira, 25 de fevereiro, a Anvisa realizou uma reunião, em Brasília (DF), com aproximadamente 180 profissionais do setor de distribuição, armazenamento, transporte e varejo de medicamentos, bem como representantes de conselhos de classe e diversos profissionais da vigilância sanitária do País. O objetivo era tratar dessa Consulta Pública 343/17, que revisa a Portaria 802/98 - uma das normativas mais antigas da Agência, com 21 anos.
A revisão da Portaria 802/1998 visa prover maior controle e rastreabilidade na cadeia, de forma a garantir a qualidade dos medicamentos durante as etapas de distribuição, armazenamento e transporte, bem como harmonizar os requerimentos sanitários estabelecidos pela Anvisa com aqueles definidos atualmente no Guia de Boas Práticas de Distribuição para Produtos Farmacêuticos da Organização Mundial de Saúde (WHO TRS 957, Anexo 5 - 2010).
“A proposta é regulamentar as Boas Práticas de Distribuição e Armazenamento (BPDA), Boas Práticas de Transporte (BPT) e harmonizar as ações de inspeções do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS) nos estabelecimentos que integram toda a cadeia, com o objetivo de controlar e monitorar os riscos associados aos estabelecimentos, provendo um maior controle sanitário desse setor, sobretudo pela disposição de requerimentos para os Sistemas de Gestão da Qualidade dessas empresas, diretrizes adicionais no controle e monitoramento da temperatura na cadeia de transporte e diversos outros pontos de melhoria”, informou a Agência, em nota.
A Anvisa confirmou, também, que na ocasião foi apresentado o histórico do tema nas diferentes Agendas Regulatórias, a justificativa da iniciativa de regulação, os dados analíticos da CP 343/17, os principais pontos de discussão da CP, e que todas as contribuições apresentadas pelos participantes da reunião pública serão avaliadas pela equipe da Gerência-Geral de Inspeção e Fiscalização Sanitária (GGFIS) da Anvisa, antes da publicação da norma prevista para março de 2019.
Para o professor do ICTQ – Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico e ex-presidente da Anvisa, dr. Dirceu Raposo, os avanços sobre o tema contemplam a fiscalização da cadeia de distribuição de medicamentos. “A criação da Anvisa é um marco importante, não é o único, óbvio, mas o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária se organiza de forma propositiva com o objetivo de controlar, entre outras coisas, a distribuição e o transporte de medicamentos no País. Além disso, harmoniza os requerimentos sanitários estabelecidos pela Anvisa com aqueles definidos em guias internacionais”.
Dentre as principais novidades propostas pela Agência atualmente está a implementação do Sistema de Garantia da Qualidade e princípios de Boas Práticas para os distribuidores e transportadores de medicamentos. O Presidente do Conselho Regional de Farmácia de São Paulo (CRF-SP), dr. Marcus Machado, diz que a CP 343/17 representa um grande avanço e que o principal ponto é garantir a gestão da qualidade, principalmente, no controle da temperatura durante o transporte e armazenamento dos medicamentos.
“O Brasil é um País continental, e o transporte dos medicamentos e a própria distribuição estão entrelaçados, mas, fundamentalmente, o transporte ainda é considerado crítico. Os processos de armazenamento, distribuição e transporte de produtos farmacêuticos estão presentes desde o fornecimento de matéria-prima ou insumos farmacêuticos até a dispensação do produto acabado. Para manter a qualidade dos medicamentos, todas as etapas da cadeia de distribuição devem cumprir com as legislações e regulamentações. Com isso, todas as empresas envolvidas nessas etapas terão que realizar investimentos para se adequarem e, assim, garantirem ao consumidor final o produto com qualidade”, afirma Machado.
Raposo lembra que até uns 10 ou 15 anos atrás os medicamentos eram transportados junto com outras mercadorias. “Medicamento precisa ter transporte específico, por conta da exigência no controle de temperaturas, umidade, dentre outras coisas que a Anvisa caminhou para melhorar, regulamentar e alertar. A Agência percebeu a importância em regulamentar a segurança no transporte, na distribuição, e armazenamento para garantir a qualidade e a eficácia dos medicamentos, desde a aquisição da matéria-prima até a dispensação no balcão da farmácia”, relata Raposo.
