Pode parecer contraintuitivo, mas alguns tipos de tumores podem ser tratados com doses menores de medicamento, alcançando os mesmos resultados, no mesmo tempo e com menos efeitos colaterais. Essa foi a conclusão de um estudo conduzido pelo A.C.Camargo Cancer Center, um hospital de São Paulo, em colaboração com centros oncológicos do Brasil, da Argentina e de Israel. Os pesquisadores avaliaram o uso do medicamento lenvatinibe, aprovado para vários tipos de tumores. O trabalho mostrou que doses de 8 a 10 mg por dia são tão eficazes quanto as de 24 mg recomendadas na bula, com a vantagem de reduzir a toxicidade. O controle da doença foi equivalente. Desde então, o A.C.Camargo passou a adotar o protocolo de meia dose. E esse não é um caso isolado: outros estudos vêm questionando a necessidade de doses elevadas em tratamentos contra o câncer e têm chegado a conclusões semelhantes.
“Tratamentos avançados, que consideram cada caso de forma individualizada, otimizam os resultados para os pacientes e entregam exatamente o que eles precisam — nem mais, nem menos”, afirma o médico oncologista Daniel Goldstein, diretor do Centro de Economia da Saúde do Davidoff Cancer Center, em Israel, e especialista em gestão econômica de tratamentos oncológicos. “No entanto, o que vemos na prática são posturas extremas: ou medicamentos demais, por tempo demais, ou tratamentos insuficientes.” Em março, Goldstein visitou o Brasil pela primeira vez, a convite do A.C.Camargo, para participar do 3º Encontro de Gestão da Sinistralidade e Valor em Oncologia. Durante uma semana, ele analisou o cenário dessa área no país e prestou consultoria sobre os esforços do próprio A.C.Camargo, que já realiza diferentes estudos sobre a eficácia de tratamentos personalizados.
Iniciativa internacional
Em 2023, foi criada na Queen’s University, em Kingston, no Canadá, a iniciativa global Common Sense Oncology, com o objetivo de otimizar recursos na oncologia a partir da geração de evidências confiáveis, da interpretação de dados e da divulgação de novos protocolos. Goldstein, que integra o movimento, ressalta que avanços na eficiência dos tratamentos dependem de ações coordenadas entre empresas e instituições do setor. “A interação entre os setores público e privado, o papel das operadoras de planos de saúde e a postura da indústria farmacêutica são essenciais”, afirma o médico canadense.
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Seguindo essa lógica, o A.C.Camargo firmou contratos de risco e produtividade com farmacêuticas e fornecedores de equipamentos, para alinhar esforços e compartilhar os benefícios obtidos com os novos protocolos. “Quando otimizamos os recursos, conseguimos tratar mais pacientes. Em um cenário de crescimento acelerado dos casos de câncer, essa estratégia é válida não apenas na saúde suplementar, mas também no Sistema Único de Saúde”, diz Victor Piana de Andrade, médico patologista e diretor-geral do A.C.Camargo.
De fato, um estudo publicado em novembro na revista The Lancet Regional Health — Americas, com análise de dados em todos os municípios brasileiros de 2000 a 2019, revelou que os tumores já são a principal causa de morte em 727 cidades do país — ou 13% do total. Em outras palavras, o sistema de saúde precisa atender hoje muito mais pacientes do que há vinte anos, e a tendência é que esse volume continue crescendo. Nesse contexto, as notícias sobre tratamentos mais eficientes são ainda mais bem-vindas.
“Muitos médicos ainda não estão preparados”
O oncologista Daniel Goldstein destaca que a mudança de abordagem exige também uma transformação na cultura médica
Canadense de nascimento e criado na Inglaterra, Daniel Goldstein hoje vive em Israel, onde se dedica ao tratamento de cânceres do sistema reprodutor e urinário, além de atuar como consultor internacional em políticas de saúde. Defensor de abordagens mais racionais no combate ao câncer, ele acredita que rever doses e a duração dos tratamentos é crucial — mas a mudança cultural entre os médicos ainda é o maior desafio.
Já existem exemplos internacionais de sucesso na redução da quantidade e do tempo de tratamento? Sim. Há casos bem-sucedidos na Europa, especialmente em países da Escandinávia, e no Canadá. São práticas que, com as devidas adaptações, podem ser aplicadas em qualquer lugar, inclusive no Brasil. O sucesso dessas estratégias depende da colaboração entre todos os atores do sistema de saúde.
E os profissionais de saúde, estão prontos para aceitar que menos pode ser mais? Em geral, não. Essa é uma das maiores dificuldades: convencer médicos de que uma quimioterapia pode durar seis meses, e não um ano. Ou que doses menores podem ser tão eficazes. Essa é nossa principal batalha: a da comunicação.
E os pacientes? Curiosamente, os pacientes compreendem melhor. Eles, no início, desejam receber o máximo de medicação possível para se livrar da doença, mas depois sentem os efeitos colaterais na pele. A mudança cultural mais importante precisa ocorrer entre os próprios profissionais de saúde.
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