O escritor Lira Neto confessa que foi difícil escrever a sua mais recente obra, “A vacina sem revolta - A luta de Rodolpho Theophilo contra o poder e a peste” (Bella Editora, 256 págs., R$ 70), em que detalha - com uma absurda quantidade de informações bem documentadas - o período da vida do farmacêutico Rodolpho Theophilo em que ele se dedicou a vacinar a população do Ceará numa campanha bancada com seus próprios recursos.
Ao dedicar a publicação às vítimas da covid-19, Lira explica que sua dificuldade veio da angústia, amargura e indignação “diante da constatação de que a história se repetia com os mesmos ingredientes de descaso, insensibilidade e desatino, por parte das autoridades, dos quais tanto se queixava Rodolpho”, escreve no posfácio do livro.
Muitos trechos do livro também são difíceis para os leitores pelas descrições vívidas e cruas de situações desalentadoras, especialmente dos momentos trágicos em que cidades como Maranguape e Fortaleza são vítimas de epidemias devastadoras, de cólera e de varíola. Lira Neto confirma que mexer com os leitores é mesmo sua intenção: “Não escrevo livros de autoajuda. Gosto de incomodar o leitor, provocá-lo, tirar-lhe do estado de comodidade. O conhecimento da história não serve para aplacar consciências, mas para fustigá-las”, diz ele em entrevista ao Valor.
João de Lira Cavalcante Neto, nascido em Fortaleza no dia de Natal de 1963, é hoje provavelmente o escritor brasileiro de maior destaque pelas biografias que escreveu, principalmente pelos três volumes em que dissecou vida e morte de Getúlio Vargas - que já venderam 230 mil exemplares, feito considerável pelos padrões do mercado brasileiro.
Agora ele volta a escrever sobre uma figura emblemática no combate a pandemias, embora muito menos conhecido nacionalmente que o médico sanitarista Oswaldo Cruz, que, no início do século XX, acabou desencadeando uma revolta na cidade do Rio de Janeiro, então capital do Brasil, ao liderar o movimento pela obrigatoriedade da vacinação da população. O título da nova publicação de Lira Neto é uma referência exatamente à situação protagonizada por Oswaldo Cruz.
O farmacêutico Rodolpho Theophilo também liderou, no Ceará na segunda metade do século XIX, a campanha a favor da vacina, sem que tivessem ocorrido manifestações contrárias como aconteceria poucos anos depois no Rio. O primeiro livro escrito por Lira Neto foi uma biografia de Theophilo, mas agora ele concentra suas atenções no período de enfrentamento às pandemias.
Theophilo poderia ser definido pela expressão em inglês “larger than life”, no sentido de sobre-humano. Fortaleza, onde ele morou boa parte da sua vida, enfrentava nos anos de 1870 uma sobreposição de crises.
A seca severa no interior do estado levara milhares de pessoas a procurar refúgio por assim se dizer na capital, onde ficaram amontoadas em praças e ruas. O que acelerou a expansão de doenças gravíssimas, como varíola, com efeitos aterradores. Segundo informações coletadas pelo escritor, “estimava-se que, em uma cidade de 100 mil habitantes - contados os moradores fixos e os adventícios -, já existiam cerca de 80 mil pessoas infectadas, o que representava um espantoso índice de contaminação da ordem de 80%”.
Receba nossas notícias por e-mail: Cadastre aqui seu endereço eletrônico para receber nossas matérias
A reação de Rodolpho Theophilo foi surpreendente: não sendo rico nem governante, decidiu ele mesmo passar a vacinar as pessoas depois que campanhas de incentivo não deram certo. Na sequência, ele passou inclusive a produzir a vacina, com a ajuda apenas da mulher e de um único empregado. O que bancava tudo era seu salário de professor de um colégio e os resultados das “vendas de bebida não alcoólica, de cor âmbar, fabricada por ele com base na clarificação e pasteurização do suco de caju, engarrafado sob os nomes comerciais de ‘néctar de caju’ e ‘champanhe de caju’”.
Os relatos sobre Fortaleza daquela época e o Brasil (e outros países) dos últimos anos guardam enorme semelhança entre si nas reações das pessoas - especialmente dos governantes - e de muitas empresas. Um dos pontos comuns é o aparecimento nas duas situações de remédios supostamente milagrosos.
Lira Neto conta que “os jornais da época estavam cheios de anúncios a respeito de fórmulas e produtos químicos apresentados como ‘descobertas revolucionárias da medicina’ para o enfrentamento das bexigas. ‘Xylol: este novo e importante medicamento que em Berlim acaba de ser reconhecido como infalível para a cura da varíola se encontra na farmácia e drogaria de Bartolomeu & Cia’, dizia uma dessas propagandas”.
