Um dos tipos de transporte mais sensíveis na área farmacêutica é o de produtos biológicos, que incluem todos os tipos de vacinas. Segundo o Guia para a Qualificação de Transporte de Produtos Biológicos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), publicado em 2017, “medicamentos biológicos são constituídos por moléculas proteicas altamente complexas, cuja atividade biológica é dependente da sua integridade estrutural. Tanto a instabilidade química quanto a física podem contribuir para uma perda de atividade”. Ou seja, qualquer problema que possa afetar a estabilidade do produto pode resultar na sua inutilidade.
A instabilidade física pode ser minimizada com um cuidado especial na armazenagem e transporte. “Há grande preocupação da indústria farmacêutica e das autoridades regulatórias em garantir que os medicamentos sejam entregues aos pacientes sem prejuízo de suas propriedades terapêuticas”, afirma Daniela Cristina da Silva, professora do ICTQ e diretora executiva da M&D Consultoria. Para que isso ocorra, diz a especialista, é fundamental que as condições de temperatura estejam controladas durante todo o processo logístico.
A temperatura é o aspecto mais vulnerável e um dos principais fatores que podem impactar na estabilidade de uma vacina. Sendo que, segundo a Anvisa, cada tipo de vacina tem a sua particularidade. Para algumas, o congelamento é proibido, pois pode levar à perda de eficácia. Já outras vacinas são abaladas por exposições a temperaturas mais elevadas. “Não se pode estabelecer uma condição padrão para todas as vacinas. Cada fabricante irá avaliar e determinar o perfil de estabilidade do seu produto. Os cuidados de conservação estão descritos e são aprovados no registro do medicamento”, diz a agência reguladora. Em geral, esses cuidados incluem manter a temperatura na faixa específica estipulada ao medicamento, proteger da luz e não congelar. “Para vacinas, a temperatura de controle deve estar entre 2°C e 8°C. Um ponto importante a ressaltar é que temperaturas negativas interferem na eficácia das vacinas, podendo fazer com que elas percam sua propriedade farmacodinâmica. Para evitar isso, é muito importante que sejam armazenadas em equipamentos qualificados que assegurem a temperatura na faixa adequada”, diz Daniela Silva.
Com o aumento da produção de vacinas e de medicamentos biotecnológicos, cresce igualmente a necessidade de aprimoramento nos sistemas de transporte. “Estamos falando de produtos da cadeia fria, que é um sistema de conservação, manejo, transporte e distribuição de medicamentos perecíveis, desde a sua saída do laboratório fabricante até o cliente final”, diz Daniela Silva. Porém, segundo a especialista, ainda é frequente ocorrerem problemas de armazenamento e atrasos durante o transporte, colocando a qualidade do produto em risco. “Quando os tempos de transporte e o controle de temperatura não podem ser mantidos o produto pode sofrer uma excursão de temperatura, o que pode resultar em sua perda”, salienta.
Riscos aos produtos
Os principais problemas encontrados no transporte de vacinas variam desde o armazenamento inadequado da carga até atrasos não previstos com despachos aduaneiros, pela quebra do veículo, acidente em rodovias ou greves em portos e aeroportos. Outros contratempos podem também causar riscos dos produtos: não haver o elemento refrigerante qualificado para a embalagem térmica ou ele não estar na temperatura ideal; equipamentos de controle não calibrados e qualificados; caixas térmicas com avarias; funcionários que manuseiam a carga de forma inadequada.
