Há evidências consistentes de que a terapia com larvas acelera o desbridamento. As larvas são criadas em ambiente estéril, de espécie específica e tamanho controlado. Elas são aplicadas sobre o leito da ferida dentro de um curativo de contenção, que impede que escapem e mantém um microambiente úmido. Durante um período curto, geralmente de 48 a 72 horas, as larvas secretam enzimas que dissolvem o tecido morto (necrótico) e o biofilme, amolecendo essa camada para que seja ingerida.
O tecido saudável, por ter estrutura e irrigação diferentes, tende a ser poupado: é por isso que o método é chamado de desbridamento seletivo. Ao final do tempo programado, o curativo é removido, as larvas são retiradas e o leito da ferida costuma estar mais limpo e vermelho, pronto para avançar no cuidado.
Esse atalho até um leito preparado é valioso em cenários complexos: feridas com muita crosta, úlceras venosas e pé diabético colonizado por biofilme recalcitrante. Do ponto de vista do paciente, há duas mensagens centrais: é uma terapia de tempo curto e controlado; e a sensação local costuma ser manejável quando o curativo é bem planejado.
A equipe, por sua vez, ganha uma opção quando o desbridamento cirúrgico é inviável naquele momento, quando o risco de sangramento é alto, ou quando tratamentos autolíticos e enzimáticos caminham devagar. Diretrizes de cobertura de players norte-americanos já listam a terapia com larvas entre as modalidades de desbridamento aceitas em indicações específicas, um indício de incorporação progressiva.
Evidências: o que os estudos mostram
O corpo de evidências é heterogêneo, mas consistente em um ponto: a terapia acelera o desbridamento. Ensaios randomizados e revisões mostram desbridamento mais rápido que hidrogéis autolíticos, embora o “tempo até cicatrização completa” varie conforme população, compressão/controle de edema e protocolo concomitante. No famoso VenUS II, por exemplo, a terapia com larvas não encurtou o tempo de cicatrização de úlceras de perna versus hidrogel, mas promoveu desbridamento mais veloz. Revisões e sínteses posteriores reforçam esse padrão: a vantagem está em limpar a ferida rapidamente para permitir a próxima etapa (enxertia, terapia por pressão negativa, curativos avançados).
Como é feito: passo a passo simplificado
A preparação inclui avaliação da ferida, analgesia adequada e proteção da pele ao redor. As larvas chegam em embalagem estéril; podem ser usadas soltas (livres dentro do curativo de contenção) ou em bolsas/saquinhos próprios (bagged larvae) quando se deseja reduzir a sensação local e facilitar a remoção.
O curativo de contenção, dispositivos com 510(k), mantém as larvas no local e deixa o exsudato drenar, evitando maceração. Após 1 a 3 dias, o curativo é aberto e todo o material é removido; se necessário, o ciclo é repetido. A cada sessão, a equipe reavalia dor, odor, exsudato e sinais de infecção, ajustando a estratégia.
Papel do farmacêutico
Em instituições que adotam a terapia, o farmacêutico pode atuar em quatro frentes: qualificação de fornecedores (criação/esterilização documentadas), logística (prazo, temperatura e integridade de embalagem), educação da equipe (posologia “em número de larvas por cm²”, escolha do curativo de contenção, descarte) e farmacovigilância (monitorar eventos, dor, sangramento, sinais de infecção). Como a atualização do FDA coloca o tema sob o CBER, cresce a expectativa de dossiês com controles biológicos detalhados, um ponto em que o farmacêutico, ao lado do time de qualidade, agrega valor.
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A terapia com larvas não substitui antibióticos quando há infecção sistêmica, não dispensa controle de edema/pressão e não resolve etiologias subjacentes (isquemia crítica, por exemplo). O sucesso depende do pacote completo: compressão em úlcera venosa, alívio de pressão em pé diabético, nutrição e manejo de comorbidades. Outro limite é cultural: há pacientes que rejeitam o método por repulsa. Informação clara, imagens de antes e depois e consentimento bem conduzido ajudam a superar essa barreira.
Enquadramento do FDA
Em 16 de outubro de 2025, a Food and Drug Administration (FDA) confirmou a transferência da responsabilidade regulatória pelos “medical maggots” — larvas estéreis usadas para desbridamento de feridas crônicas — do Centro de Dispositivos (CDRH) para o Centro de Biológicos (CBER). A mudança, iniciada por ato publicado no Federal Register em 30 de dezembro de 2024, não altera as indicações de uso já autorizadas, mas alinha o produto ao guarda-chuva regulatório de organismos vivos de uso terapêutico. Para quem acompanha inovação em cicatrização, é um sinal de consolidação da prática.
O marco regulatório original remonta a 12 de janeiro de 2004, quando o FDA liberou o 510(k) K033391 para “Medical Maggots” (código de produto NQK), descrevendo o uso em úlceras por pressão, úlceras venosas, pé diabético neuropático e feridas traumáticas ou pós-cirúrgicas que não cicatrizam. Trata-se de um dispositivo de prescrição: a terapia deve ser indicada por profissional habilitado e realizada por equipe treinada, com insumos produzidos sob condições controladas de qualidade e esterilização.
A transição para o CBER não reaprova o produto, mas muda quem supervisiona e orienta as futuras submissões e atualizações de dossiê. Para desenvolvedores e serviços, isso significa atenção maior a controles biológicos (linhagem, criação, esterilização, transporte) e à documentação de cadeia fria e rastreabilidade. O próprio FDA mantém a página de classificação do produto NQK com referência ao Federal Register e, em 2025, publicou listas e dossiês de 510(k) com documentos de suporte, reforçando transparência.
Para o Brasil, o enquadramento dependerá de como a autoridade sanitária classificar produtos biológicos vivos de uso médico. Enquanto isso, a experiência internacional oferece um roteiro: indicação precisa, fornecedores qualificados, curativos de contenção apropriados e protocolos de avaliação. Do lado da ciência, vale acompanhar estudos pragmáticos de custo-efetividade e comparativos diretos com desbridamento cirúrgico e tecnologias avançadas. Do lado regulatório, a mudança para o CBER sugere que futuras orientações técnicas foquem ainda mais em qualidade biológica e padronização de processo: exatamente o tipo de terreno em que a farmácia hospitalar e a indústria dominam.
Capacitação farmacêutica
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