Farmacêuticos devem prescrever medicamentos? Legalmente isso é possível? O que a sociedade pensa sobre isso? Essas e outras questões são temas recorrentes nos debates acerca da prescrição farmacêutica, debates estes que vem sendo realizados pelo Conselho Federal de Medicina, Conselho Federal e os Regionais de Farmácia com uma participação ativa do ICTQ - Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico. Essas discussões têm contribuído para o esclarecimento do tema junto à sociedade e percorrem as polêmicas com o objetivo de oferecer conclusões baseadas em fatos e nas opiniões dos envolvidos.
Para entender os termos da polêmica, vale lembrar que, no dia 29 de agosto deste ano, o Conselho Federal de Farmácia (CFF) publicou uma resolução que dá autonomia para que os farmacêuticos receitem medicamentos isentos de prescrição (MIPs), além de plantas medicinais, drogas vegetais e fitoterápicos. A alegação é que esses profissionais podem prestar importante serviço à sociedade e minimizar os problemas relacionados à automedicação.
A queda de braço mais expressiva se dá porque a classe médica é radicalmente contra. O Conselho Federal de Medicina (CFM) anunciou que vai questionar na justiça a resolução do CFF, já que não há legislação que ampare a decisão dos farmacêuticos. Para a entidade médica, a Lei do Ato Médico (12.842/13) estabelece que cabe somente ao médico a prevenção, o diagnóstico e o tratamento de doenças.
Outra base desse tripé está ancorada na pesquisa sobre o assunto realizada pelo ICTQ, em que se revelou o índice de confiança na prescrição farmacêutica de 42% e o índice de aprovação desta prescrição de 39%.
Esses debates têm sido promovidos por importantes players do setor e veículos de comunicação. O saldo das conversações pode ser considerado muito positivo na medida em que oferece subsídios aos envolvidos para uma tomada de posição com relação à questão da prescrição farmacêutica.
Por exemplo, na coluna da Folha de São Paulo, de 24 de setembro, de Cláudia Collucci, o presidente do Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo (CRF-SP), Pedro Eduardo Menegasso, diz que o resultado da pesquisa do ICTQ revela que o brasileiro desconhece o papel do farmacêutico na saúde e que parte da população não entende que quem está atrás do balcão é um profissional com formação de nível superior. Ele é o profissional de saúde mais perto da população. Para consultá-lo não é preciso pegar fila, não é preciso marcar hora.
No dia seguinte, a mesma colunista da Folha de São Paulo cita a nota do CFM e ressalta os argumentos com os quais os farmacêuticos responderão aos médicos na justiça, já o vice-presidente do CFF, Walmir De Santi, explica que não há impedimento legal algum. Trata-se de medicamento isento de prescrição médica.
O diretor-executivo do ICTQ, Marcus Vinicius Andrade, na mesma coluna da Folha de São Paulo, concorda com o representante do CFF: “A lei é clara ao permitir ao conselho a possibilidade de ampliar o limite de competência do exercício profissional, conforme as necessidades futuras", diz. Segundo ele, o decreto 85.878/81, usado como argumento pelo CFM, não revoga a lei que criou os conselhos farmacêuticos, apenas regulamenta atribuições privativas dos farmacêuticos.
O Portal do UOL, do dia 8 de outubro, destacou que, obviamente a medida não foi aceita pela classe médica. O motivo disso, segundo Menegasso (CRF-SP) é a arrogância dos médicos, que não reconhecem as outras profissões da área da saúde. “Eles acham que se bastam, mas com certeza não leram a resolução, pois nós não queremos tirar espaço deles", diz.
Nessa mesma reportagem, Menegasso comenta novamente o resultado da pesquisa do ICTQ (aprovação da prescrição de 39% da população), porém de outra forma: "Essa pesquisa é questionável, pois foi realizada na hora errada, as pessoas não tinham conhecimento da resolução. Agora muitos já são favoráveis", afirma Menegasso.
Sobre isso, Andrade, do ICTQ, rebate às críticas sobre o momento certo da realização do trabalho: “O estudo foi realizado no decorrer do período das consulta públicas sobre prescrição farmacêutica. Se as consultas do CFF eram realmente públicas, onde fica o equívoco de consultar a população sobre sua opinião acerca do tema?”.