Segundo ele, essa questão da rastreabilidade tem sido tratada por meio da lei sobre o Sistema Nacional de Controle de Medicamentos: 13.410/16 e da RDC 157/17, que dispõem sobre a implantação do Sistema Nacional de Controle de Medicamentos e os mecanismos e procedimentos para a rastreabilidade. “A Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária, lá em 1998, já tratava dessa realidade de forma superficial. Depois, com a criação da Anvisa, o trabalho foi se aperfeiçoando, não se intensificando como deveria, mas se aperfeiçoou e, ultimamente, temos acompanhado essa discussão que está constantemente em pauta”, reconhece Raposo.
Na opinião dele, as BPDA tratam do conjunto de procedimentos definidos pela empresa que assegura a qualidade de um medicamento por meio do controle adequado durante o processo de distribuição e armazenagem, bem como fornece ferramenta para proteger o sistema de distribuição contra medicamentos falsificados, reprovados, ilegalmente importados, roubados, avariados e adulterados.
“Além de possuir a competência para regulamentar o tema, por se tratar de medicamentos, produtos que envolvem risco à saúde pública, a Anvisa também atua por meio do controle pré-mercado, mediante a concessão de Autorização de Funcionamento de Empresas (AFE) para as empresas que realizam as atividades de distribuição, armazenagem ou transporte de medicamentos e por meio de ações de fiscalização no monitoramento pós-mercado”, destaca Raposo.
Qualificação de transporte
A professora do ICTQ e diretora Executiva da MD Consultoria, Daniela Silva, esteve em Brasília para acompanhar a reunião pública sobre a CP 343/17. Segundo ela, tanto a Agência como o setor regulado se propuseram a enfrentar os gargalos e paradigmas relacionados à cadeia de distribuição e logística, a fim de encontrar soluções para melhoria dos processos que, efetivamente, garantam a qualidade dos produtos farmacêuticos ao serem submetidos à ponta final da cadeia produtiva, embora momentaneamente ainda represente algo desafiador, carente de dados concretos e investimentos por parte do setor regulado.
“A Anvisa justifica sua iniciativa pautada pelo foco no sistema de gestão da qualidade, qualificação e isonomia de critérios na cadeia, visando garantir a estruturação das áreas de qualidade a fim de propiciar o controle e a fiscalização da cadeia de distribuição de medicamentos. Além disso, fica evidente a necessidade do órgão regulador em apresentar à sociedade a real preocupação com a ponta final da cadeia de produção de medicamentos, e que os medicamentos a ela disponibilizados serão armazenados e transportados em condições satisfatórias à manutenção de sua qualidade e segurança”, relata Daniela.
A qualificação de transporte é fundamental para detecção de falhas no sistema, reduzir atrasos e prejuízos, além de garantir a qualidade e estabilidade dos medicamentos, segundo a professora do ICTQ. “A qualificação de transporte de medicamentos é um processo extremamente importante, principalmente para produtos sensíveis à temperatura e umidade, pois os medicamentos podem ter suas propriedades farmacotécnicas e farmacodinâmicas alteradas”, afirma ela.
Para garantir que a qualidade, eficácia e segurança não sejam afetadas durante o transporte, a qualificação deve ser executada em todo o percurso: da indústria para distribuidora e transportadora, e dessa para farmácias e drogarias. Devem também ser avaliadas, na qualificação de transporte, a temperatura e umidade durante os transportes em todas as estações do ano, o tempo do trajeto, qualificar as embalagens térmicas e os compartimentos térmicos dos veículos.
“É válido lembrar que na reunião ficou estabelecido que as empresas terão 180 dias para se adequarem após a publicação da legislação, exceto o artigo 7º que será imediato. O conhecimento e o cumprimento das normas que tratam as boas práticas de fabricação, armazenagem, distribuição e transporte devem-se traduzir em atos seguros e em um esforço coletivo de todas as empresas que integram a cadeia de medicamentos e atuem para o bem da saúde da população”, enfatiza Daniela.
