O paracetamol, ou acetaminofeno, é um dos princípios ativos mais usados em medicamentos no mundo todo. Mas, apesar da popularidade e de ser vendido sem receita no Brasil desde a década de 1970, ele é também a segunda principal causa de falência hepática no mundo — nos Estados Unidos, é a primeira.
Já a dipirona é também um princípio ativo super popular de analgésicos, mas que foi proibido em vários lugares do mundo — inclusive nos Estados Unidos e em países da Europa. A causa da proibição seria a possível ligação com casos de agranulocitose, uma condição rara imunodepressora, e é motivo de polêmica.
Em entrevista a O GLOBO, o farmacêutico Jorge Willian Nascimento, docente da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), explicou que essa polêmica se deve ao fato de que os estudos que comprovaram a ligação da dipirona com a agranulocitose, na verdade, não tinham metodologias tão imparciais.
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— Muitos dos estudos presentes na literatura a respeito deste tema tão polêmico apresentam resultados controversos e metodologias enviesadas - disse. - Por exemplo, o primeiro estudo de 1964, que serviu como base para a proibição da dipirona nos Estados Unidos, em 1977, foi realizado com um análogo químico muito próximo da dipirona, a aminopirina, e não com a dipirona. — disse.
Por que a dipirona é proibida nos EUA e na Europa?
A pesquisa à que Jorge se refere foi publicado na revista acadêmica JAMA e mostrou que uma a cada 127 pessoas expostas à aminopirina desenvolvia agranulocitose. Apesar de não ter sido feito com a dipirona, os autores do estudo relacionaram os dois químicos pelas semelhanças particulares que eles têm.
Alguns anos depois, em 1986, a empresa fabricante da dipirona, a alemã Hoedst AG, publicou o Estudo de Boston, uma pesquisa feita com 22,2 milhões de pessoas entre os anos de 1979 e 1986.
O estudo foi conduzido em oito países europeus — Alemanha Ocidental, Bulgária, Espanha, Hungria, Israel, Itália e Suécia — e concluiu que, a cada um milhão de pessoas expostas à molécula da dipirona, havia 1,1 casos de agranulocitose.
Isso fez com que alguns lugares voltassem atrás na proibição - entre eles, a Suécia. Entre a sociedade sueca, porém, a volta da dipirona não deu muito certo: no período de quatro anos, foram registrados 1.439 casos de agranulocitose, uma quantidade bem acima da prevista pelo Estudo de Boston
As taxas de incidência da condição seriam diferentes de lugar para lugar. Na América Latina, o Estudo Latino, publicado em 2008, mostrou que, por aqui, há 0,35 casos a cada 1 milhão de habitantes - valor menor do que 1%. É por isso que, no Brasil, o analgésico segue permitido pela Anvisa — que, aliás, não tem pretensão alguma de proibi-lo tão cedo.
— Se avaliarmos de forma geral, são números baixos, o que torna controversa a necessidade de proibição de seu uso — explicou Nascimento.
Ainda de acordo com o farmacêutico, existe a teoria de que "a variabilidade genética entre os povos que poderiam favorecer ou não este tipo de reação (agranulocitose)". Outra possibilidade é também ligado aos sintomas da condição e ao uso da dipirona como resposta a eles.
— Um outro ponto de ser observado: dentre os sintomas iniciais da agranulocitose, estão a febre e dor de garganta. Ou seja, um indivíduo com estes sintomas poderia utilizar a dipirona, se tornando um fator 'confundidor' na análise dos dados, uma vez que esse fármaco não seria a causa primaria da agranulocitose — completou o docente da UFJF.
E quais são os riscos do paracetamol? Ele é mais tóxico do que a dipirona?
Quando consideramos os riscos por intoxicação, o paracetamol pode, sim, ser considerado mais tóxico do que a dipirona. E isso acontece porque, além de não ser tão difícil ter uma superdosagem do princípio ativo, as consequências do seu uso exagerado são mais graves do que as causadas pelo fármaco alemão.
A dose segura para o paracetamol é de até 4g fracionados em um período de 24 horas. Quando consumido, o remédio entra no sistema sanguíneo, atuando em enzimas que controlam a dor e a inflamação, e é metabolizado no fígado. Na sua metabolização, 5% do comprimido são transformados em NAPQI, uma substância química tóxica.
Em doses recomendadas, o fígado consegue neutralizar a toxicidade dessa substância. Porém, quando há superdosagem, a quantidade pode ficar grande demais para o órgão dar conta, fazendo com que o NAPQI se conecte às macromoléculas do fígado e, então, cause lesões e até leve à falência hepática.
Um dos perigos é que esse quadro é silencioso: a intoxicação por paracetamol pode demorar até 72 horas para ter os seus primeiros sintomas — que costumam ser náuseas e vômitos. Na verdade, na maioria dos pacientes, ela é assintomática. Em quatro dias (ou 96h), essa intoxicação pode levar à morte.
Nos Estados Unidos, uma pesquisa do Instituto Nacional de Saúde estima que, anualmente, há no país 2.600 hospitalizações e 500 mortes por intoxicação por paracetamol. Quase metade desses casos são acidentais. Isso fez com que, por lá, a FDA, agência que regula alimentos e drogas, estabelecesse que a dose máxima por comprimido seja de 325mg.
Na Austrália, a quantidade de mortes intencionais e não-intencionais causadas pela intoxicação por paracetamol também chamou atenção das autoridades. Em 2023, a TGA, agência que regula as drogas no país, reduziu não só as doses dos comprimidos, mas também o tamanho das cartelas e a quantidade máxima que pode ser vendida para cada pessoa.
Em 2025, caixas com mais de 100 comprimidos de paracetamol também só poderão ser vendidas na Austrália com autorização do farmacêutico das farmácias. Com isso, o país pretende reduzir a quantidade de óbitos causados pela superdosagem do fármaco — principalmente, os intencionais.
No Brasil, os remédios que são vendidos sem receita — como o Tylenol, por exemplo — são regidos pela Resolução da Diretoria Colegiada 98, de 2016, que estabeleceu uma série de exigências para que um medicamento seja vendido assim. Uma delas é justamente o fator de toxicidade, que deve ser baixo — inclusive quando em superdosagens.
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Em 2021, a Anvisa lançou um alerta sobre os riscos da superdosagem de paracetamol. Porém, por aqui, ainda não existem estudos como os feitos pelo Instituto Nacional de Saúde dos EUA — nem há previsão de que o medicamento vá receber qualquer limitação.
O paracetamol é seguro?
O paracetamol é, sim, considerado seguro e eficaz, assim como a dipirona — isto é, em doses recomendadas.
Não é recomendado ultrapassar 4g em um período de 24 horas. O uso contínuo também pode causar danos à saúde — portanto, o consumo não pode ser prolongado.
Paracetamol e Tylenol são a mesma coisa?
Sim, paracetamol e Tylenol são, essencialmente, a mesma coisa. A diferença é que paracetamol é o nome do princípio ativo — e o Tylenol é uma das marcas que produzem medicamentos com ele.