Poucas indústrias no Brasil utilizam o sistema RABS interconectado ao túnel de despirogenização, que aumenta a qualidade do processo de envase. A validação é um “ato documentado que atesta que qualquer procedimento, processo, equipamento, material, operação, ou sistema realmente conduza aos resultados esperados”, segundo definição da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Ainda que a validação de túneis de despirogenização seja um ato exigido para garantir a qualidade de fabricação, em especial de fármacos, plenamente conhecido da indústria, coloca desafios para as empresas que prestam esse tipo de serviço para a indústria farmacêutica.
Um desses desafios é devido à própria complexidade do processo – a validação de túneis de despirogenização, que deve ser realizada a cada seis meses, requer a colaboração de todos os setores, como: desenvolvimento, produção, engenharia, garantia da qualidade e controle de qualidade. A “Toda a equipe que trabalha no equipamento precisa entender o processo para que as informações corretas sejam passadas para o time de profissionais que realiza a validação”, diz Carlos Merthon, Sócio-Diretor da Garneira Engenharia.
No caso dos túneis de despirogenização (esterilização por calor seco dos frascos), a validação (que comumente engloba a qualificação) é exigência das Boas Práticas de Fabricação e garantem a qualidade do produto final. E a qualidade precisa ser mantida em todo o ciclo de vida do produto, a começar pelos frascos, já que os testes apenas nos produtos acabados não garantem sua qualidade.
A definição do FDA (Food and Drug Administration) dos Estados Unidos para validação do processo cita “evidência documentada que atesta com alto grau de segurança que um processo específico produzirá um produto de forma consistente, que cumpra com as especificações pré-definidas e características de qualidade”. “Além disso, pode-se dizer que a validação, ao garantir a qualidade do processo e influenciando diretamente a qualidade do produto final, é também um diferencial competitivo”, afirma Merthon.
Conhecimento de todos
A necessidade de conhecimento a respeito do funcionamento do túnel faz diferença para a indústria, ainda que seja contratada uma empresa terceira para o serviço de validação. Merthon dá um exemplo. “Muitas indústrias solicitam que seja feito teste de integridade depois da queima de filtro na zona de aquecimento do túnel”, diz.
“Acontece que, depois da queima, o ambiente fica com particulado e, por isso, dá alteração no teste. Mas é um resultado esperado”. O correto é fazer o teste antes da queima para verificar a integridade. “Após a queima, mantém-se a classe de limpeza dentro do túnel, mas nos testes de integridade e de contagem de partículas o resultado obtido é alterado”, explica.
O que deve ser feito após a queima, segundo o especialista, é apenas o teste de velocidade. Célio Soares Martin, Sócio-Diretor da Análise Consultoria e Testes de Sistemas de Ar, diz que na indústria farmacêutica há diferenças no tratamento dos ensaios dos filtros HEPA especiais aplicados no ar quente dos túneis. “Isso reflete as diferenças construtivas entre filtros de alta temperatura e as tecnologias do sistema de filtragem desenvolvidas pelos fabricantes de túnel”.
Por isso, ele lembra que durante a definição do procedimento de ensaio a ser adotado deve ser considerada, além da análise de risco do processo, a recomendação do fabricante. “Ou seja, quais ensaios são realizados com o túnel frio e quais com ele quente, ensaios antes e após a ‘queima’ dos filtros, uso ou não de aerossol de ensaio no filtro de alta temperatura, contagem de partículas com sonda especial se necessário, entre outros”.
O Requisito do Usuário (RU), documento que descreve o que se espera do equipamento, é essencial para que as especificações no momento de construção do túnel estejam registradas e possam ser repassadas para a equipe de validação e qualificação. Ao saber previamente as especificações, a empresa que realiza a validação pode preparar-se com os equipamentos de ensaio necessários e que caibam no túnel.
