No Centroflora Inova, no Techno Park de Campinas, seis engenheiros da startup Nintx (Next Innovative Therapeutics) financiados pelo fundo Pitanga passam o dia simulando o ambiente do intestino humano in vitro para desenvolver probióticos naturais. A impecável planta-piloto em que trabalham é o centro de pesquisa, desenvolvimento e inovação do Grupo Centroflora, que incuba projetos ousados como o da Nintx e em nada se parece à fabriqueta rudimentar que Peter Andersen, o presidente do grupo, herdou do seu pai, Kjeld Andersen, em 1988.
O dinamarquês Kjeld chegou ao Brasil aos 25 anos como estagiário em Santos da Este Asiático - empresa dinamarquesa que tinha operações no Brasil e atuava em metalurgia, motores, embalagens, navegação e café - e nunca mais voltou à Europa. Casou com uma carioca, foi cônsul honorário do seu país, mas, vendedor nato que era, ganhou a vida no comércio de café. De um conterrâneo, comprou na década de 1980 a pequena Centroflora, que, na época, produzia apenas um extrato simples de alcachofra fornecido ao laboratório Millet Roux - era o insumo básico do fitoterápico Chophytol. Hoje a Centroflora é líder em fornecimento de insumos e extratos vegetais para a indústria farmacêutica, com faturamento previsto em 2023 de R$ 130 milhões.
Kjeld faleceu aos 63 anos, de câncer de próstata, e foi em seus momentos finais que delegou ao filho a missão de cuidar da família e dos negócios dali em diante. A Centroflora funcionava em uma sala precária em Santo Amaro, na zona sul de São Paulo, que alagava a cada temporal.
A gente, infelizmente, não tem uma cultura de inovação radical. Entro na farmácia e só enxergo fitoterapia estrangeira na prateleira"
“Tinha que trabalhar de botas, sujo, com a lama na canela. Precisava levantar as caixas com os suprimentos para não molhar tudo... Marcava reunião com os clientes em churrascarias porque não podia mostrar aquele ambiente. Passei anos sonhando com uma fábrica decente”, relembra o herdeiro. Na época, ele cursava engenharia química na Faculdade Oswald Cruz.
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Sem dinheiro para aprimorar o negócio, Peter Andersen pegou empréstimo do BNDES a juros altos e comprou uma máquina de secagem na esperança de desidratar alimentos que rendessem bons concentrados. “Eu e Michael [irmão e sócio de Peter] passávamos as noites rezando na boca daquele ‘spray dryer’ [secador industrial] para que saísse dali um bom produto”, ri, enquanto beberica a água gaseificada com calda de capim-santo do Cabruca, na Faria Lima. O restaurante que escolheu para este “À Mesa com o Valor” é mais um projeto de um ex-sócio, Guilherme Leal, fundador da Natura. Andersen chegou com 20 minutos de antecedência, animado para tratar da sua história pessoal e profissional, e não pediu horário para o fim do encontro.
Com as prestações vencendo e a carência curta do empréstimo, a dupla (ele e o irmão, sócio até hoje) entrou em default. A situação só começou a melhorar quando, em 1996, conheceu representantes da Amway em uma feira na Califórnia, onde foi atrás de clientes para os desidratados. Na época, a gigante americana precisava da acerola que usa, até hoje, em sua linha de suplementos, a Nutrilite. As conversas avançaram e Andersen conseguiu um empréstimo equivalente a US$ 1 milhão para testar a técnica de desidratação da fruta, rica em vitamina C.
O spray dryer funcionou e a dupla obteve, a partir de um concentrado de acerola verde, um bom pó para vender para a Amway. Como o empréstimo foi tomado em real e ele recebia em dólar, pela exportação do produto, Andersen conseguiu quitar a dívida rapidamente, em 1999. “Demos muita sorte. Acredito nessa coisa de energia porque toda vez que estive no buraco, alguém apareceu para me dar a mão”, diz.