“Para resolver esses obstáculos, a empresa deve ter um plano de contingência bem estruturado”, diz Daniela Silva. Ele deve fazer parte de um estudo maior que é a qualificação do transporte, em que se realiza o monitoramento da temperatura e do tempo durante todo o trajeto, considerando os piores itinerários escolhidos por meio de uma avaliação de risco. “As rotas escolhidas devem ser aquelas que possuem alto impacto no transporte como, por exemplo, a região mais quente ou a mais fria, e o percurso com maior tempo de trajeto”, explica a professora do ICTQ. Para se realizar a qualificação de transporte de uma vacina, alguns aspectos devem ser considerados de antemão. Qual é a faixa de temperatura do produto? O estudo de estabilidade permite excursões de temperaturas? Qual o melhor meio de transporte a ser utilizado – terrestre, marítimo, aéreo sem conexão ou aéreo com conexão? O produto será transportado em qual tipo de sistema: passivo ou ativo? Se for utilizado sistema passivo, qual tipo de elemento refrigerante deve ser utilizado? Será utilizada manta térmica? Quais serão as rotas críticas? Serão utilizados monitores eletrônicos?
Com essas questões equacionadas, são elaborados os protocolos de qualificação de transporte e, posteriormente, a execução de testes de qualificação. “O protocolo deve ser bem detalhado, descrevendo os tipos de transporte necessários durante toda a rota e especificando em que condições devem ocorrer – se será feito em caminhão refrigerado, por exemplo – e por quanto tempo”, esclarece Daniela Silva.Todos os produtos que requerem uma condição específica de controle de temperatura, tanto da cadeia fria quanto de carga seca, devem passar por qualificação de transporte. “O processo deve ser realizado por especialistas, normalmente farmacêuticos da área de garantia da qualidade da indústria que executam atividades de qualificação”, diz Daniela.
Compete à União, por meio da Anvisa, fazer cumprir as regras sobre o transporte de medicamentos. As principais normas que regulamentam esse tipo de transporte são as Leis 6360/1976 e 9782/1999 e a Portaria 802/1998. Especificamente para produtos biológicos há as RDC n° 234/2005 e n° 38/2010. A Portaria 802 encontra-se em processo de revisão e atualização, por meio da Consulta Pública 343/2017. A fiscalização é feita pelo Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS), dentro das responsabilidades de cada ente. “Cabe ressaltar que, conforme preconizado pela RDC n° 55/2010, para fins de registro de produto, a qualificação dos procedimentos de transporte é compreendida principalmente pelas etapas de qualificação de operação e qualificação de desempenho do sistema de transporte a ser utilizado”, destaca Daniela Silva.
Transporte qualificado
A qualificação de operação é o conjunto de procedimentos que estabelece, sob condições especificadas, que o sistema ou subsistema opera conforme previsto, em todas as faixas operacionais consideradas. A qualificação de operação é uma simulação das piores condições que podem acontecer em um transporte real. Já a qualificação de desempenho é a verificação documentada de que o equipamento ou sistema apresenta desempenho consistente e reprodutível, de acordo com parâmetros e especificações definidas, por períodos prolongados. Portanto, a qualificação de desempenho de um sistema de transporte consiste em embarques consecutivos (ou de amostras representativas do produto) em condições reais, para demonstrar que o processo é efetivo e reprodutível.
O transporte de vacinas pode ser realizado pelo próprio fabricante ou por operadores logísticos contratados. Se o transporte for realizado por operador logístico, este precisa ser qualificado e seguir as mesmas regras de boas práticas de armazenamento e distribuição do produtor. Ele deve possuir uma autorização específica para a atividade, conforme a Portaria 802/1998 e a Lei n° 6360/1976. Segundo a Anvisa, devem existir procedimentos operacionais redigidos para as todas as operações susceptíveis de afetar a qualidade dos produtos ou da atividade de distribuição. “Cabe ao fabricante qualificar seu fornecedor e realizar auditorias para avaliar a eficácia do seu sistema de qualidade, principalmente no que ser refere a procedimentos operacionais e treinamentos de colaboradores”, observa Daniela Silva. No caso das transportadoras, é preciso haver um farmacêutico responsável técnico pelos procedimentos de movimentação e transporte.
