Maria Felícia, de 79 anos, tinha problemas circulatórios, formigamento constante nas mãos e um sono entrecortado, que prejudicava sua saúde. Há dois anos, todos os sintomas sumiram. Belén Maria tem um filho TDAH com relatos de acessos de raiva. Por quatro meses, ele passou a viver em equilíbrio. Amine Kilson, aos 93 anos, sofria de catatonia por conta da demência e do Alzheimer e, em apenas 15 dias, voltou à vida e passou a interagir com sua família. Divulgados nas redes sociais, estes são três dos cerca de 121 mil pacientes brasileiros que, em julho de 2025 — de acordo com o Panorama Nacional do Setor Associativo da Maconha Medicinal — estão desafiando a medicina convencional ao aliviarem suas enfermidades com o uso da cannabis medicinal ou de drogas psicotrópicas classificadas como proibidas.
Alzheimer. Demência. Parkinson. Autismo. Dores crônicas e agudas. Paralisia cerebral. Epilepsia. Convulsões. Distúrbios do sono. Fibromialgia. Depressão profunda. Traumas. Síndrome do pânico. Transtornos alimentares. Transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). A lista de patologias tratadas com terapias canábica e psicodélica, com resultados comprovados de alívio e cura, segue crescendo. De 2015 ao primeiro semestre de 2024, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) já concedeu 366.953 autorizações de importação de produtos derivados de cannabis para uso próprio, mediante prescrição médica. Este fenômeno está provocando uma revisão no Plano Nacional de Política sobre Drogas e pode colocar o Brasil no mapa da vanguarda do uso medicinal de substâncias psicoativas.
Além da popularização entre pacientes, outras medidas estão contribuindo para reduzir o estigma e aumentar a aceitação do uso medicinal de drogas ilegais — como os psicodélicos psilocibina (princípio ativo dos cogumelos mágicos), DMT (contido na ayahuasca e liberado apenas para uso religioso), MDMA (derivado da anfetamina) e LSD (ácido lisérgico) — ou de uso controlado como a cannabis.
A primeira é o surgimento de clínicas de terapia psicodélica com autorização especial para pesquisa científica. Na avaliação do Hospital McLean, a instituição de ensino psiquiátrico da Faculdade de Medicina de Harvard, elas são “a nova fronteira da saúde mental”. Em algumas, no Brasil, também a cetamina (anestésico dissociativo legalizado, no Brasil, para uso clínico) e a ibogaína são administradas.
No caso desta última, este é o princípio ativo da raiz africana Tabernanthe iboga, de propriedades alucinógenas e também curativas, utilizada em cerimônias da religião Bwiti, no Gabão. Aqui, ela é aplicada no tratamento de dependência química de crack, inclusive. Seu uso é permitido, mas a comercialização é proibida.
Em paralelo, o Instituto do Cérebro, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a coordenação do Professor Draulio Araújo, produz uma pesquisa sobre o uso da ayahuasca como antidepressivo, que apresenta resultados significativos, desde 2017.
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Redução do estigma
Na área da cannabis, vários eventos têm desconstruído a imagem demonizada da erva. Em primeiro lugar, está a proliferação de associações de usuários, já organizadas em federações. Em seguida, a atuação do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que autorizou, em novembro do ano passado, o cultivo e a comercialização da planta por pessoas jurídicas, para finalidades medicinais e farmacêuticas no país. Também em 2024, a Universidade Federal de Viçosa se tornou a primeira instituição pública do país a sediar um banco genético de Cannabis Sativa L.. E, em março deste ano, a cidade de Ribeirão Pires (SP) inaugurou a primeira clínica pública do Brasil de cannabis medicinal totalmente produzida em território nacional.
— Dentro da discussão do Plano Nacional de Política de Drogas, precisamos trazer à tona a questão da descriminalização porque a regulamentação do uso terapêutico precisa avançar — alerta Francisco Netto, Secretário Executivo da Política de Drogas da Fundação Oswaldo Cruz. Ele foi o articulador do Programa Institucional de Política de Drogas, Direitos Humanos e Saúde Mental, criado pela Fiocruz, em 2023, para amplificar o diálogo com a sociedade e articular uma produção de conhecimento que contribua com a elaboração de políticas públicas nesta área.