Um novo contato comercial surgiu - desta vez um austríaco com negócios em maquinários em São Paulo, que apresentou Andersen a Gernot Langes-Swarovski, o bilionário austríaco “rei dos cristais”. Swarovski já andava pelos rincões da América do Sul, onde havia acabado de comprar a Bodega Norton, centenária vinícola argentina, ao se apaixonar pela região de Mendoza. Foram alguns anos de relacionamento até o megainvestidor resolver abraçar a ideia da Centroflora de apoiar agricultores orgânicos, comprando as plantas diretamente das famílias rurais, eliminando atravessadores e ajudando na preservação.
Em 1998, dez anos após Andersen assumir a empresa, Swarovski decidiu entrar no negócio e investir na fábrica com que Andersen sempre sonhou, a atual Centroflora Phyto, em Botucatu (SP). Em 2001, a unidade de extratos botânicos do grupo foi inaugurada.
O processo de desindustrialização é uma coisa séria porque não tem mágica! Se não tem indústria e se a economia não anda, faltam empregos"
Andersen não esconde o afeto que guarda do empreendedor falecido há dois anos. “Gernot foi como um pai. Ele era carismático, e eu gostava muito dele”, recorda. A sociedade entre ambos durou cerca de dez anos. No entanto, nesse período, Swarovski o cobrava pela compra de sua parte no negócio, já que o bilionário não tinha interesse em permanecer sócio de um laboratório no Brasil por muito tempo.
Diante da cobrança, e sem dinheiro para comprar a fatia do austríaco, Andersen rodou pelos bancos da Faria Lima coletando propostas de investimento. “Quando mostrei aquilo para Gernot, ele simplesmente rasgou a papelada toda. Me perguntou quanto tempo mais precisaria para acertar as contas... Eu pedi por seis anos, e ele me deu”, conta. Com a fábrica nova funcionando a pleno vapor e as vendas acontecendo, Andersen conseguiu honrar o prazo firmado com Swarovski. Em 2010, assumiu a totalidade da Centroflora.
Hoje, Andersen desfruta do fato de ter posicionado o grupo familiar como líder nacional em IFA-Vs (Insumos Farmacêuticos Ativos Verdes) - IFA é a substância química com propriedades medicamentosas de cada remédio - e um dos poucos laboratórios do país que produzem IFA sintético.
“Mas o crescimento foi doloroso porque a taxa de juros sempre foi alta e você nunca tem previsibilidade para o câmbio no regime flutuante. Trabalho com exportação e contratos de longo prazo, então sempre tive medo do dólar”, diz.
Apaixonado por vendas, como o pai, Andersen, no entanto, conseguiu driblar as dores do negócio e prosperar. Além dos equipamentos em Botucatu e Campinas, possui uma fábrica de óleo da erva-baleeira, no Delta do Parnaíba, no Piauí, inaugurada em 2011. Lá, também está sua unidade de IFA, produtora de dois terços dos sais de pilocarpina consumidos no mundo - algo em torno de 2,5 toneladas ao ano que exporta para Estados Unidos, Europa e China. O remédio, derivado das folhas do jaborandi, é usado no tratamento do glaucoma.
Já o óleo da erva-baleeira fornece para o Aché, fabricante do Acheflan, case de sucesso da indústria fitoterápica. Victor Siaulys, ex-presidente do laboratório de Guarulhos, também incentivou Andersen a apostar em fitomedicamentos. “Este foi um visionário nacionalista. Siaulys sempre falou que o setor precisava empreender mais e valorizar a nossa cultura”, diz. Siaulys foi amigo de Andersen por décadas até falecer, em decorrência de uma leucemia, em 2009.
O portfólio da Centroflora inclui, além do óleo e da pilocarpina produzidos no Piauí, 33 extratos botânicos fabricados a partir de camomila, confrei, sene, entre outras ervas. O grupo, que tem Dirceu Barbano (ex-Anvisa) e Luiz Penno (da assessoria de fusões e aquisições Ártica) no Conselho Consultivo, vem apresentando crescimento orgânico de 20% ao ano e está entusiasmado com sua mais nova unidade: o centro de PD&I de Campinas, no qual investiu R$ 22 milhões. A intenção do time é alavancar a inovação radical via parcerias com instituições públicas e privadas para desenvolvimento de medicamentos inéditos, de base natural.