De acordo com Anvisa, o sistema de transporte escolhido para uma vacina não pode em nenhuma hipótese afetar a sua qualidade e deve possuir as características que garantam a manutenção dos cuidados de conservação do produto. Portanto, se o medicamento necessitar de temperatura controlada, um caminhão refrigerado pode ser uma opção. Porém, segundo a professora do ICTQ, a maior parte dos transportes terrestres no Brasil ainda é feita em veículos não refrigerados, devido ao alto custo envolvido em operações com esse tipo de veículo. “Não há uma obrigatoriedade que mencione que os transportes terrestres devem ser realizados em caminhões refrigerados, fazendo com que as empresas optem por soluções mais econômicas. Nesse caso, cuidados especiais devem ser tomados para manter a temperatura, especialmente por estamos em um país tropical”, diz.
A principal medida para minimizar as variações de temperatura durante o transporte consiste em qualificar os sistemas, buscando as melhores alternativas aos veículos refrigerados. Entre as opções existentes, estão as maletas ou caixas térmicas e acumuladores térmicos, usados para conservação, e termômetros digitas ou infravermelhos e etiquetas térmicas, para e monitoramento da temperatura. Existe ainda o datalogger, dispositivo que pode ser acoplado à maleta térmica e que realiza o registro das temperaturas ao longo do tempo. No final do ciclo de transporte, os dados de temperatura registrados no aparelho podem ser visualizados e assim é possível avaliar se as temperaturas foram constantes ou se houve irregularidade e consequente dano às vacinas.
Recebimento também exige cuidado
O monitoramento da temperatura ao longo do percurso é muito útil principalmente para a conferência do recebimento das vacinas no destino final. O responsável técnico pela recepção dos produtos deve avaliar, entre outros aspectos, se a remessa corresponde à encomenda, a temperatura do produto no momento e o registro do monitoramento (datalogger), a condição do elemento refrigerante, e a integridade das embalagens, que devem estar fechadas e sem avarias. Os recebedores devem possuir uma área apropriada, de forma a proteger as remessas de qualquer risco no momento da chegada dos produtos farmacêuticos. Após o recebimento, deve-se armazenar imediatamente a vacina em equipamentos qualificados, que podem ser refrigerador, container ou câmara fria.
Segundo a Anvisa, as empresas responsáveis por cada uma das etapas de produção, distribuição, transporte e dispensação são solidariamente responsáveis pela qualidade e segurança dos produtos farmacêuticos objetos de suas atividades específicas. Independentemente de outras cominações legais, inclusive penais, de que sejam passíveis os responsáveis técnicos e administrativos, a empresa responderá administrativa e civilmente por infração sanitária resultante da inobservância da Lei 6360 e de seus regulamentos e demais normas complementares. “Em minha opinião, o único e exclusivo responsável por garantir a qualidade do produto em toda a sua cadeia logística é o fabricante do produto”, assinala Daniela Silva. Segundo ela, essa garantia deve ser realizada por meio do cumprimento de procedimentos operacionais, colaboradores capacitados, registros de treinamentos e realização de auditorias em terceiros.
Os produtos farmacêuticos registrados e produzidos segundo os requisitos das boas práticas de fabricação devem chegar ao consumidor final sem que sofram quaisquer alterações de suas propriedades nas etapas da distribuição. Por isso, o farmacêutico ao receber a mercadoria e se deparar com um medicamento que não está em condição adequada de uso deve abrir um documento de não conformidade, realizar uma investigação utilizando ferramentas da qualidade até chegar à causa raiz do problema. Se a não conformidade for critica, deve-se comunicar o laboratório fabricante. Este, por sua vez, deverá levar o caso oficialmente para a Anvisa e fazer o recall do produto. Segundo a agência reguladora, devem ser mantidos registros das devoluções e o farmacêutico responsável deve aprovar formalmente a reintegração dos medicamentos, se for o caso, aos estoques não devendo essa reintegração comprometer o funcionamento eficaz do sistema de distribuição. “Se a não conformidade detectada for menor, deve-se abrir um Capas (ferramenta de avaliação de ações preventivas e corretivas), fazer análise do produto e se os resultados estiverem satisfatórios fazer sua liberação”, revela Daniela. “Todo cuidado é pouco, uma vez que no final da cadeia logística existe uma vida humana”, completa.