Você já atendeu na farmácia, um paciente que estava sendo medicado com um antifúngico relatando a ocorrência de náusea, vômito, constipação, diarreia, dor abdominal, redução da libido, insônia, sonolência diurna e aumento da sudorese?
Se sim, neste caso, é bem possível que você, farmacêutico, tenha começado a investigar se esses efeitos foram causados unicamente pelo antifúngico ou se havia algum outro componente causando as reações... Nestas situações, não é incomum descobrir que o paciente também estava fazendo uso de um antidepressivo, prejudicando a terapia com reações adversas preocupantes!
Bem, desvendado o enigma, e evidenciado que o paciente, com o relato das reações adversas supracitadas, faz uso de antidepressivos e antifúngico ao mesmo tempo, qual é o próximo passo? Qual linha de acompanhamento farmacoterapêutico seguir?
Primeiramente, é fundamental o farmacêutico saber que a terapia envolvendo os antifúngicos imidazólicos fluconazol ou cetoconazol, concomitantemente com o escitalopram - um antidepressivo inibidor seletivo de recaptação de serotonina (ISRS) - pode acarretar em aumento dos efeitos adversos. Isto se dá pelo fato de o escitalopram ser um substrato da CYP2C19, ao passo que fluconazol e cetoconazol inibem essa enzima, o primeiro mais intensamente e o segundo moderadamente. As consequências dessa interação podem ser o aumento dos efeitos adversos tóxicos do escitalopram.
Segundo o psiquiatra Mario Louzã, doutor em Medicina pela Universidade de Würzburg, na Alemanha, a interação medicamentosa entre antidepressivos ISRS ocorre pelo fato de eles serem metabolizados (em maior ou menor grau) por enzimas do sistema cyp450. “Assim, cabe ao médico avisar ao paciente que, se estiver tomando um ISRS, deve evitar alguns medicamentos (entre eles os antifúngicos citados) ou se precisar tomá-los avisar ao médico para que este verifique se é necessário ajustar a dose do ISRS”. De modo geral, ele afirma que essas interações medicamentosas não causam grande impacto em termos de efeitos colaterais dos ISRS, pois, eles são metabolizados por diferentes enzimas, de modo que a inibição de uma delas não acarreta a completa paralização da metabolização dos ISRS.
A farmacêutica professora de Atenção Farmacêutica e Farmácia Clínica no ICTQ, Ana Alice Dias, explica que a comunicação à pacientes de possíveis reações e interações, devem ser feitas de modo a orientar a possibilidade de ocorrência e seus possíveis sinais, contudo, sem alarmar o indivíduo. Deixar o paciente assustado pode criar a situação de não adesão ou ainda, suspensão abrupta do antidepressivo ou do antifúngico. “Caso o paciente esteja utilizando, por exemplo, antidepressivo por um longo período, a retirada do medicamento sem acompanhamento pode gerar piora do quadro de depressão ou ansiedade”, alerta ela.
A professora indica que o paciente e seu cuidador, na farmácia, devem ser avaliados quanto ao grau de compreensão sobre o uso dos medicamentos prescritos, outros que são administrados e o estado geral do paciente. É importante saber quem prescreveu e, no caso de mais de um profissional envolvido, se estão informados sobre a utilização de tais medicamentos. “Não é incomum que o paciente deixe de informar sobre a prescrição de outros profissionais, o que pode gerar interações medicamentosas importantes ou surgimento de um novo problema de saúde”, fala Ana Alice.
Claro que na primeira abordagem ao usuário é importante verificar se houve a notificação por parte do médico quanto à possibilidade de reações desagradáveis em decorrência do tratamento prescrito, assim como procurar saber se foram transmitidas orientações sobre como proceder. Essa é a sugestão do farmacêutico-bioquímico, Leandro Pereira Roque.
Ele acrescenta que, como o metabolismo do escitalopram é mediado principalmente pela isoenzima CYP2C19, a maior possibilidade de problema, de acordo com a literatura, fica atribuída ao uso concomitante de fluconazol (derivado triazólico), um inibidor potente desta via. No entanto, o cetoconazol (derivado imidazólico), também pode gerar reações adversas devido à inibição de CYP3A4, isoenzima que participa em menor escala no metabolismo do antidepressivo.
“O acompanhamento deve ser feito tanto pelo médico quanto pelo farmacêutico, uma vez que o segundo é um profissional de saúde disponível à população sem a necessidade de agendamento. O diálogo com o farmacêutico é fundamental para a identificação de problemas relacionados ao uso de medicamentos, pois isso tornará possível a tomada de decisões antes que reações sérias ocorram”, fala Roque. A observação dos sintomas é o melhor caminho para se acompanhar o usuário com segurança, pois eles serão o parâmetro que irão determinar a necessidade de comunicação ao médico e a possível intervenção no tratamento.
Incidência
Para o neurologista clínico da Fluyr Saudável, Fabio Sawada Shiba, é importante lembrar que a incidência de efeitos colaterais e interações medicamentosas do escitalopram é bem mais baixa que dos ISRS mais antigos, como a fluoxetina, já que os ISRS são medicações com índice terapêutico alto. “Com essas informações em mente, deve-se informar ao usuário sobre os possíveis efeitos colaterais, de sua frequência relativa e dos sinais e sintomas de alerta que necessitam de suspensão da medicação e avaliação médica (principalmente síndrome serotoninérgica; mais raramente, crises convulsivas ou hiponatremia)”.