Ainda mais reveladora de como a história muitas vezes se repete é outra observação de Lira Neto. “Porém, a mais citada de todas as supostas panaceias era mesmo o sulfato de quinina, alcaloide extraído da casca da quina - arbusto também conhecido como cinchona -, já amplamente utilizado na composição de medicamentos contra a malária, incluindo, mais tarde, a cloroquina.” Não é preciso comentário algum.
Eis a entrevista concedida por Lira Neto por e-mail:
O senhor já tinha escrito um livro, o seu primeiro, sobre o farmacêutico Rodolpho Theophilo. Foi a similaridade do que aconteceu no Ceará nos idos de 1870 e a atual pandemia a principal razão de o senhor ter voltado ao personagem?
Lira Neto: De certa forma, sim. “O poder e a peste” foi meu primeiro livro, publicado em 1999. Encontrava-se fora de catálogo. Como um trabalho de estreia, escrito há mais de 20 anos, eu via nele muitas imperfeições e lacunas. Muitos leitores pediam-me uma reedição. As similitudes com a atual pandemia - inclusive os negacionismos oficiais – animaram-me a retornar à história de Rodolfo.
O senhor acha que o Brasil e nossos dirigentes não aprenderam nada com outras epidemias, como a da varíola no Ceará?
Lira Neto: Não digo isso. Toda generalização é temerária. Alguns estados foram competentes no ataque ao problema. O problema é que temos à frente do governo federal um desclassificado, cercado de cúmplices bajuladores e cínicos.
Quanto tempo o senhor gastou escrevendo “A vacina sem revolta”?
Lira Neto: Como havia uma pesquisa prévia, levei menos tempo do que de costume, em relação a outros livros nos quais trabalhei. Mas as circunstâncias da pandemia, com a perda de amigos próximos e de parentes internados em estado grave, tiraram-me parte da concentração necessária, interferindo no cronograma inicial.
As cenas em que o senhor descreve a fuga dos flagelados do interior do estado para Fortaleza e as condições em que eles passaram a viver são muito impactantes, assim como a descrição sobre as mortes provocadas pela cólera e a varíola. O senhor acha que essas cenas podem assustar o leitor?
Lira Neto: Espero que sim. Não escrevo livros de autoajuda. Gosto de incomodar o leitor, provocá-lo, tirar-lhe do estado de comodidade. O conhecimento da história não serve para aplacar consciências, mas para fustigá-las.
Seus livros se destacam pela pesquisa extensiva e aprofundada sobre as pessoas e as circunstâncias retratadas. Como o senhor se organiza para fazer essas pesquisas?
Lira Neto: O primeiro passo é proceder a uma revisão bibliográfica em torno do tema, procurar ler tudo de relevante que já se escreveu e publicou sobre o assunto. Depois, partir para a pesquisa das fontes primárias, ir aos arquivos, consultar jornais de época, escarafunchar documentos, cartas, diários, fotografias
O senhor recorre muito a jornais. Como é sua pesquisa especificamente nos periódicos? As coleções de jornais e revistas estão bem preservadas no Brasil e em Portugal?
Lira Neto: Hoje, felizmente, os principais jornais brasileiros e portugueses podem ser consultados digitalmente, nas hemerotecas digitais das respectivas Bibliotecas Nacionais. As principais instituições arquivísticas, como o Arquivo Nacional, no Brasil, e a Torre do Tombo, em Portugal, também passaram a oferecer acesso digital aos seus acervos. Para o pesquisador, isso significa considerável economia de tempo e de dinheiro antes gastos em viagens e deslocamentos para a consulta em arquivos físicos.
O senhor está morando na cidade do Porto. Pode informar qual o tema do seu próximo livro e se está pesquisando sobre ele em Portugal? Aliás, Portugal está sendo inspiração para essa nova obra?
Lira Neto: Tenho vários projetos na fila. A maior parte deles ainda é segredo. No momento, finalizo o livro “A arte da biografia: como escrever histórias de vida”, uma espécie de manual prático, com algumas reflexões teóricas e conceituais, sobre a escrita biográfica. É o resultado do curso presencial homônimo que ministrei aqui, na Universidade do Porto, e que na semana passada (a primeira semana de abril) teve uma versão on-line, com inscrições abertas para o Brasil.
Numa entrevista recente ao UOL, o senhor comentou sobre sua vida em Portugal. Pensa em voltar a morar no Brasil?
Lira Neto: Enquanto o país estiver sendo governado por Bolsonaro e seus asseclas, vou ficando por aqui.
Participe também: Grupo de WhatsApp e telegram para receber notícias farmacêuticas
Obrigado por apoiar o jornalismo profissional