A quarta revolução industrial está em marcha, a primeira iniciada no novo século. Nela, as máquinas estão ficando cada vez mais inteligentes e há uma convergência de tecnologias nunca antes vista na História. A internet das coisas (IoT) com análises de dados (big data) e robótica inteligente permitirão a automatização total da indústria. Nesse cenário, o mundo do trabalho e da educação mudará em igual proporção. “Estamos a bordo de uma revolução tecnológica que transformará fundamentalmente a forma como vivemos, trabalhamos e nos relacionamos. Em sua escala, alcance e complexidade, a transformação será diferente de qualquer coisa que o ser humano tenha experimentado antes”, revela Klaus Schwab, autor do livro ‘A Quarta Revolução Industrial’.
Em paralelo, surge o termo Educação 4.0 – expressão emprestada da Indústria 4.0 para designar as transformações que estão acontecendo na área educacional para dar suporte aos desafios impostos à aprendizagem em um ambiente altamente tecnológico. Ganharão espaço os profissionais versáteis, criativos, colaborativos e dinâmicos, que manejam habilmente competências técnicas e buscam ampliar continuamente seus conhecimentos. Em termos educacionais, o Brasil já investe na formação de estudantes aptos a lidar com essa realidade, em que as tradicionais aulas expositivas replicando conteúdo cedem espaço para o desenvolvimento de novas competências. Nesse modelo, os conceitos de ciências, tecnologia, engenharia, artes e matemática são integrados e discutidos em torno de projetos colaborativos, visando a busca por novas soluções. Na área de saúde, engenharia genética e neurotecnologia despontam como campos promissores do conhecimento, abrindo novos horizontes de atuação para os farmacêuticos.
Indústria 4.0
Sinônimo para a nascente quarta revolução industrial, o termo Indústria 4.0 foi criado na Alemanha para designar as transformações do setor industrial impactado pela área de tecnologia da informação – TI (informatização da manufatura). A primeira revolução industrial, entre 1760 e 1830, teve como referência a máquina a vapor, e marcou a mecanização em substituição à produção manual. Por volta de 1850, teve início a segunda, que trouxe a eletricidade e permitiu a manufatura em massa, com o surgimento das primeiras linhas de montagem. Já a terceira onda industrial ocorreu a partir de meados do século 20, com a chegada da eletrônica, das telecomunicações e da tecnologia da informação, sendo que sua fase de ouro se deu entre as décadas de 1970 e 1980, com o barateamento, confiabilidade, miniaturização e acessibilidade das novas tecnologias. Isso deu o impulso necessário para que outra revolução surgisse, a primeira do século 21.
Segundo especialistas, três aspectos explicam por que o movimento atual é considerado uma nova revolução industrial e não apenas uma extensão da terceira: velocidade, alcance e impacto em todos os setores da economia. Trata-se de uma revolução resultante da convergência digital, física e biológica com base tecnológica da inteligência artificial. “Não são modificações pontuais, mas uma evolução nas pesquisas, desenvolvimentos e demandas de TI para suprir as necessidades das empresas, com o propósito da flexibilidade de produção, automatização e redução de custos”, afirma Jorge Vicente Lopes da Silva, coordenador do Núcleo de Tecnologias 3D do Centro de Tecnologia da Informação (CTI) Renato Archer, ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC).
Silva destaca que a indústria 4.0 tem sobressaído como a solução futura para as empresas, integrando várias tecnologias habilitadoras, como a internet das coisas (IOT), manufatura aditiva (impressão 3D), robótica inteligente, simulação computacional, big data, entre outras, de forma que os sistemas de uma empresa possam ter mais autonomia na produção, permitindo integração completa, tanto verticalmente dentro da empresa, como horizontalmente com seus fornecedores, parceiros e clientes, com o mínimo de intervenção humana. “No fundo, é uma convergência das tecnologias atuais, que estão em estágios distintos de desenvolvimento, com a possibilidade de outras que ainda nem sabemos quais serão”, sustenta o coordenador do CTI. “A extrema convergência que estamos vendo entre os meios tecnológicos, físicos, biológicos, sociais, culturais e ambientais, e a transição da revolução digital para uma nova revolução industrial, indica que haverá uma melhoria da qualidade de vida das pessoas, assim como uma maior cobrança na qualificação profissional”, acrescenta Fabiana Alves, coordenadora do curso de bioinformática do Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix.
