Os brasileiros ocupam a terceira posição em uma lista de turistas que mais gastam nos Estados Unidos, atrás apenas de britânicos e japoneses, de acordo com o Departamento de Comércio americano. Desde 2003, eles aumentaram suas despesas nos Estados Unidos em 250%, o que os levou a escalar quatro locações no ranking, deixando para trás franceses, australianos, sul-coreanos e alemães. A valorização do real e o acréscimo dos preços dentro do País são alguns dos motivos que geram esse aumento.
Os atrativos que levam a essa invasão brasileira são diversos, como boas compras, restaurantes, e atrações turísticas. Mas há outro item que também fascina quem visita o território americano: as farmácias. Lojas com mais de 200 m² e alguns andares impressionam. Nas gôndolas, o sortimento oferecido vai muito além de medicamentos e produtos de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (HPC). Alimentos frescos e industrializados, bebidas alcoólicas e não alcoólicas, produtos de limpeza, ferramentas e até ração para cachorros e gatos podem ser comprados dentro de um mesmo espaço.
Empresários do varejo farmacêutico sonham em replicar o modelo no Brasil, mas esbarram em questões regulatórias impostas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), O principal impedimento fica por conta da restrição de categorias de produtos que o órgão sanitário permite que sejam comercializadas dentro das farmácias e drogarias. Em 2009, a Anvisa publicou a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) número 44/09, que veda a venda de itens alheios à saúde, como comidas e bebidas, nesses estabelecimentos.
“Nessa legislação, além dos medicamentos, existe um rol de produtos permitidos para se comercializar em farmácias, os quais estão diretamente ao sentido da farmácia enquanto estabelecimento de promoção, proteção e recuperação da saúde”, explica o presidente do Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo (CRF-SP), Dr. Pedro Menegasso.
Entre os produtos permitidos pela Anvisa estão: cosméticos, perfumes, produtos de higiene pessoal, produtos médicos e para diagnóstico in vitro, mamadeiras, chupetas, bicos e protetores de mamilos, alimentos para fins especiais com alegações de propriedade funcional e/ou de saúde, suplementos vitamínicos e/ou minerais, entre tantos.
Desde então, iniciou-se uma disputa entre varejo e Anvisa. Para os empresários, garantir a venda desses itens é um ganho significativo de rentabilidade. O varejo continua apresentando números expressivos de crescimento, mas, atualmente, os responsáveis pelos bons números são, basicamente, os produtos de higiene e beleza, incluindo os dermocosméticos e produtos Premium, de alto valor agregado.
Com a venda de artigos de conveniência, o ganho seria expandido. De acordo com dados da Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma), a venda desses produtos alheios à saúde e à beleza corresponde a 30% do faturamento total dos estabelecimentos que os vendem
Em busca de garantir esse direito, alguns estados criaram leis estaduais e municipais que permitem a liberação da venda de artigos de conveniência. A partir disso, a disputa ganhou esfera judicial. Recentemente, a Procuradoria-Geral da República (PGR) entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo o fim da comercialização de artigos de conveniência em farmácias e drogaria nos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Roraima. O pedido foi negado e os estados puderam continuar a vender os produtos.
Segundo a advogada do Sindicato do Comércio Varejista de Produtos Farmacêuticos de Minas Gerais (Sincofarma-MG), Fernanda Silva Vieira, o STF entendeu que a venda de conveniência não é um incentivo à automedicação e não dispõe sobre saúde, mas sobre o comércio local. “A decisão unânime é extremamente relevante para o setor”, avalia a especialista. O STF entendeu que a lei estadual é constitucional, não fere nenhuma competência da União e, portanto, deve ser cumprida”, complementa a advogada.
GUERRA DE ARGUMENTOS
A Anvisa e outras entidades que defendem a proibição da venda de artigos de conveniência nas farmácias afirmam que a comercialização destes produtos descaracteriza o estabelecimento como um provedor de saúde. O argumento ganhou ainda mais força com a aprovação da Lei 13.021/14, que afirma que as farmácias e drogarias são estabelecimentos de saúde, que devem prestar serviços de Atenção Farmacêutica ao cliente.
“Produtos não relacionados nas normativas, além de ilegais para venda em farmácia – o que caracteriza infração sanitária - , não contribuem para a imagem da farmácia como estabelecimento de promoção, proteção e recuperação da saúde, alterando a percepção da população do verdadeiro papel social deste estabelecimento”, afirma o Dr. Menegasso do CRF-SP. “Já os produtos relacionados nas normativas, auxiliam o farmacêutico a prover qualidade de vida ao usuário – o qual entendemos que, além de cliente, é um paciente – na recuperação e manutenção de sua saúde. Ou seja, são produtos que atendem às necessidades do público-alvo da farmácia.”
