A Anvisa está há dois anos sem dados nacionais de prescrição e venda ao consumidor de medicamentos controlados, como entorpecentes, psicotrópicos e antibióticos. Há risco de consumo abusivo e desvio para uso ilícito.
O que aconteceu
Em dezembro de 2021, a Anvisa publicou uma norma que gerou a suspensão do SNGPC (Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados). O motivo apontado foi "instabilidade" na plataforma.
O sistema recebia informações detalhadas de todas as vendas de produtos controlados feitas por farmácias privadas: nome do medicamento, do prescritor e do paciente, além de data e local da compra. São dados importantes para a vigilância sanitária verificar indícios de fraude, como como um suposto paciente que compra quantidades incompatíveis com o consumo individual.
Mas, há dois anos, a Anvisa tornou o envio dos dados opcional. Na prática, as farmácias pararam de compartilhar os registros, gerando um "apagão". As últimas informações nacionais são de novembro de 2021.
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A suspensão do envio obrigatório deveria ser "temporária", mas segue em vigor. Nunca antes isso tinha ocorrido. O SNGPC recebia dados das farmácias desde 2014.
Não há previsão para a retomada. Procurada, a Anvisa disse que "está estudando as soluções viáveis e necessárias para o restabelecimento" do SNGPC.
Como consequência, o Brasil está há dois anos sem meios eletrônicos para fiscalizar prescrição, venda e consumo de substâncias controladas. Estudos de saúde pública também ficam comprometidos.
Remédios de uso controlado têm potencial de causar dependência, como os opioides, ou resistência, como os antibióticos. Nos Estados Unidos, o consumo indiscriminado de opioides provocou 80 mil mortes por overdose em 2021. Já a resistência a antibióticos é considerada um dos principais riscos à saúde pública global. O monitoramento dos dados é importante para antever e prever essas situações.
Também há risco de desvio de remédios controlados para venda no mercado paralelo, sem prescrição, e até para produção de drogas ilícitas. Novamente, os dados são importantes para prevenir e combater essas situações.
“Essas substâncias apresentam potencial de causar dependência e de serem utilizadas de forma abusiva ou indevida. Devido a estas características, é importante que os prescritores sejam conhecidos pela Autoridade Sanitária (...). Além disso, [essas substâncias] apresentam alto potencial de desvio para o uso ilícito, motivo pelo qual se enquadram no conceito de droga”.
– Nota técnica da Anvisa, nº 183 de 2020
“A sociedade perde muito sem o SNGPC. Embora o sistema tivesse fragilidades, era uma fonte de dados potente, instalada no Brasil inteiro, que revelava o perfil do consumo de medicamentos controlados e antimicrobianos, possibilitando identificar tendências e possíveis riscos do uso inadequado ou abuso. É terrível não ter mais essas informações”.
– Tatiana Ferreira, doutora em saúde pública pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz
Fiscalização, agora, só presencialmente
A Anvisa ainda exige que as farmácias mantenham, em seus sistemas internos, os dados de vendas de remédios controlados. Mas não é mais preciso transmitir as informações para o SNGPC.
Por isso, a única alternativa de fiscalização existente hoje é ir de farmácia em farmácia e pedir para ver os dados. São mais de 90 mil estabelecimentos em todo o país. "A realização de fiscalizações não está vinculada ao SNGPC, e utiliza os demais dispositivos de controle existentes, como a escrituração da movimentação e os documentos comprobatórios da movimentação", afirma a Anvisa em nota ao UOL.
Vistoriar milhares de farmácias isoladamente não é só um problema logístico. Também impede que se saiba o que está acontecendo no conjunto do país. Quais os remédios mais consumidos em cada região, por exemplo. Ou se há indícios de fraude envolvendo vários estabelecimentos.
Além disso, a própria fiscalização in loco está comprometida. O prazo para as farmácias manterem os dados é de dois anos — e o apagão já tem essa mesma duração. Então, em dezembro de 2023 as farmácias já podem descartar os registros de dezembro de 2021. A cada novo mês que o sistema ficar suspenso, mais será apagado. Quando — e se — a vigilância sanitária chegar, parte das informações terá se perdido para sempre.
Isso significa que, mesmo quando o apagão acabar, o Brasil passará a ter um buraco na série histórica de dados sobre remédios controlados. Mais que um prejuízo para a fiscalização, é também um problema para futuros estudos de saúde pública, que analisam os dados ao longo do tempo.
Enquanto a Anvisa convive há dois anos com o apagão, a indústria farmacêutica tem um sistema próprio para monitorar as prescrições de cada médico — que engloba todos os remédios, não só os controlados. Os dados são obtidos diretamente nas farmácias, conforme revelou reportagem do UOL. As informações são usadas para promover remédios e tentar influenciar o que os médicos prescrevem.
“Cabe aos órgãos reguladores acompanhar os dados desse mercado [de medicamentos] para garantir a proteção do interesse público. Se a indústria farmacêutica, que tem seus interesses, sabe quem está prescrevendo o quê, pode haver manipulação do funcionamento desse mercado. A sociedade precisa ficar atenta e ter a proteção dos órgãos públicos”.
– Adriano Massuda, pesquisador da FGV-Saúde
Consumo de controlados em alta
Em meio ao apagão na Anvisa, as últimas informações sobre remédios controlados foram divulgadas pelo Conselho Federal de Farmácia, com base em dados privados. A fonte é a IQVIA, uma das empresas que comercializa as informações das receitas médicas com as farmacêuticas, sem consentimento de médicos ou pacientes. A companhia também registra, caixa a caixa, tudo que é vendido nas farmácias do país.
Os números mostram que a venda de antidepressivos e estabilizadores de humor aumentou 36%, entre 2019 e 2022. Na Bahia, Paraíba e Maranhão, o crescimento superou 50%.
A base de dados privada não está disponível para consulta da vigilância sanitária, nem de pesquisadores. Por isso, não é possível saber o que está por trás da alta. Se o aumento é geral ou focado em medicamentos específicos; se o problema está concentrado em algumas cidades; se há indícios de ilegalidade. Somente um banco de dados público, como o SNGPC, permitiria verificar essas informações.
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