Impacto no setor farmacêutico
Projeções da Confederação Nacional da Indústria (CNI) indicam que a indústria 4.0 deve atingir perto de 22% das empresas brasileiras em menos de uma década – atualmente, o percentual é de 1,6%. No setor farmacêutico, alguns especialistas avaliam que essa expectativa seja atingida antes. Outros, mais cautelosos, analisam com mais cuidado essas projeções. “Vejo que são muito otimistas essas previsões ou ainda há um certo desconhecimento do que seria verdadeiramente a Indústria 4.0. Isso não desmerece os esforços e investimentos que as empresas estão fazendo, mas creio que ainda não haja, nem mesmo em laboratórios científicos fora do Brasil, a implementação da Indústria 4.0 no seu sentido mais estrito”, afirma Jorge Vicente Lopes da Silva.
De acordo com Jair Calixto, diretor de Assuntos Técnicos e Inovação do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos no Estado de São Paulo (Sindusfarma), algumas empresas do setor produtivo farmacêutico estão se movendo na direção da indústria 4.0, mas ainda é um movimento incipiente. “A automação na indústria farmacêutica ainda não contempla a convergência física, biológica e digital”, salienta o executivo. Para tanto, segundo ele, os processos precisariam ser agrupados e reorganizados, de acordo com a evolução regulatória dos últimos anos. “O setor está agora na fase de revisão e adaptação dos processos produtivos às novas normas. Concluída esta etapa, será possível projetar a utilização dos conceitos da indústria 4.0”, diz Calixto.
O que tem avançado mais rapidamente é a automatização de determinadas áreas. Algumas indústrias farmacêuticas trabalham com armazéns automatizados, nos quais a movimentação de produtos é realizada por empilhadeiras controladas por computadores e determinadas máquinas integradas por computadores controlam a produção. O caso mais conhecido, segundo Calixto, é o do laboratório EMS, que desenvolveu um sistema robotizado de pesagem de matéria-prima e programas integrados que permitem reprodução mais precisa dos processos em sua fábrica de Manaus. No sistema da EMS, o processo de fabricação dos medicamentos é totalmente automatizado e a documentação eletrônica elimina o uso de papel. As máquinas e operações são integradas por softwares, possibilitando o acompanhamento em tempo real dos procedimentos. “A adoção desses sistemas inteligentes tende a crescer no setor”, diz o executivo do Sindusfarma.
Na área médica, as aplicações de TI também ganham espaço, sustenta Jorge Vicente Lopes da Silva. Ferramentas de simulação computacional, que hoje são usadas no desenvolvimento de produtos, terão em breve seus análogos para a indústria da saúde em geral, envolvendo a convergência das tecnologias virtuais e físicas, no sentido de se provar conceitos ou opções antes de se construir ou produzir, cujo custo é altíssimo no campo biológico. “É uma nova área de desenvolvimento em que se insere, por exemplo, a biofabricação de tecidos e órgãos voltados para transplantes ou para criação de novas drogas com redução ou eliminação do uso de cobaias nos testes”, revela o executivo.
Educação 4.0 e a carreira farmacêutica
Há várias iniciativas no sentido de aproximar os avanços tecnológicos, especialmente na área de saúde, com a formação de novos profissionais. Isso tem estimulado a criação de cursos de graduação e pós-graduação em áreas como biotecnologia e bioinformática. No portal do Ministério da Educação (MEC), há o registro de 50 cursos de graduação em biotecnologia no Brasil. “Entender a quarta revolução industrial como consequência da influência computacional, cada vez mais acentuada e presente no cotidiano, nos permite compreender a importância da biotecnologia e da bioinformática nesse processo evolutivo industrial, afirma Tarcísio Liberato de Souza Júnior, professor do ICTQ. “Os cursos de biotecnologia buscam a integração do conhecimento científico com algoritmos computacionais, para a geração de conhecimento específico, contribuindo com novas práticas médicas, facilitando o diagnóstico e indicando a melhor forma de tratar o paciente individualmente”, assinala.
Segundo Tarcísio Souza, o curso de pós-graduação em biotecnologia do ICTQ permite ao farmacêutico e outros profissionais interessados uma formação ampla e diversificada, tanto nas áreas biológica, de saúde, mercado e legislação, como em disciplinas técnicas do setor produtivo biotecnológico, abordando as principais técnicas de engenharia genética e bioinformática. O curso proporciona formação consolidada em diversas áreas do conhecimento científico, como: genética, biologia molecular, biologia celular, microbiologia, engenharia bioquímica, bioquímica, bioinformática, biossegurança, bioética. “O formado terá um perfil multidisciplinar, capacitado para atuar em diversos segmentos avançados”, afirma o professor.
