Na cadeia do medicamento, dúvida não se executa, dúvida se interrompe. Foi o que faltou no caso de Benício Xavier de Freitas, 6 anos, morto em Manaus (AM) após receber adrenalina por via endovenosa no Hospital Santa Júlia, na madrugada de 23 de novembro de 2025: a sucessão de barreiras que deveria travar a prescrição, a dispensação e a administração diante de qualquer incongruência (com destaque para a validação farmacêutica e a dupla checagem na ponta assistencial) não impediu que um erro ganhasse velocidade até virar dano irreversível.
Em dezembro, a investigação ganhou novos marcos: a Justiça do Amazonas negou a prisão preventiva da médica que prescreveu e da técnica de enfermagem que administrou o medicamento, mas impôs medidas cautelares, como afastamento do atendimento a pacientes e restrições de deslocamento e contato com familiares e testemunhas.
Em paralelo, reportagens baseadas em trechos do inquérito e em apuração interna do hospital apontaram falhas de protocolo, com destaque para a ausência de dupla checagem em medicamento de alta vigilância (alto risco), elemento central quando se discute segurança do paciente em pediatria.
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O ponto que interessa diretamente ao ICTQ – Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico (e ao farmacêutico hospitalar e clinico) é que, segundo informações constantes na investigação e em fiscalização do Conselho Regional de Farmácia do Amazonas (CRF-AM), não houve participação do farmacêutico na dispensação/análise da prescrição relacionada ao caso no pronto-socorro; em vez disso, o fluxo teria permitido a dispensação por auxiliar de farmácia, em um cenário descrito como carência de farmacêuticos nas farmácias satélites do Pronto-Socorro e do Centro Cirúrgico.
Onde a cadeia falhou (e por que seguir ordem não protege ninguém)
O processo de uso de medicamentos em hospital não é uma linha reta. Ele é uma sequência de barreiras desenhadas para impedir que um erro individual vire um evento fatal: prescrição → validação/análise farmacêutica → dispensação → preparo → administração → monitoramento. A Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 36/2013 e o Programa Nacional de Segurança do Paciente (PNSP) existem justamente porque incidentes acontecem, e precisam ser interrompidos antes do dano.
No caso Benício, o que está documentado publicamente até aqui aponta para quebra de barreiras críticas:
(1) uma prescrição com via de administração inadequada para o cenário descrito;
(2) ausência/fragilidade de checagens independentes na ponta assistencial; e
(3) um fluxo de farmácia que, segundo fiscalização e depoimentos, não assegurava análise farmacêutica prévia em setores sensíveis do hospital.
Fato: quando um profissional executa algo que considera errado, ou deixa passar algo que não foi checado, ele deixa de ser apenas elo e vira parte do evento. Ele é conivente! “Eu só cumpri a prescrição” é uma frase comum em inquéritos. E quase nunca funciona como escudo, porque protocolos existem para autorizar o profissional a dizer “não” e escalar a decisão.
O farmacêutico não é figurante: é barreira clínica e legal
Adrenalina (epinefrina) é amplamente reconhecida como medicamento de alto risco/alta vigilância em ambiente hospitalar: erros com dose, via, diluição e velocidade de administração têm potencial de causar dano grave. O Instituto para Práticas Seguras no Uso de Medicamentos (ISMP Brasil) reúne listas e diretrizes exatamente para orientar barreiras adicionais nesses fármacos.
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