Na fábrica, qualificada para os testes clínicos em diferentes grupos de pacientes, a chamada Fase 3 do desenvolvimento de um medicamento, trabalham 40 profissionais do quadro de 210 funcionários da empresa. Andersen diz que o equipamento está aberto ao mercado interessado em inovar.
“O país precisa sair da condição de exportador de commodities primárias para começar a pensar em propriedade intelectual. A gente, infelizmente, não tem uma cultura de inovação radical. Entro na farmácia e só enxergo fitoterapia estrangeira na prateleira. Gostaria que mais empresas nacionais pensassem no desenvolvimento de fitoterápicos”, diz.
No almoço com a reportagem, pede o prato do dia sem delongas após mais de duas horas de conversa em que sequer petiscou a entrada, chips crocantes de farinha de inhame. Acha o prato, arroz de castanha de caju com moqueca de pirarucu (peixe selvagem da Amazônia, de manejo sustentável), bem-servido e finaliza apenas com um café expresso. Não tem apetite para a variedade de bombons de chocolate fabricados ali mesmo, já que o restaurante fica no último andar da loja-conceito da Dengo. “Este lugar é a cara do Guilherme [Leal]”, comenta enquanto admira o espaço, o mais alto edifício em madeira de reflorestamento do país, cheio de referências à ecologia brasileira.
Aos 62 anos, Andersen conta que anda feliz e satisfeito. Quando pode, faz mergulho - o último foi em Galápagos com a família. Desde criança, joga golfe. “Sou um eterno otimista e acho que, até certo ponto, nasci assim. Sou grato por tudo que conquistei, na verdade. Tenho a impressão que há sempre alguém olhando por nós”, acredita, mencionando a parábola cristã “Pegadas na areia”.
Pai de quatro filhos, dois deles vivendo no exterior e dois no Brasil, usa da experiência para orientá-los. Um deles, Lucas Andersen, seguiu os passos paternos e lançou a Tato Senses, marca de loções hidratantes e antissépticas, com fragrâncias da biodiversidade, concebida na pandemia. O conselho que dá ao filho é investir energia nas vendas. “Uma empresa precisa fechar negócio. Não dá para perder muito tempo estruturando a empresa sem vender”, opina.
As parcerias comerciais também vão bem. Por meio de uma joint-venture com a suíça Givaudan, a Centroflora participa da Brazbio, também em Botucatu, criada em 2018 para fortalecer as cadeias produtivas da sociobiodiversidade. Pela gestão compartilhada, as empresas visam repartir os benefícios do negócio com 4 mil famílias agricultoras espalhadas pelo país. Trata-se de pequenos produtores de plantas medicinais orgânicas que têm a garantia da compra a preço estável e conseguem faturar até R$ 30 mil por hectare/ano.
Um exemplo de cadeia estruturada que ilustra a proposta é a do maracujá-roxo, com cultivos no Paraná e São Paulo. Das folhas da trepadeira, Andersen produz extratos secos e fluidos, os IFA-Vs de ansiolíticos populares como Seakalm e Sonozzz. O aumento dos casos de transtornos mentais na pandemia levou a procura pela passiflora, a planta medicinal cujo extrato é a base dos ansiolíticos, às alturas. As vendas do extrato verde cresceram 400% nos últimos três anos e permanecem em patamar elevado. Há agricultores na fila para participar do programa de parcerias.
Outra parceria de peso foi estabelecida há nove anos pela Phytobios, braço de inovação da Centroflora, com o Laboratório Nacional de Biociências, do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), instituição privada supervisionada pelo Ministério da Ciência e Tecnologia e estabelecida em Campinas. É a Phytobios que administra os dez pedidos de patentes que a companhia tem depositado no país e no exterior.