Rafael Prado, coordenador e consultor na área de projetos industriais da EPC Consultoria, concorda que o RU é essencial. “É preciso haver uma especificação adequada daquilo que a indústria precisa para seu processo produtivo, a fim de que haja um dimensionamento correto do equipamento, para esclarecer o que é necessário ter na ponta da produção em termos de qualidade”, diz.
Obter o parâmetro ótimo
Chegar às especificações adequadas nem sempre é tão simples. Para Érica Cecchini Madiutto, Coordenadora de Validação da ABL Antibióticos do Brasil, a validação inicial, a chamada prospectiva (veja os tipos de validação na página 22) é a mais desafiadora. “A cada frasco novo, o desafio é determinar quais os parâmetros de ciclo ideal, ou seja, a velocidade da esteira e a temperatura de despirogenização, para essa massa de vidro ser aquecida e despirogenizada”, afirma.
Érica acredita que esse tipo de desafio seja global. “Como os túneis da ABL são de um fabricante europeu e exportamos nossos antibióticos para o mercado americano, estamos atentos às normas internacionais. Assim, requalificamos nossos ciclos anualmente e, para isso, usamos sempre o pior cenário: velocidade de esteira maior e temperatura menor. Esse é um procedimento comum nas empresas”, explica.
Ela, que é especialista em validação e trabalha na indústria farmacêutica, diz que esse desafio – de determinar parâmetros para novos frascos – pode ser mais simples de ser superado se o usuário se basear em ciclos já desenvolvidos para frascos semelhantes usados em sua linha produtiva pois os parâmetros tendem a ser mais próximos. “Caso contrário, a alternativa é prosseguir com ensaios até que a redução logarítmica das endotoxinas inoculadas seja satisfatória”, diz.
Segundo Érica, existem hoje no mercado termopares que suportam altas temperaturas de despirogenização e devem ser longos o suficiente para atravessar toda a esteira do túnel, da zona de entrada, onde é posicionado dentro dos frascos, até ser solto na saída da zona de resfriamento.
A novidade dos RABS
O sistema RABS (do inglês Restricted Access Barrier – Barreira de Acesso Restrito) ainda é uma tecnologia nova e de alto custo, portanto, instalada em poucas empresas no Brasil, que é colocado na saída do túnel de despirogenização (o mais comum é que esteja localizado em outra sala).
Ele traz mais qualidade no envase dos medicamentos, conforme explica Rafael Prado, que participou da instalação de um sistema desse tipo em uma indústria farmacêutica onde já trabalhou. “Ele elimina o contato homem-produto e isso é fundamental, porque evita uma série de contaminações e riscos”, diz.
Por meio dessa interligação, os frascos saem diretamente do túnel de despirogenização para o RABS, onde acontece o envase e o fechamento do frasco. “Em resumo, traz mais qualidade ao envase justamente por ter essa barreira que impede o acesso humano ao produto. O operador coloca o frasco na entrada do túnel e o retira lacrado ao final do processo”, explica Prado. Em 2018, a ABL fará a qualificação de seu primeiro túnel conectado a uma microenchedora com RABS. “Estamos bastante confiantes”, conta Érica.
“Já temos experiência de mais de dez anos com túneis e usaremos os mesmos tipos de frascos já qualificados em outros equipamentos. Os RABS não precisam ser usados durante a qualificação, pois a redução logarítmica deve ocorrer dentro do próprio túnel, ou seja, o frasco pode ser coletado na mesa rotativa antes de entrar na microenchedora”, explica.
Quando tudo estiver em funcionamento, no entanto, o RABS também precisa passar por validação, conforme explica Prado. “Ele deve seguir itens fundamentais para que seja mantida a qualidade. Se o RABS em geral trabalha com a qualidade do Grau A, o túnel também deve respeitar essa classificação para que os frascos sejam devidamente despirogenizados e adequados ao produto que receberá no envase”.
Importante ainda o monitoramento da temperatura, lembrando que o frasco passa por zona quente no túnel e outra de resfriamento. “Ele precisa sair do túnel e entrar no RABS em temperatura adequada para receber o produto”, afirma o especialista.