No caso da cannabis medicinal, enquanto a regulamentação da Anvisa não vem, são as mais de 30 associações de usuários em todo país que preenchem a lacuna da assistência pública, e têm apoiado os casos graves e urgentes dos pacientes que importam o produto — como determina a Resolução RDC 660/2022 da agência.
— Ouça bem, nós somos um país agrícola, temos uma matéria-prima que vale ouro, mas a legislação manda que seja importada. Faz sentido? — questiona Igor Mello, presidente da Associação de Acesso à Cannabis Medicinal (ACANNA), que oferece acompanhamento médico aos associados e tem autorização para fornecer seu óleo, produzido na Serra da Mantiqueira. Para garantir qualidade, a entidade estabeleceu uma parceria Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFFRJ) para o cultivo da planta, a extração de óleos canabinoides e o teste da gradação de seu uso. — Nosso produto é totalmente orgânico. Não posso oferecer o óleo de uma planta que tenha crescido num terreno contaminado por metais pesados — explica Mello.
Regulamentação
A falta de regulamentação e o arcabouço jurídico são os principais entraves ao consumo medicinal das drogas classificadas como controladas ou ilícitas no país. Hoje, a legislação brasileira é um complexo sistema de instâncias normativas e operacionais, cujo foco é a repressão ao tráfico e a redução da oferta e da demanda de entorpecentes e psicotrópicos. Porém, este cenário está prestes a mudar. A reconstrução do Plano Nacional de Políticas sobre Drogas (PLANAD) está em curso e o debate inclui o uso medicinal de substâncias psicoativas.
Além das 1.800 contribuições virtuais enviadas para a Plataforma Participa Brasil +, o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas, responsável pela execução da política, fez consultas públicas com auditórios lotados em Belém, Cuiabá, Teresina, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Esta participação popular foi o resultado direto do processo interno vivido pelo conselho, em que, pela primeira vez em sua história, dez organizações da sociedade civil foram eleitas para compor o colegiado.
A reconstrução do Plano Nacional de Políticas sobre Drogas (PLANAD), com a inclusão do debate sobre o uso medicinal de substâncias psicoativas, pode vir a equiparar o Brasil às melhores soluções político-institucionais e medicinais adotadas por países como Alemanha, Israel, Canadá, Portugal, Uruguai, Argentina, Chile e Colômbia, entre outros.
— Não foi só uma revisão técnica — posiciona Leonardo Pinho, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme) e consultor AD HOC da Comissão de Drogas e Saúde Mental do Conselho Nacional de Direitos Humanos. — Nessa regulamentação não queremos só legislar sobre o uso, o acesso ao medicamento, mas também sobre a produção e o beneficiamento, e garantir a certificação participativa para as associações canábicas do Brasil.
Produção nacional
Por mais que haja incredulidade na regulamentação do uso medicinal de alucinógenos no Brasil, algumas instituições nacionais apostam, desde já, em pesquisa aplicada, de olho na futura produção e comercialização de seus produtos. É o caso da Biocase Brasil, um hub de formação, pesquisa e tratamento que, entre recursos próprios e recebidos pela Fapesp e pela Finep, nos últimos quatro anos, investiu um total de R$ 8 milhões para aferir o potencial da psilocibina como medicamento. Em 2022, a empresa firmou contrato com a Universidade de Campina Grande (PB), para isolar os compostos psilocibina/psilocina, visando o patenteamento do produto no mercado internacional. Para isso importou 18 quilos de cogumelos.
— Desistimos de atuar com cannabis e escolhemos a psilocibina e a cetamina intranasal porque gostaríamos de fazer diferença no tratamento de doenças graves e de difícil controle — conta o sócio Cesar Camara. — O impacto das terapias psicodélicas no futuro da saúde pública será incomparável.
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