Segundo Andrade, tecnicamente as pesquisas de opinião são atemporais. Em qualquer momento a população pode ser consultada sobre sua opinião acerca de qualquer assunto. “No entanto, o ICTQ não viu momento mais propício e oportuno para trazer ao debate a opinião pública sobre a prescrição farmacêutica, uma vez que estavam abertas as consultas públicas e a imprensa nacional também debatia o assunto, sem números e amparo de informações sobre o posicionamento do cidadão brasileiro - o ator deste debate, que é o mais interessado na qualidade dos serviços prestados em saúde no País”, defende-se Andrade.
Os Principais Resultados da Pesquisa
De fato o índice de confiança na prescrição farmacêutica é de 42% e o índice de aprovação desta prescrição é de 39%. Por conta disso, Andrade acredita que a opinião pública está dividida diante da questão. Segundo ele, esses índices não são uma surpresa. Em janeiro deste ano, no primeiro levantamento acerca do perfil dos consumidores em farmácia, realizado pelo ICTQ em parceria com o Datafolha, a opinião pública apontou que, para 95% da população, o farmacêutico é considerado um dos profissionais mais importantes da saúde no Brasil.
No entanto, ao aprofundar-se nesse questionamento, verificou-se que somente 46% dos brasileiros conseguem identificar quem é o farmacêutico dentro da farmácia. Assim, os índices de percepção de quem é o farmacêutico no estabelecimento e os índices de aprovação e confiança na prescrição farmacêutica se assemelham e estão equiparados estatisticamente.
“A conclusão que temos é que a opinião pública está divida sobre a prescrição farmacêutica, por desconhecimento da formação, das atribuições e das qualificações do profissional farmacêutico na saúde individual e coletiva. No entanto, faço nota que esse desconhecimento pode se desfazer com ações concretas por parte dos conselhos junto à sociedade”, pondera Andrade.
O CRF-SP, baseado nos dados sobre a identificação do farmacêutico dentro dos estabelecimentos, promoveu uma série de mudanças para diferenciar esses profissionais na farmácia. Andrade acredita que há muito tempo o farmacêutico de São Paulo vem estabelecendo um diálogo aberto sobre saúde, diretamente com a população por meio de uma ação chamada Farmacêuticos na Praça. “São ações como essas, de aproximação do profissional junto à sociedade, que quebram o desconhecimento e a desconfiança. A prova disso está nos índices relacionados à aprovação da prescrição farmacêutica em São Paulo, que estão acima da média nacional”.
Coincidentemente, os índices de consumo irracional de medicamentos em São Paulo estão abaixo da média nacional. Pela referência de trabalho do CRF-SP, Andrade é a favor da prescrição farmacêutica, assim como sua instituição que aplicou a pesquisa. “Acreditamos que a prescrição farmacêutica será uma excelente ferramenta que somará esforços no combate ao uso irracional de medicamentos”.
Prescrição é uma “aberração”?
Numa das poucas aparições do CFM na mídia, o médico conselheiro pelo Rio de Janeiro, José Ramon Blanco, esteve presente no debate promovido pelo Canal Futura no dia 01 de outubro, quando também participaram Andrade, do ICTQ, e Tarcísio José Palhano, do CFF.
Blanco reafirma o teor da nota do CFM dizendo que a prescrição farmacêutica não deveria extrapolar o que a lei estabelece, ou seja, que cabe exclusivamente ao médico a prevenção, o diagnóstico e o tratamento. Ele afirma que o conselho está preocupado com o que ele chamou de banalização da saúde e exemplifica citando o programa Mais Médicos. “Querem jogar nas costas do médico a incapacidade do Governo em resolver a saúde. Essa banalização também é a substituição do médico por outras categorias. Quem não tem formação, não pode prescrever. Isso é uma banalização”, falou Blanco.
O médico foi mais longe, chamando o tema de “aberração”. Ele afirmou que o fato certamente será discutido nos tribunais. “A gente vê tantas aberrações, que é possível que mais uma possa acontecer”. Ele garante que o farmacêutico não está preparado para reconhecer os sintomas e nem para prescrever medicamentos.