Para pesquisar se a venda afeta realmente a visão que o consumidor tem das farmácias, o Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico (ICTQ) investigou a percepção que o brasileiro tem destes estabelecimentos. Dentro do universo pesquisado, 16% já percebem a farmácia como estabelecimento de saúde , conforme prevê a Lei 13.021/14. Outros 31% a veem como minimercado; 25%, como loja de conveniência; e 28%, como loja de cosméticos.
O estudo também mostrou o universo dos produtos que mais chamam a atenção do consumidor nas farmácias e drogarias: medicamentos ou remédios, com 52%; cosméticos ou produtos de beleza, 27%; produtos de higiene pessoal, 17%; alimentos, 2%; e bebidas, 1%.
VAREJO ESPECÍFICO
Os números sugerem que, nos estados em que há venda de artigos variados, o consumidor realmente passa a ter uma percepção mais ampla do papel comercial da farmácia. Mas, para as entidades de varejo, esse fato não prejudica a prestação de serviços de saúde. “Ninguém quer tirar essa função da farmácia. Sabemos que, nos Estados Unidos, as grandes redes têm uma área restrita de saúde, mas denvem de tudo”, destaca o presidente executivo do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos do Estado de São Paulo (Sindusfarma), Nelson Mussolini.
Para o Dr. Pedro Menegasso, do CRF-SP, essa comparação não é pertinente, devido às inúmeras diferenças entre as farmácias brasileiras e americanas. “A relação do paciente com a farmácia foi construída numa base diferente da brasileira. Pelo rigor criado para a aquisição do medicamento, o cliente/paciente tem a clara percepção de que não está adquirindo um produto qualquer. Sabe que é um produto de grande risco e deve ser usado de forma correta. Isso não acontece por aqui.”
Para Mussolini, não é a restrição da venda de artigos de conveniência dentro da farmácia que será capaz de moralizar a dispensação de medicamentos. “Ao contrário, eu acho que se a farmácia tivesse chance de ter uma rentabilidade maior, poderia se dedicar melhor à dispensação.”
Para o executivo, a solução para a falta de respeito à receita médica, ainda observada em muitos locais do País, deve passar pela regulamentação da prática. “Precisamos estabelecer quais produtos precisam, efetivamente, de tarja vermelha. E aqueles em que é necessária, devem ter uma comercialização vinculada à prescrição médica, em nome da segurança do paciente. Outra questão é que os prazos de validade de uma receita de medicamento contínuo também poderiam ser muito maiores.”
RENTABILIDADE ASSEGURADA
Em meio à disputa, a chegada de redes estrangeiras é vista como um trunfo para os defensores da liberação dos artigos de conveniência. Com alto poder econômico e de barganha, essas multinacionais poderiam ser aliadas na pressão que se faz sobre o governo e órgãos reguladores.
“Elas têm toda uma experiência de anos e depoimentos de como esses produtos são importantes para aumentar a receita da farmácia. Tenho perguntado ao Conselho Federal de Farmácia (CFF) como por lá um farmacêutico ganha US$ 10 mil e aqui ganha US$ 1 mil? Se você tiver uma loja que vende mais produtos com melhor margem, você não teria condição de pagar melhores salários?”, questiona o presidente executivo da Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma), Sergio Mena Barreto.
Quanto à influência das redes estrangeiras e à ampliação da gama de produtos oferecidos, o presidente da Federação Brasileira das Redes Associativistas de Farmácias (Febrafar), Edison Tamascia, tem outra visão. “Não acho que produtos de conveniência atrapalham o papel de saúde, a questão que coloco é que 90% das lojas falam em ter conveniência, mas não têm espaço, pois contam com lojas de 70m² a 90m². Grandes cadeiras serão mais competitivas. Devido ao poder econômico, elas podem investir em uma loja de 400 m² e ser muito mais competitivas. Muita gente quer vender conveniência, mas não sabe o porquê.”
Por essas diferenças entre as farmácias estrangeiras e brasileiras, o CRF-SP defende que se construa um modelo de farmácia que respeite a história e realidade brasileiras. Quanto à perda de rentabilidade, o órgão acredita que é possível atrelar o cumprimento do papel social da farmácia com viabilidade econômica do estabelecimento, sem precisar fazer uso de produtos de conveniência que não estão previstos na legislação.
“O que nos parece é que algumas empresas não conseguem compreender qual é o seu negócio, qual é sua estratégia, qual é o seu público-alvo”, ressalta, citando um exemplo: “o que um paciente diabético precisa para possuir qualidade de vida? Qual é o conjunto de produtos e serviços que uma empresa pode ofertar quando ele a procura? Além dos medicamentos, será que não é muito mais interessante, tanto do ponto de vista social quanto do comercial, que essa empresa farmacêutica se emprenhe a fornecer-lhe acompanhamento farmacoterapêutico, alimentos especiais, palmilha adequada? Em vez disso, algumas empresas insistem em um mix de produtos que nada tem a ver com seu negócio e papel social”.