A logística da cadeia
A logística de transporte constitui um grande problema por apresentar um sistema complexo que demanda tempo, treinamento de pessoal, roteirização, dimensionamento de frota de veículos e localização. De acordo com o Ministério do Transporte, o transporte rodoviário é o modal mais utilizado no Brasil, porém possui grandes desvantagens em relação aos transportes ferroviários e hidroviários: alto custo de manutenção, muito poluente com forte impacto ambiental, segurança comprometida devido a roubos de cargas, altos custos para grandes distâncias e baixa capacidade de carga com limitação de volume e peso. E é válido ressaltar que infelizmente as rodovias nacionais não oferecem segurança e nunca estão em boa qualidade para tráfego, por conta de buracos, falta de sinalizações, dentre outros problemas que afetam esta modalidade de transporte.
No transporte de medicamentos, a malha rodoviária gera ainda mais transtornos. Para atender grandes distâncias o custo da operação encarece para o consumidor final e coloca em risco a qualidade do produto devido à demora do processo. Fatores como temperatura, tempo de armazenagem, forma de acondicionamento, umidade, luz, oxigênio, se não muito bem controlados, podem gerar instabilidade nos produtos diminuindo a eficácia, segurança e qualidades, podendo gerar graves problemas de saúde.
Pontos críticos de transporte de medicamentos
No transporte de produtos farmacêuticos, um dos itens mais importantes é a temperatura. A condição do baú do veículo, a quantidade de volumes, distância do trajeto, duração da viagem e o carregamento e descarregamento podem influenciar diretamente na perda da eficácia do produto, em virtude da oscilação de temperatura. Nesse aspecto é que o presidente do CRF-SP destaca a atuação do farmacêutico, pois ele é o profissional mais capacitado para acompanhar o processo. “Agora é a hora do farmacêutico estar preparado para atuar e demonstrar que é ele quem possui conhecimento para garantir a gestão na qualidade dentro desses processos de qualificação, armazenamento, distribuição e transporte na cadeia produtiva de medicamentos”, destaca Machado.
O Papel do farmacêutico na distribuição e transporte de medicamentos
Em 1999, com a criação da Anvisa, pela promulgação da Lei 9782/99, a atuação do farmacêutico nas áreas de distribuição e transporte de medicamentos foi efetivada (CRF-SP, 2009). As Resoluções 365, de 2 de outubro de 2001; e a 433, de 26 de abril de 2005, ambas do Conselho Federal de Farmácia (CFF), regulamentam a atuação do farmacêutico nas áreas de distribuição e transporte de produtos farmacêuticos, aumentando a segurança e integridade dos produtos.
Assim, Machado avalia que a CP 343/17 representa uma grande oportunidade aos farmacêuticos porque a classe possui conhecimentos específicos que podem garantir a gestão da qualidade em todas as etapas do processo na cadeia produtiva.
“O farmacêutico, destaca-se como o profissional habilitado para promover os gerenciamentos da logística de transporte e de distribuição de medicamentos, pois é ele quem irá garantir a qualidade do medicamento quando esse estiver disponível para o consumo pela população. E nós, enquanto Conselho, continuaremos acompanhando e exigindo a presença da classe como parte do processo para garantir a gestão da qualidade em todos os setores da cadeia produtiva de medicamentos”, ressalta Machado.
Em 2001, o CFF publicou a resolução 365, de 2 de outubro, que regulamenta a assistência técnica farmacêutica em distribuidoras. Com isso, surgiram a exigência e a necessidade da presença do farmacêutico durante todo o horário de funcionamento.
As principais atribuições do farmacêutico nesse processo são:
1 - Cumprir e fazer cumprir a legislação sanitária;
2 - Liberar produtos somente aos estabelecimentos autorizados/licenciados pelos órgãos sanitários;
3 - Manter o manual de boas práticas de distribuição e armazenagem; e
4 - Organizar, supervisionar e orientar as etapas de recebimento, armazenagem e expedição de produtos farmacêuticos.