Ele diz que existem graus variados de gravidade das interações medicamentosas. Algumas contraindicam o uso do escitalopram (como o uso de IMAOs - inibidores da monoaminooxidase - ou do antipsicótico pimozide), umas requerem um acompanhamento mais restrito e outras são de interesse teórico, mas com pouca relevância prática. “Quanto ao profissional farmacêutico, ele deve atentar para as interações medicamentosas mais significativas (solicitando confirmação da prescrição conforme o caso) e notificando as contraindicações”, comenta ele.
Acompanhamento farmacoterapêutico
O professor de Fisiologia, Farmacologia do ICTQ, Alexandre Massao Sugawara, afirma que o farmacêutico deve abordar o paciente oferecendo o serviço de acompanhamento farmacoterapêutico. Neste caso, após o aceite do serviço, a consulta farmacêutica deve envolver todo o histórico do uso de medicamentos, com o objetivo de tornar a farmacoterapia segura e eficaz. “Idealmente, a comunicação de uma interação medicamentosa se dá por meio de uma prescrição farmacêutica numa consulta em ambiente clínico, reservado e com garantia de sigilo das informações prestadas, dialogada de forma a evitar barreiras psíquicas, linguísticas e ambientais. Sabemos que a maioria dos atendimentos aos pacientes se dá no balcão de uma farmácia, a recomendação nesses casos é a mesma, procurando garantir a privacidade que toda consulta clínica merece”, ressalta ele.
Sugawara lembra que o seguimento farmacoterapêutico deve ser realizado com a elaboração de fichas de atendimento, abrindo um prontuário do paciente, com anotação das queixas, do histórico da doença atual, médico pregresso, histórico familiar, social, exames e aferições. “O farmacêutico deve sempre ter como objetivo garantir a otimização da farmacoterapia, com o propósito de alcançar resultados que melhorem a qualidade de vida dos pacientes. Uma farmacoterapia ideal é entendida como necessária, efetiva, segura e aderente. Assim, informações sobre o efeito terapêutico, efeitos adversos, modo de usar, horários das medicações, entre outros, são importantes informações que devem ser repassadas como orientação aos pacientes”.
É importante também o farmacêutico anotar no prontuário do paciente as queixas, resultados de exames e aferições, coletando sinais e sintomas que revelem qualquer perturbação do estado de saúde. As monitorizações devem ser agendadas por meio de consultas farmacêuticas em que se realizam a semiologia e a anamnese do paciente.
Papel do farmacêutico no balcão
De modo claro e com linguagem adequada, o paciente deve ser alertado sobre mudanças de humor (agitação, confusão mental, hipomania), alterações motoras (hiperreflexia, espasmos musculares, movimentos descoordenados) e outras alterações como flutuações na pressão arterial, sudorese, aumento da temperatura corporal. Caso estes sinais e sintomas ocorram, o atendimento médico deve ser procurado e o prescritor deve ser avisado para que a terapia medicamentosa seja avaliada.
Para Ana Alice, deve ser ponderada a evolução dos sinais e sintomas que o usuário do medicamento relata. Não é usual realizar monitoramento dos níveis plasmáticos do escitalopram.
“A redução da dose do antidepressivo pode ser considerada durante o tratamento com o antifúngico. Este ajuste de dose é realizado pelo médico. Outra hipótese a ser considerada é a substituição do escitalopram. Há outros antidepressivos que não interagem com o fluconazol como, por exemplo, a sertralina. O farmacêutico pode auxiliar relatando ao médico o ocorrido e informar quais foram suas ações durante o acompanhamento do paciente”, comenta ela.
Para Sugawara, os ajustes de dose devem ocorrer ao menor sinal de reações adversas, portanto, devem ser observadas desde o início da coadministração desses medicamentos. A contínua monitorização é fundamental. Escitalopram é um substrato do CYP2D19 e CYP3A4 e tem efeitos de prolongar intervalo. “Fluconazol também prolonga o intervalo QT e é um inibidor potente CYP2D19 e um inibidor moderado do CYP3A4. A coadministração é contraindicada, devido ao aumento do risco de aditivo de prolongamento do intervalo QT com fluconazol”, alerta ele.
Por outro lado, Louzã defende que é rara a necessidade de redução da dose do antidepressivo. “Se necessário quem deve fazer essa orientação é o médico, responsável pelo diagnóstico do paciente e pela prescrição do antidepressivo. Se houver uma diminuição da dose do antidepressivo ISRS ao final do tratamento antifúngico, o paciente retorna ao médico para reavaliação da necessidade de ajuste de dose”.
Acima de tudo, para que todas as informações se transformem em benefício ao consumidor final desses medicamentos, o ideal é que exista uma relação de respeito e confiança entre o farmacêutico e o médico prescritor. “O farmacêutico deve estar a par da literatura, conhecer os medicamentos e mecanismos envolvidos na ocorrência desta interação. Quando possível, enviar relatório informando por escrito o que aconteceu. Isso pode ajudar o médico a entender o que ocorreu e também é uma forma de documentar as ações do farmacêutico”, finaliza Ana Alice.