A partir de exsicatas de raízes, folhas, frutos e cascas de 617 espécies brasileiras coletadas no campo, pesquisadores prepararam amostras que já renderam mais de 6 mil frações congeladas, compondo uma biblioteca de substâncias bioativas. As amostras podem ser licenciadas para estudos pré-clínicos por laboratórios. É a etapa inicial da descoberta do medicamento. A coleção de frações químicas é constantemente atualizada com novas amostras vegetais e exclusão daquelas que se deterioraram. Segundo Andersen, o Centroflora Inova foi aberto justamente com a ideia de incubar esses projetos para a descoberta das moléculas do futuro. Chamada de Brazilian Biodiversity Molecular Power House, a iniciativa usa o sofisticado acelerador de partículas Sirius e já mapeou várias famílias botânicas endêmicas da Amazônia, cerrado, caatinga e Mata Atlântica. O projeto não tem data para acabar.
Vice-presidente da Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos (Abiquifi), Andersen puxa o coro dos descontentes com a extrema dependência do país de IFAs importados da China, Índia e Europa. Na década de 1980, o país chegou a produzir metade dos IFAs de que precisa, mas muitas multinacionais migraram para a China na década seguinte. Hoje, produz apenas 5%. “Eu avisei na reunião da transição que nenhum governo ficará de pé se faltar remédio”, fala em tom de alerta, reiterando que nota que a sociedade e o governo não têm noção dos perigos do desabastecimento. “O país também não tem um plano nacional de contingência”, frisa.
Para o executivo, disrupções nas cadeias globais de suprimentos, como aquelas causadas pela guerra na Ucrânia, podem comprometer o abastecimento de medicamentos essenciais, os chamados “salva-vidas”, dos quais dependem a vida de milhares de brasileiros, como a insulina, importada justamente de Kiev para o SUS por um laboratório oficial até a eclosão do conflito. No ano passado, a Abiquifi identificou 50 moléculas essenciais para a saúde pública, que vão de hipertensivos a antiepilépticos.
O estudo foi apresentado ao Ministério da Saúde e, atualmente, a entidade setorial mantém tratativas com a Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde, tentando sensibilizar o novo governo para a questão, que considera grave. Para ele, o governo, se quiser resolver a crise do desabastecimento, vai precisar compactuar uma política de longo prazo que contemple a consolidação de um parque nacional produtor dos IFAs alinhado às demandas da população e em parceria com a indústria.
O empresário acredita que o Brasil acomodou-se em importar IFAs, mas que este modelo precisa mudar radicalmente. “O país conseguiu destruir sua indústria e nos tornamos fábricas de cópias. Nossos galpões tornaram-se armazéns do comércio online de produtos importados. O processo de desindustrialização é uma coisa séria porque não tem mágica! Se não tem indústria e se a economia não anda, faltam empregos”, afirma Andersen.
As taxas de desmatamento também incomodam o empresário, que se refere à biodiversidade brasileira como “biblioteca de Alexandria”. “Precisamos ler as nossas bibliotecas e não queimá-las. Aliás, só se fala nisso agora, né?”, disse na cerimônia de inauguração do Centroflora Inova. Ele lembra que, além de destruir o patrimônio genético que poderia fornecer as moléculas do futuro, a devastação da biota traz sérios empecilhos à bioprospecção. Atualmente, a Phytobios é a única empresa privada do setor a dedicar-se à atividade.
Ao procurar por medicamentos na natureza, a empresa tem que ter alguma segurança de que o ecossistema onde a planta foi coletada será preservado. Afinal de contas, muitas vezes, a sobrevivência de uma espécie vegetal ou micro-organismo depende de um conjunto de fatores dinâmicos interagindo entre si na natureza, cujo equilíbrio não pode ser perturbado. Caso a pesquisa venha a comprovar feito terapêutico de algum composto natural, o laboratório vai precisar da matéria-prima disponível por décadas. A atividade exige muito cuidado.
Ainda assim, botânicos da Phytobios sairão a campo para explorar o cerrado neste ano. Os cientistas acreditam que o bioma abriga plantas com metabólitos promissores para a indústria farmacêutica, como flavonóides. Andersen não deve juntar-se à aventura, já que tem outras tarefas importantes para tocar. expedição é só um dos projetos do planejamento trienal que apresentou para a firma no começo do ano. Outras tarefas são transformar a Centroflora em uma companhia “paperless”, digitalizando todos os processos internos, e impulsionar a inovação nos departamentos. Mas, claro, terão que ser inovações ousadas, grandes avanços.
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