Já Palhano do CFF admitiu que os farmacêuticos têm condições de exercer a atividade mas devem se especializar e frequentar cursos de atualizações. Andrade do ICTQ falou durante o debate que é latente que o farmacêutico tem a necessidade de agregar alguns conhecimentos para prescrever, na forma documentada e assumindo a responsabilidade técnica com relação ao consumo.
A resolução da prescrição farmacêutica já prevê o fato quando indica quais os conhecimentos necessários serão validados pelos conselhos regionais. “O ICTQ, inclusive, tem sido pioneiro na proposta de uma especialização em Prescrição Farmacêutica e Farmácia Clínica no Brasil. A especialização deve começar até novembro em todo o País e, com certeza, em muito pouco tempo teremos muitos farmacêuticos qualificados para uma prescrição segura”, falou Andrade.
O executivo comentou que, quando o CFM debate a questão com o argumento de que o farmacêutico não tem os conhecimentos necessários, a entidade médica se esquece de que a própria medicina não nasceu nos bancos de universidade. “Toda formação profissional, seja ela técnica, em nível de graduação ou especialização, se molda a partir de novas realidades impostas por normativas, regulamentações e ampliação de atribuições, que são demandadas pela sociedade. E é isto que está acontecendo na classe farmacêutica”, destaca o diretor do ICTQ.
A Prescrição Farmacêutica versus a Automedicação
Embora o CFM não tenha se manifestado na mídia muito fortemente sobre o assunto, senão por meio de uma nota, o conselho acredita que a resolução do CFF incentivará a automedicação, na medida em que leva o doente a não procurar o médico.
O CFM coloca que a população apoia o seu posicionamento contrário à prescrição farmacêutica. Com relação a isso, Andrade diz que há uma população dividida diante da questão. O que deixou de ser citado é que os 42% dos brasileiros que confiam na prescrição farmacêutica (de acordo com a pesquisa do ICTQ), declaram também que, com a resolução em vigor, irão economizar com consultas médicas, muitas vezes desnecessárias, evitarão a perda de tempo em filas de hospitais públicos e irão resolver problemas de saúde mais simples de maneira mais rápida.
Ao contrário do CFM, Andrade não concorda que a prescrição farmacêutica incentivará a automedicação: “acredito que se a preocupação fosse realmente a automedicação, o CFM deveria entrar com uma ação na justiça para a exclusão dos MIPs do setor de autoatendimento das farmácias. Atualmente esses medicamentos estão ao alcance do paciente, que pode consumir o quanto e da forma que quiser”, rebate.
No ponto de vista de Andrade, a classificação medicamentos isentos de prescrição é a mesma coisa que dizer produto de uso comum - consumam o quanto e da forma que quiserem. “No entanto, temos ciência de que qualquer medicamento, por mais simples que seja, não pode ser considerado um produto para uso sem controle e responsabilidade técnica amparada por um profissional da saúde. Eu acredito que a resolução do CFF vem para tentar conter o uso abusivo de medicamentos no País. E acredito ser leviano indicar o contrário”, polemiza ele.
O cerne da questão da automedicação no Brasil está na falta de profissionais de saúde, em quantidade, qualificados para trabalhar em uma sociedade que é emergente, tem maior poder de consumo, está envelhecendo e, consequentemente, buscando qualidade de vida também por meio da medicalização.
Para Andrade, as políticas de saúde de ontem não se prepararam para o Brasil de hoje. A Anvisa sabe disso e por esse motivo chega ao extremo de deixar alguns medicamentos ao alcance do paciente, segundo o executivo. Afinal é fato que não há médicos e nem farmacêuticos o suficiente para prescrever medicamentos para 54% da população brasileira que atualmente consomem algum tipo de remédio regularmente. Esse número representa aproximadamente 74 milhões de brasileiros. “A prescrição farmacêutica vai erradicar a automedicação? Acredito que não! Mas vai somar esforços no combate ao uso abusivo de medicamentos”, finaliza Andrade.