Desafios para essa instalação
Para Merthon, o RABS também apresenta desafios. “Como túnel e RABS ficam em salas separadas, é preciso haver uma cascata de pressão muito bem elaborada para que o processo dê certo, porque isso influencia diretamente na produtividade do envase”, diz.
Acertar a cascata de pressão é, portanto, essencial, porque garante que os frascos não sejam empurrados, nem derrubados antes de entrar no RABS. Se os ajustes necessários são delicados, os especialistas apontam que vale a pena o trabalho, pois a qualidade do ar dos filtros fica mais bem controlada já que se mantém até o produto sair tampado.
Além da qualidade e credibilidade do processo, também há ganho de eficiência. O ganho de produtividade do sistema “fechado” (túnel de despirogenização + RABS) também advém do fato de ser mais fácil manter o diferencial de pressão. “Já vi a seguinte cena acontecer muitas vezes em sala de envase sem RABS: a equipe abre e fecha muitas vezes a porta da sala, o que faz com que o diferencial entre o túnel de despirogenização e a sala flutue demais, desligando automaticamente o túnel”, conta Merthon.
Como consequência, a produção para e os frascos dentro do túnel têm que ser descartados. Ou seja, prejuízo material, de tempo e de produtividade. No entanto, os especialistas destacam que o novo sistema por si só não faz milagres. “Seja como for, com ou sem RABS, o principal garantidor de qualidade e produtividade é que o usuário entenda o processo todo de funcionamento e especificações dos equipamentos”, diz Merthon.
Tipos de validação
Prospectiva – Realizada durante o estágio de desenvolvimento do produto geralmente em lote piloto. É considerado o estudo de validação de processo ideal. Concorrente ou simultânea - Realizada durante a rotina de produção normal, aquela dos produtos que serão destinados à venda, e é baseada em dados históricos de fabricação, ensaios e controle de lotes. É aplicável a processos em funcionamento, bem estabelecidos.
Os primeiros lotes são aqueles que merecem maior atenção, portanto, devem ser monitorados de forma mais abrangente, pois eles basearão os ensaios e testes futuros. Retrospectiva – Ato documentado, baseado na revisão e análise de registros históricos, atestando que um sistema, processo, equipamento ou instrumento, já em uso, satisfaz as especificações funcionais e expectativas de desempenho.
Plano Mestre de Validação
O processo de validação deve ser definido e documentado no chamado Plano Mestre de Validação (PMV), que consiste em documento de síntese, breve, conciso e claro. Deve conter dados sobre, pelo menos, os seguintes aspectos:
a) Política de validação e qualificação;
b) Estrutura organizacional das atividades de validação e qualificação;
c) Resumo de instalações, sistemas, equipamento e processos a validar e qualificar;
d) Controle de alterações e gestão de desvios;
e) Orientação no desenvolvimento de critérios de aceitação;
f) Referência a documentos existentes;
g) Estratégias de qualificação e validação, incluindo requalificação, se aplicável.
Fonte: Avaliação de riscos, Qualificação de Equipamentos de Esterilização, Despirogenização e Produção -Ana Sofia Bernardo Saraiva – dissertação de mestrado – Universidade Nova de Lisboa, 2016.
Etapas da validação
A validação do processo deve recolher e avaliar os dados desde a fase de design do processo até a produção comercial. Envolve uma série de atividades durante o ciclo de vida do produto e do processo, divididas em três etapas.
1. Design do processo: o processo de fabricação comercial é definido com base no conhecimento adquirido através do desenvolvimento e atividades de scale-up.
2. Processo de qualificação: durante esta fase, o design do processo é avaliado para determinar se o processo é capaz de fabricação comercial reprodutível.
3. Verificação contínua do processo: segurança na continuidade é adquirida durante a produção de rotina, por meio da qual o processo permanece num estado de controle.