Já a atuação do farmacêutico em empresas de transportes de medicamentos só foi regulada pelo CFF por meio da Resolução 433, de 26 de abril de 2005. Cabe ao farmacêutico que acompanha o transporte de medicamentos:
1- Zelar pelo cumprimento da legislação sanitária;
2 - Permitir somente o transporte de produtos registrados no órgão sanitário competente;
3 - Implantar o manual de boas práticas de transporte; e
4 - Elaborar procedimentos de limpeza dos veículos, de registro e controle de temperatura e umidade, registro de ocorrência, avarias, extravios e devoluções, sobre controle de desinsetização e desratização.
A documentação perante a Anvisa e o CRF é de responsabilidade do farmacêutico, e todos os trâmites documentais que envolverem outros profissionais devem ser supervisionados por ele, que deverá ter conhecimento das legislações em vigor.
Com o objetivo de intensificar a fiscalização na cadeia de produtos farmacêuticos, aumentando a rastreabilidade dos medicamentos e a qualidade dos produtos, novas regulamentações foram surgindo:
- Resolução 329/MS/ANVS, de 22 de julho de 1999, que institui o roteiro de inspeção para transportadoras de medicamentos;
- Resolução 49/GMC, de 28 de novembro de 2002, e a Portaria 12/GMC, de 5 de janeiro de 2005, que regulamentam as BPD e as BPT de produtos farmacêuticos do Mercosul, respectivamente;
- Resolução 1/MS/ANVS, de 29 de julho de 2005, que estabelece o guia para realização de estudo de estabilidade;
- Resolução 204/MS/ANVS, de 14 de novembro de 2006, que regulamenta as boas práticas de distribuição e fracionamento de produtos farmacêuticos;
- Resolução 27/MS/ANVS, de 30 de março de 2007, que estabelece o Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC); e
- Resolução 17/MS/ANVS, de 17 de abril 2010, que regulamenta as boas práticas de fabricação.
Competências da Anvisa
Algumas das competências da Agência na área de medicamentos são o registro de medicamentos, autorização de funcionamento e inspeção dos laboratórios farmacêuticos e demais empresas da cadeia farmacêutica, análise de pedidos de patentes relacionados a produtos e processos farmacêuticos e regulação de preços, por meio da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED).
Para suas ações, a Anvisa informa ainda que conta com as Visas locais (autoridade Estadual ou Municipal de Vigilância Sanitária), por serem os agentes diretamente responsáveis, conforme Lei 8080/90, por realizar as inspeções in loco. Os relatórios de inspeção emitidos pelas Visas locais são uma das ferramentas utilizadas pela Anvisa para fins de concessão de AFE das empresas ou para a adoção de medidas sanitárias.
De acordo com a Anvisa no diálogo setorial, a sociedade foi consultada quanto aos pontos que ainda podem ser melhorados na consolidação da CP 343/17. Em nota, a Agência afirmou: “Trata-se de uma oportunidade de polimento para a norma. A Consulta Pública atua primeiramente como uma grande oitiva da sociedade. O momento do diálogo setorial afina o entendimento da Consulta Pública com a sociedade, propiciando mais um espaço de participação social na construção e melhoria da norma antes de sua publicação”.
Entre os avanços pode-se destacar quatro pontos:
1 - Avanço e isonomia na cadeia de distribuição, armazenagem e transporte de medicamentos;
2 - Desenvolvimento dos Sistemas de Gestão da Qualidade das Empresas envolvidas;
3 - Introdução dos requerimentos de Qualificação e Validação; e
4 - Diretrizes claras de Boas Práticas para todos os componentes da cadeia.
Os problemas que foram inicialmente identificados, e justificaram o tratamento do tema na Agenda Regulatória 2017-2020:
- Desatualização da Portaria 802/98 frente às necessidades atuais de regulamentação da cadeia de distribuição de medicamentos;
- Lacuna regulatória em relação às boas práticas de Armazenamento e de Transporte de medicamentos;
- Lacuna regulatória em relação ao Operador Logístico; e
- Demanda do setor regulado, para a flexibilização da cadeia, com a inserção de mais intermediários, a fim de facilitar a capilarização da distribuição de medicamentos.