O profissional especializado em biotecnologia tem um amplo campo de atuação na indústria farmacêutica dedicada à inovação. “Existe uma demanda crescente por recursos humanos envolvidos no processo de pesquisa, desenvolvimento e fabricação de produtos biotecnológicos. Grandes empresas do setor instaladas no País buscam profissionais especializados e capacitados que possam trabalhar com produtos inovadores, contribuindo para a diferenciação no mercado”, destaca Tarcísio Souza. Os setores de atuação para o farmacêutico especializado em biotecnologia são variados, como a produção de biofármacos, vacinas e anticorpos monoclonais, úteis em tratamentos complexos; produção de reagentes para laboratórios; controle de qualidade de biofármacos; controle de qualidade de alimentos transgênicos; e tratamento biológico de resíduos e projetos para qualidade do meio ambiente.
Já a bioinformática é uma área da biotecnologia que corresponde à aplicação de técnicas computacionais com o intuito de entender o comportamento biológico em amostras complexas. Estudos avançados em câncer e doenças crônicas utilizam as ferramentas disponíveis em computação para o entendimento das alterações gênicas, bem como as variações proteicas em larga escala, impossíveis de serem analisadas individualmente por técnicas manuais. “A variabilidade biológica existente entre pacientes que são diagnosticados com a mesma doença pode ser mensurada e esclarecida com modelos computacionais desenvolvidos por bioinformatas, contribuindo assim para o desenvolvimento de terapias dirigidas, melhorando o prognóstico de doenças de difícil diagnóstico e tratamento”, sublinha Tarcísio Souza.
De acordo com Fabiana Alves, do Centro Universitário Izabela Hendrix, o primeiro a oferecer um curso de graduação específico em bioinformática do Brasil, o avanço da biologia molecular nas últimas duas décadas aumentou a quantidade e a complexidade de dados biológicos gerados, e o bioinformata passou a exercer papel fundamental na criação, desenvolvimento e operação de banco de dados e outras ferramentas computacionais para coletar, organizar e interpretar informações biológicas. “O bioinformata é um profissional multidisciplinar que agrega conhecimentos das biociências, informática e ciências exatas para gerenciamento, análise e prognóstico de dados médicos e biológicos – elementos ou medidas coletados a partir de fontes biológicas como DNA, RNA, proteínas e enzimas”, explica.
Para quem procura especialização, universidades como USP e UFMG oferecem cursos de pós-graduação em bioinformática. “Tanto as ciências biológicas quanto certas indústrias estão no momento lidando com o problema de ‘big data’, ou seja, enormes quantidades de dados. Isso criou uma nova categoria de profissional ou cientista, que é o ‘data scientist’. Um curso de bioinformática hoje tem que treinar alunos nos métodos que permitem organizar e mineirar essas vastas quantidades de dados”, revela João Carlos Setúbal, coordenador do curso de pós-graduação em bioinformática da USP. Entre os temas de abrangência do curso, o professor destaca a genômica, que aparece em varias aplicações, incluindo medicina, veterinária, agronomia, e ciências ambientais; desenvolvimento de novas técnicas e softwares para problemas da biologia; e modelamento matemático baseado em redes, que encontra múltiplas aplicações também na biologia.
A bioinformática abre novas perspectivas de trabalho para o farmacêutico. Necessidades qualitativas e quantitativas tornam o setor farmacêutico muito propício à bioinformática, que tem dois grandes pontos-chave na indústria farmacêutica: aumento da lucratividade e eficácia na produção dos medicamentos, avalia Fabiana Alves. “O bioinformata é primordial na seleção de moléculas biológicas alvos para um determinado fármaco. É ele quem irá selecionar essas moléculas e manipular corretamente os dados para obter as melhores interações e informações sobre a ancoragem realizada. O profissional pode, ainda, desenvolver programas que permitam estudar alterações de estruturas de moléculas, visando produzir drogas mais efetivas e com melhor custo benefício”, esclarece. “Na área farmacêutica, não só no Brasil como no exterior, há cada vez mais a necessidade de aproximar áreas interdisciplinares com o intuito de desenvolver soluções habilitadoras da nova indústria com base na engenharia e seus métodos com que podemos chamar de Saúde 4.0”, observa Jorge Vicente Lopes da Silva.